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Movimento Quilombola Na Luta Pelo Território E Pela Educação

2. CAMPOS DE BATALHAS EDUCATIVAS PARA

2.1 Movimento Quilombola Na Luta Pelo Território E Pela Educação

Andar quilômetros de distância em estradas sinuosas, a pé ou com alguma condução, pela noite a fora, na busca pelo conhecimento. Essa é a realidade de muitos jovens quilombolas, que ainda conciliam trabalho e estudos na busca por ampliar seus conhecimentos e que também veem ocupando espaços de mobilização com maior engajamento.

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A resistência desses estudantes me faz refletir sobre a importância da luta pelo conhecimento. Porque enfrentar tantas barreiras para estudar? Essas e outras questões que foram aparecendo durante a pesquisa desenvolvida também me motivaram a olhar não somente para a micro relação direta entre o estudante e a busca pela informação, mas pensar no macro efeito que ser um quilombola com formação educacional representa para as comunidades e para sociedade como um todo. Muitos desses jovens que buscam ingressar e dar continuidade nos estudos estão pensando no bem-estar e continuidade do seu modo tradicional, e esse ponto esbarra e chega na pergunta principal: seria o espaço educacional um lócus de fortalecimento dessas identidades?

A mobilização e organização na busca pela educação se dá num projeto muito maior que vem sendo planejado dentro dos movimentos sociais. Entendo que estabelecer relações com o governo, com as formas de legislar e julgar do Estado – e como ela se articula de forma imparcial – exige um certo domínio na linguagem que foi padronizada, menosprezando a linguagem de grupos sociais situados como “outros” onde o padrão é embranquecido e trabalha para o embranquecimento social onde “[...] as nossas vozes - graças ao racismo como sistema - tem sido sistematicamente desqualificadxs” (KILOMBA, 2016, p.4). Se torna produto do racismo o impedimento do acesso a tais linguagens, para que os privilégios sejam mantidos. Nesse sentido os movimentos quilombolas tem papel fundamental na mobilização e incentivo à luta pela democratização dos espaços, valorizando sua linguagem, suas cosmologias e sua territorialidade.

A década de 90 foi importante marco para a mobilização e articulação nacional da luta quilombola e por políticas públicas para a população negra do pais. A luta antirracista tomou grande proporção nos anos 90, a discussão sobre ocupar espaços decisórios estava novamente em diferentes âmbitos dos movimentos sociais. Foi em 1993 que atos como a Chacina da Candelária e Chacina do Vigário no Rio de Janeiro6 levantaram os protestos contra a violência a população negra e extermínio de jovens negros, pois em 1993 a quantidade de homicídios de jovens na faixa etária de 15 a 29 anos, foi de 15.417 mil jovens em todo o Brasil, segundo os dados do Ipea no Atlas da Violência. O cenário foi favorável para ações dos movimentos sociais, levantando a discussão dentro do

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parlamento sobre políticas públicas de assistências para populações mais afetadas pela desigualdade. O movimento negro além das denúncias sobre o racismo nesse período tem destaque “ [...] pela sua atuação na esfera jurídica, política, social e econômica via a cobrança da garantia de oportunidades e do direito a educação [...]” (GOMES, 2018, p. 50). O cenário mundial também estava voltado para as questões raciais quando o ganhador do prêmio Nobel da paz de 1993 Madiba – assim chamado pelo povo o líder político Nelson Mandela – trouxe com seu discurso de paz o fim do apartheid na África do Sul e, em 1994, se torna presidente do país, um marco importante para o movimento negro mundial que vislumbra através da educação a luta antirracista e ocupação dos espaços de poder, combate à violência racial e a reparação histórica em relação a escravidão.

Nesse mesmo período os conflitos entre Estado e movimentos sociais na disputa pela terra e reforma agraria se intensificavam sendo marcado “[...] por um processo intenso de criminalização dos movimentos sociais.” (SCHWENDLLER, 2015, p.156) e por conflitos violentos como o Massacre de Haximu onde garimpeiros mataram 12 indígenas Yanomâmis em Roraima e dos 5 acusados e condenados apenas 1 continua preso, ou como em 1995 o massacre de Corumbiara em Rondônia no qual 12 pessoas morreram em conflito entre policiais militares e os militantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), foram 64 feridos nesse conflito de desapropriação de terras. Esse era o cenário de 1995 quando também ocorreu a Marcha Zumbi dos Palmares, marco histórico do movimento negro brasileiro que se manifestava contra o racismo, em prol de políticas públicas para população negra, reparação histórica em relação aos remanescentes de escravizados, educação da história Afro-brasileira e o direito à titulação de terras para quilombolas.

