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Olhar de Refração – Insubmissão nas Práticas Educacionais

4. ESCOLA MUNICIPAL AUGUSTO PIRES DE PAULA – PALMITAL DOS

4.3 Olhar de Refração – Insubmissão nas Práticas Educacionais

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O fenômeno da física de refração explica que quando a luz reflete sobre uma segunda lente a imagem que se forma é diferente, é sobre essa lógica que venho contar sobre as práticas e comportamentos de insubmissão e transformação social que encontrei na convivência com a equipe da EMCAPP. A resistências nesses espaços de intenso conflito não estão evidentes, é preciso um acompanhamento e um olhar atento para localizar as pequenas mobilizações que se propõem a contrapor uma lógica de controle, de poder, de obediência. Foi preciso um movimento de refração nas práticas e relações da EMCAPP para poder extrair momentos que caracterizam a Educação do Campo e a Educação Escolar Quilombola. Essa caminhada revela que existe possibilidades para uma educação que seja emancipadora.

Nesse clima participei de um momento de contação de história. O sr. Miguel é o funcionário mais antigo da escola, foi contratado em 1982, e desde então abria e fechava a escola, até setembro de 2019 quando se aposentou de sua função. Em entrevista me contou que a escola nesse período também funcionava como posto de gasolina, e ele era responsável por abastecer os ônibus e caminhões que garantiam o funcionamento da escola. O sr. Miguel foi convidado pelos professore do Centro Municipal de Atendimento Individual - CMAI para contar algumas histórias sobre a localidade e algumas lendas. O projeto era para o fortalecimento da oralidade, e também para a produção de um vídeo. A ideia é que o sr. Miguel fosse o narrador dessas histórias que seriam ilustradas posteriormente pelos alunos atendidos no CMAI.

Nesse dia as crianças, que o CMAI atende no contra turno, não puderam comparecer. Então os professores fizeram o convite para a turma do 5º ano da EMCAP, para fazer parte desse momento. Foi quando um dos professores teve a ideia de realizar esse momento numa trilha, que dá acesso à caixa d’água que abastece a escola e a região, e também propôs que a secretária da escola, que também é cantora, tocasse seu violão fazendo um fundo musical para a ocasião.

A alegria das crianças era semelhante ao meu sentimento de pertença nessa ocasião. A trilha não era difícil de seguir e a paisagem da mata era um ambiente realmente inspirador e convidativo para tal atividade. Quando chegamos em uma clareira, o sr. Miguel nos contou o quanto aquele espaço havia se modificado e como ele havia auxiliado na construção da caixa d’água que abastece a região,

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que foram muitos homens envolvidos para carregar em meio à mata os materiais necessários para a construção, as crianças ficaram todas muito atentas com essas informações. A relação com a natureza de estar diretamente conectado com o ambiente do entorno corrobora com a perspectiva de bem viver e com a filosofia de vida das comunidades quilombolas na valorização do território.

Figura 22 (FONTE: A Autora, Trilha até a Caixa d’água- agosto/2019)

Figura 23 (FONTE: A Autora, Da esquerda para direita - Seu Miguel, Professor Gilberto, Alunos do 5º Ano, Trilha da Caixa d'água, agosto/2019)

Depois de contar sobre a construção do espaço, seu Miguel contou lendas sobre o folclore brasileiro. As crianças iam perguntando e contando outras histórias também. Uma delas era sobre bruxas que faziam tranças na crina dos cavalos, para que elas pudessem usar como rédea. Algumas crianças comentavam que seus pais já tinham contado histórias parecidas, outras disseram que os mesmos chegaram a ver as bruxas, quando eram crianças. O sr. Miguel continuou dizendo que são nos dias de quarta e sexta-feira que elas aparecem, após a meia-noite, para andar de cavalo. Disse que elas usavam os

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animais até cansarem, ou se perderem pela estrada a fora. Contou que havia acontecido várias vezes, e por isso os donos dos cavalos cortavam as crinas dos cavalos para evitar isso. As crianças estavam muito concentradas em suas histórias, assim como os professores e professoras que continuaram a perguntar sobre as lendas que ele conhecia.

Outra das estórias que ele contou foi sobre a Mãe d’ouro. Essa é uma lenda conhecida pela região sul do Brasil, onde uma mulher, que vive nos riachos, córregos, nascentes e alguns rios, encanta as pessoas para leva-los para baixo d’água. A sua forma de atrair os azarados é com o ouro e ela pode fazer aparecer, próximo a esses lugares, pequenas lascas de ouro ou até em formato de animais:

Então era um riachinho, e ela foi (Mãe D’Ouro), e apareceu um rapaz que estava andando lá. Era um ‘piazão’ ainda, naquele tempo, e apareceu um lagarto (de ouro) e logo perto tinha uma pedra grande, onde ele se escondeu, quando rapaz se aproximou a Mãe D’Ouro o levou, e sabe o que aconteceu com o rapaz depois? Ele ficou completamente gago, não conseguia mais nem sair sozinho, acabou perdendo o juízo! (Sr. Miguel, Caderno de Campo, agosto de 2019)

