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CAPÍTULO 2 CAMINHOS TEÓRICOS E METODOLÓGICOS

2.2 MONTENEGRO: SUA INTERPRETAÇÃO DE MEMÓRIA COMO INDIVIDUAL E

Inicialmente, conhecer as concepções deste autor em relação à história e à memória tornou-se crucial para que se pudesse compreender melhor sua forma de pensar. Em relação à história, Montenegro expôs, com cunho inovador, uma interessante concepção: “Afinal a história se escreve a partir do presente, das novas questões que são colocadas pela atualidade, outras perspectivas teórico-metodológicas, outras fontes” (MONTENEGRO, 2008, p. 4). Esta concepção já apresenta a influência da atualidade em relação à história.

Montenegro apresentou a sua convicção de que “esta é uma elaboração, uma aprendizagem contínua, ininterrupta, entre o que se carrega como marcas do passado e o presente” (Ibidem, p. 9). Este autor traduziu de certa forma, a versatilidade da história, o que a torna fascinante por sua capacidade de se renovar, refazer.

Particularmente, em relação à memória, este mesmo autor apresentou de forma quase poética que “A mim, pessoalmente, sempre me encantam os fragmentos de memória construídos a partir de pequenos relatos de casos, que se transformam em verdadeiras histórias” (MONTENEGRO, 2009, p. 31).

Montenegro concordou com Halbwachs na distinção entre memória e história, porém, afirmou que as mesmas são inseparáveis. Entendeu que o que foi vivido e é guardado, formando o território da memória, é distinto da história. Este autor concebeu história como “uma construção que, ao resgatar o passado (campo também da memória), aponta para formas de explicação do presente e projeta o futuro” (MONTENEGRO, 2007, p. 17). De forma inovadora, presente e passado se inter-relacionam nesta concepção.

Acrescentou este mesmo autor em relação à memória, que “não apenas pelo caráter inusitado e surpreendente que na maioria das vezes estas apresentam, mas, sobretudo, pelo que trazem de marcas, de sinais, de índices que desafiam a leitura historiográfica” (Ibidem, p. 31).

No sentido de captar uma melhor compreensão a respeito do papel da memória no resgate da história, é necessário trazer outras concepções sobre memória e suas nuances. Encontra-se no Primberam13 a seguinte definição de memória: “Faculdade pela qual o espírito conserva ideias ou imagens, ou as readquire sem grande esforço”. Esta fonte a coloca como sinônimo de lembrança.

No sentido de captar uma melhor compreensão a respeito do papel da memória no resgate da história, é necessário trazer outras concepções sobre memória e suas nuances. Encontra-se no Primberam14 a seguinte definição de memória: “Faculdade pela qual o espírito conserva ideias ou imagens, ou as readquire sem grande esforço”. Esta fonte a coloca como sinônimo de lembrança.

Temos em Le Goff o seguinte entendimento: “A memória, como propriedade de conservar certas informações, remete-nos em primeiro lugar a um conjunto de funções psíquicas, graças às quais o homem pode atualizar impressões ou informações passadas, ou que ele representa como passadas” (LE GOFF, 1990, p. 366).

No entanto, de acordo com Bosi, “lembrar não é reviver, mas re-fazer. É reflexão, compreensão do agora a partir do outrora; é sentimento, reaparição do feito e do ido, não mera repetição” (CHAUÍ, 2010, p.20) 15

. Esta mesma autora destaca o valor da lembrança ao afirmar:

Não há evocação sem uma inteligência do presente; um homem não sabe o que ele é se não for capaz de sair das determinações atuais. A curada reflexão pode proceder e acompanhar a evocação. Uma lembrança é um diamante bruto que precisa ser lapidado pelo espírito. Sem o trabalho da reflexão e da localização, ela seria uma imagem fugidia (Ibidem, p. 21).

Bosi consegue, com acuidade e clareza, concluir seu pensamento ao destacar: “O sentimento também precisa acompanhá-la, para que ela não seja uma repetição do estado

13 Dicionário Primberam da Língua Portuguesa. Disponível em

www.priberam.pt/dlpo/. Acesso em 03 de agosto de 2011.

14 Dicionário Primberam da Língua Portuguesa. Disponível em

www.priberam.pt/dlpo/. Acesso em 03 de agosto de 2011.