O ato reuniu na esplanada em Brasília cerca de 30mil manifestantes que em coro clamavam por direitos e respeito. Depois da Marcha Zumbi dos Palmares muitos outros movimentos sociais passaram a olhar para a questão racial como importante para a restruturação da sociedade como os movimentos sindicais. A manifestação dos 300 anos da morte de Zumbi dos Palmares abriu espaço para a articulação das comunidades quilombolas no “I Encontro Nacional das Comunidades Negras Rurais Quilombolas” organizando uma Comissão Nacional que em 1996 se torna oficialmente a Coordenação Nacional de

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Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombola – CONAQ que desde então tem como objetivos:

[...] lutar pela garantia de uso coletivo do território, pela implantação de projetos de desenvolvimento sustentável, pela implementação de políticas públicas levando em consideração a organização das comunidades de quilombo; por educação de qualidade e coerente com o modo de viver nos quilombos; o protagonismo e autonomia das mulheres quilombolas; pela permanência do (a) jovem no quilombo e acima de tudo pelo uso comum do Território, dos recursos naturais e pela vida em harmonia com o meio ambiente. (CONAQ, 2019, p. 2) A CONAQ ocupa um espaço importante dentro das negociações com o Estado e comunidades quilombolas pela titulação das terras. Essa movimentação que tem como objetivo comum a luta pelo território se intensifica justamente pela reconfiguração identitária do que é ser quilombola nos tempos atuais. A intencionalidade em reafirmar que as comunidades quilombolas são símbolo centenário de resistência e força à violência sofrida pela escravidão, contrapõe questões sobre o mito da democracia racial. Ao se afirmar como resistência obriga o Estado a reconhecer que existe uma dívida histórica a ser paga e reparação aos danos causados a essa população. São lutas desenvolvidas pelas comunidades que almejam a manutenção de seu modo de vida, suas tradições e crenças e suas reivindicações para o bem viver em sociedade. Sendo assim:

Essa contraposição cultural ao projeto hegemônico do Estado dialoga com a emergência da organização do movimento quilombola nos últimos anos no pais. O movimento quilombola, institucionalizado em âmbito nacional a partir de 1996, traz a retórica identitária como elemento central de suas reivindicações e do estabelecimento da coesão de grupo. A partir dessa identidade étnica, os quilombos construíram sua linha central de luta, que é defesa de seus territórios. (SOUZA, 2016, p. 29)

A construção de uma identidade coletiva e garantia pelo território traz diferentes lutas transversais para alcançar o objetivo em comum das comunidades, como a questão ambiental que é importante pauta do movimento quilombola e outros povos tradicionais que são drasticamente atingidos pela negligencia do poder público brasileiro, como os crimes cometidos pela mineradora Vale, controlada pela Samarco Mineração, que deixou centenas de mortos com o rompimento das barragens nas cidades mineiras de Mariana e Brumadinho em um intervalo de 5 anos, com a ameaça do rompimento de outras barragens administradas pelas mineradoras, fora o impacto ambiental irreversível que a lama causou para a fauna e flora. As tragédias em Minas

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Gerais só trouxeram em evidencia o risco que comunidades ribeirinhas e outros povos tradicionais vem enfrentando com a ampliação de barragens de minérios e hidrelétricas, as atividades minerárias representam a “[...] existência de uma série de ameaças latentes que podem incidir sobre esses territórios e populações caso o "negócio" da mineração continue a prosperar.” (KOMARCHESKI, 2019, p. 237). A luta contra as mineradoras e ao Neoextrativismo é pauta do MAB – Movimento dos Atingidos por Barragens e do MOAB – Movimento dos Ameaçados por Barragens, que vem protagonizando a discussão e movimentação contra os impactos que esse modo de produção econômico vem causando ao meio ambiente.

O novo milênio carrega conquistas importantes para os movimentos sociais, essa mudança nos anos 2000, em especial para os movimentos negros, mostram que as políticas públicas para as comunidades ganharam mais força e destaque nos espaços públicos de poder:

A partir do terceiro milênio a luta do Movimento Negro adquire um outro tipo de visibilidade nacional e política e apresenta uma mudança na sua relação com a sociedade: a efetiva passagem da fase da denúncia para o momento de cobrança, intervenção no Estado e construção de políticas públicas de igualdade racial. (GOMES, 2017, p. 50)

Os movimentos sociais tiveram mais ações práticas se desenvolvendo em relação a educação com a alteração do texto da Lei 9.394/96 de Diretrizes e Bases da educação com a Lei 10.639/03 que torna obrigatório o ensino da Cultura e História Afro brasileira no currículo escolar como tema transversal por todos as disciplinas, com ênfase na Educação Artística, Literatura e História. A pressão dos movimentos sociais, tanto dentro das instâncias de poder, mas principalmente nos espaços de articulação de base é que facilita o diálogo entre o modelo de governo representativo, é a partir da mediação – conflituosa ou não – dos movimentos sociais, Estado e sociedade civil que é possível atingir os objetivos que a população almeja. “Ele organiza e sistematiza saberes específicos construídos pela população negra ao longo da sua experiência social, cultural histórica política e coletiva”. (GOMES, 2017, p.42) E assim se deu o processo de organização das Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação Escolar Quilombola que contou com uma comissão de 9 mulheres para pensar a educação escolar quilombola:

