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Outros Aspetos Relevantes na Construção e Atualização das Disposições Musicais

No documento Gostos e disposições musicais (páginas 123-128)

3. Competências e Contextos de Fruição Musical

3.8. Outros Aspetos Relevantes na Construção e Atualização das Disposições Musicais

As características sociais das pessoas, os contextos familiares, a socialização, a aprendizagem e produção musical, os grupos de sociabilidade e consequente interação social, são aspetos que estruturam os gostos e disposições musicais.

Embora sejam estes os aspetos mais frequentes e mais aferidos na maioria dos entrevistados, e por isso, os mais estruturantes dos gostos e disposições musicais, outros existem, que embora menos frequentes ou até mesmo particulares importa igualmente não deixar de mencionar, porque a análise sociológica não se deve esgotar na análise das regularidades e tendências dado que os aspetos mais singulares também fazem parte da realidade social.

Neste sentido, existe uma série de aspetos que se revelaram estruturantes, sobretudo na atualização das disposições musicais, e que por isso importa dar conta.

A passagem por outros países e consequente contacto com outras culturas e outro desenvolvimento, é um dos aspetos que se revelou estruturante na atualização das disposições musicais de algumas pessoas.

A Josefa foi emigrante em Angola e na Suíça, o seu testemunho é bem revelador da influência que a passagem pelo estrangeiro, e consequente contacto com outras culturas teve na construção e atualização dos seus gostos e disposições musicais.

“Em Angola liguei-me muito à música de Angola, havia lá os ‘catecos’ que é uma dança deles, aquilo eu não perdia por nada deste mundo, era excecional. Depois fui para a Suíça e comecei a frequentar um meio social que aqui obviamente não tinha, e isso abriu-me os horizontes, abriu-me as portas e tive a possibilidade de

ir a concertos bons, por exemplo os cinquenta anos da Amália com o grupo de bailado da Gulbenkian, aquilo eram coisas fabulosas que eu tinha acesso. Essa ida para a Suíça permitiu-me o contacto com outro tipo de música, que era aquilo que eu deveria gostar mas que aqui não tinha acesso, comecei a ouvir mais. Na Suíça toda a gente toca piano, é raro entrar numa casa que não tenha um piano, foi lá que a minha filha comprou um piano e começou a tocar, e eu comecei a ouvir Bach, comecei a ir com a minha filha ao conservatório, a absorver e a gostar mais." (Josefa)

Mesmo em passagens menos duradouras por outros países, a influência na estruturação dos gostos musicais é bem visível, como demonstra o testemunho do Vasco que com três passagens temporárias por outros países, o contacto com outras culturas musicais foi alterando e atualizando os seus gostos musicais.

"Aos dezassete anos fui para os estados unidos um ano, e aí entrou muito o rock alternativo de noventa e cinco, desde os ‘offspring’ e uma data de bandas de guitarrada. (…) Tive três anos em Inglaterra e aí tive muitas saudades de Portugal, comecei a ouvir muita música portuguesa, fiz uma espécie de recauchutagem e comecei a ouvir os Xutos & Pontapés, Quinta do Bil, esses grupos, gostava muito e fazia-me falta. (...) Em determinada altura da minha vida estive na Alemanha e lá eles ouviam muito o hip pop e rap alemão, eles não importam muito, e nessa altura aprendi também a gostar disso."

(Vasco)

Outro aspeto que é repetido por vários entrevistados diz respeito à influência das relações amorosas na atualização dos gostos musicais. O contacto mais intenso com o namorado, esposo, companheiro de relação, acaba por potenciar a partilha dos gostos musicais, nomeadamente a preferência por determinado género musical, ou pela frequência de determinado tipo de evento musical, e assim influenciar reciprocamente os

gostos e disposições musicais do casal.

No caso da Ana após o casamento e por influência do seu marido adicionou o gosto pela música jazz.

"Depois de casar ouvíamos de facto mais jazz, era jazz de manhã à noite em casa porque casei com o meu marido que gostava muito de jazz, tinha aquela grande paixão pelo jazz, e nós em casa ouvíamos muito..." (Ana)

No caso da Carina o namoro não só lhes permitiu o gosto pelo fado, como também lhes promoveu a frequência de casas de fado.

