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4. Análises acerca das relações entre adolescentes e a escola

4.1. O cotidiano escolar e as referências culturais como constitutivos da adolescência

4.2.4. Mudanças X permanências

Smolka (2004) aponta que o sujeito se constitui como corpo marcado e nomeado pela linguagem numa trama de relações. Pois, para o homem o natural e o biológico são redimensionados pela vida de relação, pela cultura e pelos modos de produção. Nas relações com o outro as significações formam uma trama coletiva que é vivenciada de modo singular por cada indivíduo; Smolka nomeia isso como “drama” vivenciado:

(...) o drama emerge justamente do fato de que essa relação social consigo mesmo implica a trama de muitas experiências, muitas imagens, muitas histórias, muitos outros em muitas e diversas posições sociais (...) (op. cit., 2004, p. 45).

O adolescente tem suas características interpretadas nas relações sociais; estas, lhes fornecem um modelo para a sua construção social, ao mesmo tempo, essas características também são modificadas pelos sujeitos. E é a partir dessas significações sociais que o jovem tem referências para a construção de sua identidade, num processo de conversão do social em individual (OZELLA, 2003). Isso explica porque no discurso dos alunos entrevistados foi possível perceber uma reprodução das concepções instituídas socialmente acerca da adolescência — o que converge na conclusão da pesquisa de Ozella & Aguiar (2008)132

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Num trecho da entrevista de Sandra fica evidente como o estigma da adolescência rebelde acaba por influenciar na maneira como ela própria se via:

S: Eu sou meio chatinha, às vezes eu sou meio cricri mesmo. E às vezes eu pego no pé da minha mãe mesmo. (...) Então tem coisas que tem que pegar mesmo no pé, mas às vezes eu sou meio teimosa, sou bastante teimosa mesmo.

Em outra entrevista, a maneira como Michelle se descreve também reproduzia algumas das concepções instituídas socialmente acerca da adolescência:

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Essa pesquisa de Ozella & Aguiar (2008) coletou dados de 856 jovens do ensino médio, entre 14 e 21 anos, espalhados por toda a zona metropolitana de São Paulo. As informações foram catalogados conforme a divisão em classes econômicas (da A à E), gênero e etnia (brancos, negros e orientais). A conclusão dos autores é de que os jovens em geral reproduzem as concepções instituídas socialmente da adolescência.

M: Quando tem muita menina junto sabe que não vai dar certo né. (...) eu por exemplo eu sou estressada e eu sou marrenta, eu sou muito marrenta, se pisar no meu calo pode saber que eu vou te odiar pro resto da sua vida; não, eu vou te encher o saco. (...) Aí tipo, imagina trinta meninas de TPM dentro de uma sala. (...) tem dia que eu estou mais estressada, aí vem alguém me falar alguma coisa, aí já vira discussão, entendeu?

Nessa passagem, Michelle dá ênfase ao biológico no que se refere aos hormônios que afetam o humor. Encontramos dois estigmas presentes na cultura popular de nossa sociedade: tanto no que se refere à adolescência (puberdade), quanto ao ciclo menstrual feminino (TPM). No senso comum, ambos os estigmas carregam uma carga negativa, que combinados tornam-se um “desastre’ ― pior ainda numa turma com predomínio de garotas (curso técnico integrado de nutrição). No entanto, essa suposição não se confirma a partir do que foi constatado no trabalho de campo: as turmas mais problemáticas (no que se refere à indisciplina e notas) eram de cursos considerados masculinos, como o integrado de eletrônica e o de eletrotécnica.