15 CHAUÍ, Marilena de Souza. Introdução. In: BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: Lembranças de Velhos. 3.

antigo, mas uma reaparição” (Ibidem, p. 21). Desta maneira, fecha um ciclo de pensamentos que transforma a lembrança em algo vívido, amplo e complexo, sem o qual não haveria sentido em trazê-la, pura e simplesmente, e sim, moldando-a no terreno da afetividade, da humanização, que caracteriza e constrói a memória. .

No pensamento de Frochtengarten, “a concepção da memória como produto de uma atividade meramente subjetiva foi superada pelo pensamento de Maurice Halbwachs (1956), para quem as lembranças são frutos de uma atividade de reconstrução do vivido” (FROCHTENGARTEN, 2005, p. 2).

Destaca-se, com estas palavras, que a sensação de pertencimento deriva dos sentimentos experimentados pelo autor das memórias e não simplesmente pela lembrança de algum fato. Parte do princípio da necessidade de interação entre as pessoas.

Montenegro adotou a seguinte concepção: “Memória não é registro, memória é construção, é elaboração” (MONTENEGRO, 2008, p. 9). Ele ainda preconizou: “você lê ou apreende o mundo com sua memória, mas o presente, o acontecido que se apresenta diante dos seus sentidos, também interfere, atua, desloca os significados que você traz como memória” (Ibidem, p. 9).

Ainda acrescentou um significado especial a esta intrigante faculdade quando relatou que “A memória não é pessoal, porque é também social. Nós temos que ter um conceito que reflita a dupla e indissociável dimensão da memória, pessoal e social” (Ibidem, p. 9).

Vê-se, portanto, o movimento, o caráter mutável, passível de transformações da memória, influenciado pelo meio na qual é gerada, ou pela percepção e emoções de quem a relata. Destaca-se igualmente a condição da memória não pertencer apenas ao ator, e sim, fazer parte, pertencer ao coletivo, ao social.

Em se tratando da memória como indissociavelmente individual e coletiva Montenegro entrou em consonância com Le Goff e Frochtengarten, como se pode verificar: Na ótica de Frochtengarten, “esse trabalho da memória conta com o suporte de imagens e ideias, valores e afetos vinculados a grupos sociais junto aos quais o memorialista experimenta algum sentimento de pertença” (FROCHTENGARTEN, 2005, p. 2). Aqui se percebe a memória não mais como algo individualizado, mas incluindo outras pessoas, fazendo parte do contexto de um coletivo através da sensação de pertencimento.

Para Maurice Halbwachs (2004, p. 85), “toda memória é coletiva, e como tal, ela constitui um elemento essencial da identidade, da percepção de si e dos outros”.

Deduz-se, com isto, que não há nem percepção nem memória puras. Neste momento, surgem as influências das emoções que as permeiam: alegrias, decepções, medo, entre outras,

fatores que as vão modificando, na proporção em que o meio as transformam. Seguindo ainda esta linha de raciocínio, observou-se em Montenegro (2010) que algumas passagens de depoimentos de populações mais pobres atuam com um movimento de “quebrar” as palavras, relatando outras práticas, e consequentemente, alterando os significados, desconstruindo a associação almejada, que é a natural entre o signo e o fenômeno.

Merece também destaque o fato de tudo que compõe um registro de memória resultar não de uma simples operação, e sim, de uma série de operações complexas e seletivas. Estas operações se iniciam desde o início do processo perceptivo, quando se desenvolve a construção das memórias, que vão se acumulando e que são indissociavelmente, individual e coletiva. Elas trabalham promovendo reelaborações e ressignificações em tudo o que se apresenta aos sentidos.

É fato que a atividade rememorativa, seja voluntária ou não, é um trabalho elaborado que contempla mediações e transformações. Já Montenegro preconizou: “Passado e presente, memória e percepção instituem uma relação tensa em que se abrem ou não possibilidades de novas redes de ressignificações” (MONTENEGRO, 2010, p. 40).

Na visão de Montenegro, a memória não é algo fixo, imutável, na medida em que ele assim a analisou:

Por isso a memória resulta numa construção tensa, entre o que você traz como lembrança – e desse modo, informa a maneira de perceber, de compreender – e o que se configura diante dos seus sentidos no presente, transformando, modificando, interagindo com a memória (MONTENEGRO, 2008, p. 9).

Estas tensões são de fundamental relevância, porque representam os elementos motivadores deste movimento constante de construções e desconstruções de significados.