Quando o sr. Miguel contou sobre essa lenda, revivi memórias da minha infância e de outras lendas do folclore que meus familiares contavam em torno de uma fogueira. Tivemos que encerrar as estórias para retornar para escola, e no caminho de volta da trilha os professores foram conversando com as crianças, mostrando plantas e animais que apareciam pelo caminho. O sr. Miguel estava muito contente em contar para as crianças todas essas estórias e lendas. Ficou emocionado nesse momento, pois estava se despedindo da escola, para se aposentar. Foram anos trabalhando na escola, convivendo naquele espaço. Enquanto estávamos voltando ele foi me mostrando com orgulho as arvores que ele havia plantado no entorno da escola, com sentimento de nostalgia, de seus amigos, que já haviam falecido, e que também tinham arvores plantadas na escola. Esse momento foi uma rica experiência de Educação do Campo e de educação Escolar Quilombola

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Vivenciei com a turma do 5º ano do período da tarde outro momento empolgante. Um dos alunos me contou muito animado que faz petecas. Disse que faz de todos os jeitos, com penas, só com a palha, todos os estilos, e que aprendeu com seu pai. Durante a nossa conversa ele tirou uma da bolsa e me deu de presente, e me contando outras coisas que gosta de fazer quando não está na escola, como fazer arapucas, pipas e outros brinquedos. Ir até a cachoeira, ou andar de cavalo com seu pai e seus irmãos. A realidade da criança do campo é muito diferente de outras regiões, e quando é abordada na elaboração de atividades, no planejamento das aulas, o ensino se torna muito mais significativo.

Um pouco antes do fim da aula o professor do 5 º ano, deixou alguns minutos para que esses alunos brincassem, usaram a peteca para brincar enquanto outro grupo batia cartinhas. No caso da escola, não é necessária uma retomada dessas brincadeiras, mas sim uma valorização do seu uso na aprendizagem. O professor da turma me contou algumas de suas práticas, fez questão de me mostrar seus planejamentos, os livros e atividades que as crianças desenvolveram. Me contou que está desenvolvendo um projeto de confecção de máscaras Africanas, a partir da casca de coqueiros. Nesse projeto ele trabalhou com as crianças algumas técnicas de pinturas, falou que alguns povos africanos reproduziam em suas máscaras o rosto de animais da Savana. A intenção do professor era fazer pinturas reproduzindo animais da região, então em conjunto com os alunos estudaram sobre as cobras, aranhas, pacas e outros animais da região para realizar essas pinturas. Essa iniciativa do professor me deixou interessada em acompanhar os resultados finais.

Sobre organização do espaço, dentro da sala de aula do 5º ano as carteiras estavam em círculo, para que os estudantes pudessem se olhar durante as conversas e debates assim como a turma do 4º ano da tarde. A professora do 4º ano me explicou que prefere essa organização para melhorar a comunicação durante a aula, mas que gosta de variar na disposição dos lugares dependendo da proposta de atividade. A utilização do espaço nesses exemplos

Figura 24 (FONTE: A Autora, Peteca confeccionada por um dos educandos do 5º ano, 2019)

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demonstra que é preciso uma flexibilidade e criatividade no momento em propor o melhor planejamento para as atividades, que existe um planejamento. Demonstra também a subversão da lógica de controle que paira sobre a utilização do espaço. Não há regras dizendo na escola que a disposição das carteiras e cadeiras precisa ser em fileiras, porém foram apenas esses professores que pude acompanhar que trouxeram essa organização, fora a educação infantil que já apresenta um mobiliário em formato circular.

Quando visitei a Biblioteca da escola não imaginava encontrar uma vasta coleção de livros de literatura infantil sobre a temática racial, do campo ou indígena. Tanto na biblioteca da escola, quanto nos livros em sala de aula foram encontrados aproximadamente 86 livros de literatura que tratavam da temática étnico racial. A professora que assumiu as funções de bibliotecária aproveitou para me mostrar alguns de seus livros, que ela ganhou em formações voltadas às relações étnico-raciais, e que deixou para serem utilizados na escola, pois os livros destinados aos professores distribuídos pelo governo não se encontravam na escola. A professora relembrou que foram em formações de professores ofertadas pelo Estado, em 2005, que ela recebeu alguns livros sobre a história e cultura afro-brasileira. Como professora e negra, ela disse que participava de todas essas ações voltadas a temáticas raciais, incentivando a literatura para os alunos. Ela disse que os livros que ela emprestou para a escola teriam maior função auxiliando seus colegas na elaboração de atividades do que na sua casa. Outro ponto sobre os materiais é em relação aos livros didáticos. Apresentaram grande representatividade negra, da história e contribuições e também da atualidade. Encontrei nos livros utilizados em todas as turmas muitos exemplos que enaltecem a identidade negra, e também a identidade quilombola. Um Dos exemplos de representatividade é sobre a importância da data comemorativa da Consciência Negra, em 20 de novembro e sua história de construção através do poeta Oliveira Silveira, presente na imagem abaixo:

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Figura 25 ( FONTE: A Autora, Livro didático de história destinado ao 3º ano, agosto/2019)

Esse exemplo além de mostrar que as lutas dos movimentos sociais são de extrema importância nas reivindicações sobre a valorização da população negra, pois foi através das críticas, analises, denúncias e cobranças para se ter materiais educativos que trouxessem representatividade da população negra. Demonstra também que há grandes possibilidades de exploração dos materiais de apoio para os planejamentos das aulas. Que a escola tem recursos para serem utilizados, e que tem iniciativas de Educação do Campo e Educação Escolar Quilombola.

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