[..] foi instituída uma comissão quilombola de assessoramento à comissão especial da Câmara de Educação Básica, formada por oito

35 integrantes: quatro quilombolas indicados pela Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ), Edicélia Santos (Quilombo Bom Jesus da Lapa, BA), Laura Maria dos Santos (Quilombo Campinho da Independência, RJ), Maria Diva Rodrigues (Quilombo Conceição das Crioulas, PE), Maria Zélia de Oliveira (Quilombo Conceição das Crioulas, PE); uma pesquisadora da Educação Escolar Quilombola, Georgina Helena Lima Nunes (UFPEL); uma representante da SECADI/MEC, Maria Auxiliadora Lopes; e uma representante da SEPPIR/PR, Leonor Araújo. No processo, o CNE convidou também a Secretaria de Educação Básica do MEC (SEB/MEC) e a Fundação Cultural Palmares para compor o grupo, as quais foram representadas, respectivamente, por Sueli Teixeira Mello e Maria Isabel Rodrigues. (GOMES, 2012, p. 3)

Ressalto a importância de apontar as responsáveis por esse processo, uma comissão feminina, negra e quilombola, respeitando a representatividade e lugar de fala nos espaços decisórios e de poder, pois “Pensar lugar de fala seria romper com o silêncio instituído para quem foi subalternizado. ” (RIBEIRO, 2018, p. 89). Após reuniões e audiências públicas foi aprovada em 2012 as Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação Escolar Quilombola. Essas e outras mobilizações de cunho nacional só ganham força pela sua articulação nas bases. As associações das comunidades representam um papel importante nessa articulação. Todo o poder decisório das comunidades quilombolas passa pela organização e mobilização das associações, desde a organização da distribuição dos programas de desenvolvimento e assistência quanto a mobilização e organização de trabalhos em conjunto.

A associação tem um importante papel na organização escolar, através da carta de anuência, que dá as comunidades o poder de aceitação ou não, de um profissional que esteja atuando na comunidade. Esse aceite pode ser revogado caso a conduta dos profissionais não seja de acordo com os princípios e tradições da comunidade, ou que divergem dos objetivos estabelecidos previamente. Esse recurso é uma forma de garantir que o ensino da educação quilombola seja respeitado dentro das comunidades e aconteça de forma diferenciada para esses alunos de acordo com suas especificidades.

Em 2007 um estudo feito pelo INEP registrou cerca de 1.253 escolas em áreas de remanescentes de quilombos, com cerca de 151.782 matriculados nessas escolas. Esse número em 10 anos provavelmente teve um aumento significativo, principalmente depois de 2012 com a implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação Escolar Quilombola. É necessário que os movimentos de articulação em relação as comunidades estejam inseridos na

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escola, justamente para acompanhar como está sendo o processo de aprendizagem dos alunos quilombolas.

Atualmente o cenário político não tem se mostrado favorável em relação a mobilização social. As declarações do governo em relação às comunidades indígenas e quilombolas também levantam preocupações em relação a demarcação e titulação das terras. Tal postura levanta um sentimento de insegurança principalmente sobre a violência que lideranças vem sofrendo nos conflitos territoriais. Segundo a CONAQ, em 2017 os números de assassinatos de lideranças quilombolas estavam tão alarmantes quanto na década de 90. Segundo os dados da Comissão Pastoral da Terra foram mais de 50 assassinatos só em 2017 em conflitos agrários.

Um dos casos ocorridos em 2017 foi o do Quilombo Luna, na Bahia, com a chacina de 6 quilombolas. As famílias da comunidade com medo de outras violências geradas pelo conflito agrário deixaram seu território, das 42 famílias do quilombo apenas 12 permaneceram. “A Escola Municipal Irineu Dutra, a única da comunidade, ficou fechada por mais de um mês e só voltou a funcionar depois que a polícia, após recomendação do Ministério Público Federal (MPF), passou a vigiar a instituição. ” (CONAQ, 2019). Esse caso ilustra a realidade vivenciada pelos estudantes quilombolas, o ensino precisa de um olhar especifico para essas realidades. O movimento quilombola tem papel importante para denunciar e articular com o estado medidas de proteção e políticas públicas para as comunidades, e também tem papel importante para o funcionamento escolar, por isso precisa estar presente na organização curricular e na proposta pedagógica das escolas que atendem quilombolas.

2.2 - João Surá e Palmital Dos Pretos – Diferenças E Semelhanças No