"A relação com o fado veio quando eu comecei a namorar, nós gostávamos de ir jantar às casas de fado. A primeira vez que fui pensava que ia ser uma coisa horrível e adorei, a partir daí comecei a ouvir frequentemente. Nós decidimos arriscar, fomos pelo jantar e foi numa casa de fado em Alfama porque eu sou de Lisboa, quando dei por mim já estava mais atenta à música do que propriamente ao jantar, estava a gostar imenso, e a partir daí tornou-se um hábito irmos às casas de fado." (Carina)

Os gostos distinguem e vulgarizam as pessoas, e o gosto musical não foge à regra, daí ser também frequente nos relatos dos entrevistados, a influência que estes dois fatores opostos, distinção e vulgaridade detêm na construção e atualização das disposições musicais. A referência à influência destes fatores acontece sobretudo nos jovens e constrói-se especialmente em contexto escolar.

O Jacob é um exemplo de adesão ao gosto vulgar, ouvia aquilo que os outros ouviam.

"Na altura do quinto ano foi quando tudo começou, os meus amigos tinham música, arranjaram um MP3 e íamos ouvindo entre todos, na altura era as músicas de hip pop e coisas assim, é um estilo que eu

sempre a ouvir aquilo eu ouvia também." (Jacob)

Já o Duarte é um exemplo de adesão ao gosto distinto, destacando a influência da música na construção da identidade dos próprios grupos de sociabilidade.

"Na escola onde eu andava havia umas certas divisões consoante os seus gostos artísticos, uns gostavam do bailarico com o cante, nós lá para outro lado éramos os escorraçados da escola, chamavam-nos os góticos, os mitras. Havia lá o dito canto dos betos em que a música não era tema, era só cavalos, enfim, cada grupo tinha a sua riqueza e as suas características. Aí desenvolveu-se então o metal, como sendo não só um estilo que me aprazia, mas também quase como algo que nos caracterizava e ganhou bastante força ai, hoje em dia o metal não só é nostalgia como é talvez o futuro, é algo potente que eu gosto, contrasta precisamente com a tranquilidade do clássico."

(Duarte)

Importa também dar conta de uma série de particularidades que, de alguma forma, acabam por influenciar determinantemente a construção e atualização dos gostos e disposições musicais, e demonstram que a estruturação e atualização destes mesmos gostos e disposições acontecem por uma multiplicidade de aspetos, alguns muito particulares e até mesmo insólitos. Trata-se, por exemplo, de determinados gestos, como a oferta de um disco ou de um CD, da participação em determinados eventos musicais, ou a frequência de determinados espaços, ou até mesmo de um simples momento, como bem ilustra o exemplo do Arnaldo que após uma simples saída de casa, e inesperadamente, se tornou aprendiz de música e posteriormente músico.

"Quando tinha dez anos estava em casa e a minha mãe mandou-me deitar o lixo fora, estava lá um senhor que me perguntou a idade e em que classe andava na escola, e depois perguntou-me se eu queria ir para a música, eu disse-lhe que não queria ir cantar, mas ele disse

que não era para cantar mas sim aprender a tocar um instrumento. Disse-lhe que ia falar com a minha mãe e depois de falar marcamos um encontro com o senhor que nos apresentou ao mestre, e foi assim que eu comecei." (Arnaldo)

Uma referência frequentemente abordada pelos entrevistados diz respeito às questões genéticas, argumento que constitui uma das formas mais vulgares de naturalizar aquilo que é social, ou que compreende uma forte componente social.

Importa por isso dar conta que a construção do gosto pela música é também atribuído a fatores genéticos. Frases do tipo: “eu acho que o gosto nasce também com a pessoa”, "a música é uma coisa que me está no sangue", “eu se calhar apanhei esse gene de família”, “acho que foi uma coisa que nasceu comigo”, são algumas das ideias que remetem a construção do gosto musical para fatores de influência genética.

4. Importância Relativa da Música no Contexto da Fruição

No documento Gostos e disposições musicais (páginas 123-128)