Nos dois trechos anteriores, tanto Sandra quanto Michelle se descrevem com forte carga de negatividade, por vezes até exagerada. Porém, suas atitudes desenham um perfil contrário ao de adolescente rebelde. Isso ocorre porque o autoconhecimento (como adolescente) só é possível graças ao reconhecimento fora de si, pois o “socius ou o outro é um parceiro permanente do eu na vida psíquica” (WALLON, 1959, p. 165). E tanto o reconhecimento do outro, quanto o autoconhecimento do eu ocorrem pelo mesmo mecanismo de mediação social, na qual a linguagem ocupa papel central. Isso ocorre mesmo quando não há coincidência entre o que o outro pensa sobre mim, e o que o eu pensa sobre si mesmo, pois, a mediação social pode se caracterizar como movimento tenso e contraditório como Braga (2010) demonstra. Essa tensão (gerada pela diferença do que o eu pensa sobre si e do que o outro pensa sobre mim) explica, em parte, a contradição de concepções e significados acerca da adolescência que foi tratado no primeiro capítulo desta obra: as visões que os adultos têm dos adolescentes (muitas vezes errôneas) como rebeldes e problemáticos são constitutivos da adolescência mesmo que os próprios adolescentes não se reconheçam (ou não sejam) assim.

De forma recorrente, os entrevistados consideram a adolescência como tempo de formação, onde bojo das responsabilidades gravita em torno das obrigações escolares; em prol de uma ótima carreira profissional futura.

Alice descreve a adolescência como um período de preparação e de formação, onde a escolaridade seria algo indispensável, mas sem deixar de lado a diversão e o lazer — que se

demonstraram indissociáveis das amizades. Em várias passagens da entrevista a aluna comenta que a vida escolar seria “essencial” para ter um futuro melhor, “subir na vida”, “ter sucesso” e “um emprego bom”; mencionando inúmeras vezes que a entrada no mundo do trabalho é adiada em benefício da escolaridade.

Denis também significava o período que estava vivendo como tempo de preparação. Suas preocupações se voltavam à qualificação, que seria crucial para a inserção no mercado de trabalho. Sua preocupação em incrementar o “currículo” se explica por acreditar que seria mais difícil arrumar o primeiro emprego pelo fato de não ter “experiência” — e ter cursado o técnico ou ter proficiência em algum idioma seria um “algo a mais”, “um diferencial” na candidatura à vagas de emprego ou estágio.

Dentre todos os alunos entrevistados, Sandra foi a que apresentou o “perfil” de adolescente estudante de modo mais nítido, pois o espectro das relações que ela tinha com o mundo tinha a escola no centro das questões — isso não quer dizer que ela não tivesse outros espaços de socialização como a família ou a igreja, mas que ela “vivia a escola” de modo mais intenso e profundo. Ela havia assimilado as significações que a sociedade atribui sobre a adolescência: a ideia de que lugar de adolescente é na escola, um período para se dedicar aos estudos e postergar o mundo do trabalho ― por isso se sujeitava à jornada tripla de estudos.

Apesar de Michelle estar apenas no primeiro ano do técnico em nutrição integrado ao ensino médio, ela já se preocupava com o vestibular e era muito focada nos estudos. Fica claro que ela interpretava sua idade como tempo de formação (escolar e profissional). Deixou muito claro que queria passar por essa fase, da adolescência, o mais rápido possível devido à insatisfação de sua vida, sobretudo em âmbito familiar ― isso fazia com que mirasse o objetivo de ingressar numa faculdade, porta de entrada de uma carreira estruturada e que a possibilitasse de ter a autonomia financeira para poder se “livrar” dessa situação que a incomodava. Isto explica em parte porque na escola a sua prioridade era o estudo, até perguntei sobre as amizades e ela respondeu que “são poucos os amigos que se levam para sempre”. Além disso, Michelle demonstrava satisfação em estudar, como atividade prazerosa e que gostava de fazer. O trecho abaixo, da entrevista, é ilustrativo do foco nos estudos que Michelle apresentou:

A: (...) O que você mais gosta na escola?

M: O que eu mais gosto? É. Assim é que eu sou meio CDF, então eu gosto muito, tipo, de ter as coisas organizadas. Então eu gosto de principalmente do conteúdo, sabe? De aprender as matérias, assim.

A: Como que você define CDF?

M: CDF? (risos). Ah, tipo não é uma pessoa assim que é obsessiva. Mas uma pessoa que gosta de aprender. (...) Gosta de saber, de ter o conhecimento.