Parafraseando Bergson (1990), a memória não se constitui numa volta do presente ao passado, mas o oposto, em uma progressão do passado ao presente. Portanto, “a partir da memória enquanto passado alcança-se ou apreende-se o presente; ao mesmo tempo, este presente atua relativizando ou deslocando significados acerca daquele passado” (MONTENEGRO, 2010, p. 40).

Ainda refletindo sobre as nuances da memória e da história, especificamente sobre seus desafios metodológicos, Montenegro interpretou suas leituras sobre Bergson e Deleuze da seguinte maneira:

O estudo desses autores me ajudou a repensar a crítica desses historiadores ao uso da memória como fonte; pois assim, como cada um ‘teoricamente’ opera um ressignificar constante das suas memórias, a historiografia institui uma reescrita e uma releitura constante de obras, acontecimentos e documentos a partir das novas experiências sociais, culturais, políticas, bem como em face de novas abordagens teóricas e ou a descoberta de novos documentos no presente (MONTENEGRO, 2010, p.8).

A partir desta reflexão, o autor revelou, além da ressignificação constante da memória, a historiografia com uma inter-relação direta de leitura e escrita permanentemente renovadas, demonstrando um caráter de movimento, à dependência também da ocorrência de novas descobertas e abordagens, traduzindo um fazer dinâmico.

Montenegro ainda concluiu que:

Dessa forma, o movimento de releitura e ressignificação das memórias individuais e coletivas, como da própria historiografia são intermináveis. Passei então a argumentar com esses críticos da volatilidade da memória, que também a história, os documentos, as obras, nossos escritos são alvo dessa ‘denominada’ volatilidade, afinal tudo que é sólido desmancha no ar (Ibidem, p. 8).

Montenegro também nos faz perceber que os seres humanos são históricos e responsáveis pela construção da história do mundo no qual vivem. Isso é demonstrado quando Montenegro analisou o depoimento de um morador de Casa Amarela, em Recife e, ao mesmo tempo, caboclo de lança de um Maracatu:

Em muitos momentos, suas descrições de acontecimentos, ações, sonhos e reflexões são projetadas como se o passado fosse outra vez revivido. Reconstrói as marcas de outro tempo com uma emoção renovada, como se a cada momento vivesse uma peleja final, embora a trilha do presente permeie o caminhar pelos escaninhos das marcas do passado (MONTENEGRO, 2010, p. 73).

Ao tentar interpretar essa citação, percebe-se como o tempo carece de alguma importância nesse contexto; tramita-se com fluidez entre o presente e o passado reconstruindo suas marcas e emoções, ao mesmo tempo visualizando a condução do presente sobre o passado. Portanto, o homem é ator de sua própria história.

Outra conotação relevante da memória é apresentada quando se trata da memória coletiva:

Do mesmo modo, a memória coletiva foi posta em jogo de forma importante na luta das forças sociais pelo poder. Tornarem-se senhores da memória e do esquecimento é uma das grandes preocupações das classes, dos grupos, dos indivíduos que dominaram e dominam as sociedades históricas. Os esquecimentos e os silêncios da história são reveladores desses mecanismos de manipulação da memória coletiva (Ibidem, p.3).

Salienta-se, a essa altura, a memória como detentora de poder, e com isso, como grupos dominantes podem manipulá-la como quiserem, de acordo com seus interesses. Conclui-se que a memória coletiva pode tornar-se uma arma, podendo ser utilizada de acordo com os interesses vigentes.

No entanto, diferentemente das definições de cunho biológico, que apresentam certo aspecto reducionista, a concepção de Frochtengarten remete a uma gama de sentimentos e valores que permeiam não só a memória em si, mas todo um processo de inter-relações sociais necessárias à sua construção.

Essa gama de emoções permeia as relações entre os atores sociais que vivenciam uma mesma experiência; a forma de se expressarem evidenciando ou não suas emoções, seja por variações de temperamento ou por atitudes preconcebidas, são perceptíveis de identificação através desta forma de análise, por meio de suas possibilidades de interpretação. Torna-se evidente que o envio das mensagens, silentes ou simbólicas depende tanto do contexto no qual ocorre o fenômeno como da condição psíquico emocional do ator que o vivencia.

Daí a necessidade de atentar para esta importante construção individual e coletiva, como fator indispensável para promover o significado do mundo, nos seus relevantes sentidos: histórico, cultural e social.