Galvão (1995) salienta que a teoria walloniana atribui que cada idade estabelece um tipo particular de interações entre o sujeito o meio. Nos nossos casos o adolescente e a escola apresentam uma ligação essencial; isso ocorre porque o desenvolvimento do indivíduo e sua constituição tem uma permeabilidade ao ambiente e à cultura. O indivíduo se constitui socialmente, torna-se membro de uma sociedade herdando o legado cultural dela (LEONTIEV, 1978). Isso contribui para que as formas que assumimos como identidades, incluindo-se os ciclos da vida e as idades, sejam construções culturais que podem variar historicamente. A partir desses pressupostos é possível afirmar que a escola é primordial133 no que se refere à constituição da adolescência; com uma rotina específica, na qual se integram uma rede de significados compartilhados socialmente — nessa perspectiva, viver uma adolescência não escolarizada seria como ter uma “adolescência diferente”, ou até mesmo uma “ausência de adolescência” na vida desse indivíduo. Além disso, as relações pessoais e de amizades tecidas na escola apresentam relevância no que se refere à constituição do sujeito enquanto adolescente. Um trecho da entrevista com Sandra é ilustrativo disso:

S: Ah, e também tem as amizades, né? Porque eu tô/eu faço muitas amizades. Porque fala: — Ah, e a vida social? Não, os meus amigos estão na minha escola. (...) É; eu vou conhecer pessoas onde se eu só estudo? Na escola! (...) Só que eu não saio muito com eles e tal. Então na verdade eu tenho medo de perder o contato. (...) eu tenho medo também de não continuar com amizade com algumas pessoas. (...) Agora, eu não sei como vai ser quando acabar [o médio e o técnico em Comunicação Visual], porque outros amigos, assim, na igreja eu não tenho muitos amigos e no inglês também são pessoas muito inteligentes que eu gostaria de continuar a ter contato, só que eu não sei se eu vou ter (...)

Ela própria reconhecia que sua vida social consistia principalmente na escola, e que talvez perderia a intensidade das amizades formadas durante esse. Ela percebia que sem aquele

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Mas não elemento único e exclusivo; como relatado pelos entrevistados a vida deles não se restringia apenas à esfera escolar, abrangia a família, amigos de fora da escola, igreja, locais de lazer e diversos outros locais.

conjunto de circunstâncias que vivenciava cotidianamente, perderia a configuração de sua vida de adolescente. Essa preocupação se explica, em parte, pelo fato dela estar no último ano do ensino médio, por isso o tom de lamento quando tocava no assunto. O mesmo não acontecia com outro aluno de terceiro ano do médio: Davi, 17 anos, que fazia o médio e o técnico na Etec João Goulart. Comentando sobre sua turma de ensino médio, percebe-se que Davi mirava para o futuro sem demonstrar uma nostalgia antecipada — como Sandra demonstrava.

Da: Olha, ela [sua turma do ensino médio] é bem assim, em questão de relacionamento é tranquilo. Nós já viemos juntos desde o primeiro ano, então já tem um entrosamento legal, o grupo. E todo mundo sabe respeitar os limites. Então já tem um amadurecimento, assim, bem visto, sabe? Do pessoal. Até a questão de: — Pô! Já está no terceiro ano, pessoal faz técnico, muitos já estão pensando na faculdade. E também sugere uma necessidade de você já enquadrar, né? De você já acordar um pouco para a vida.

Ao mencionar “acordar um pouco para a vida” e “necessidade de você já enquadrar”, Davi enxergava uma nova configuração de vida diferente da adolescente, por isso a necessidade de se readaptar para amadurecer e se tornar adulto.

Todos os entrevistados entendem que sair da adolescência é se tornar mais responsável, autônomo e livre — convergindo com as conclusões da já citada pesquisa de Ozella & Aguiar (2008). Sandra, Alice e Davi, que estavam terminando o terceiro ano do ensino médio e o último módulo do técnico, atribuíam ao momento que estavam vivendo como algo crucial, como uma etapa decisiva para o processo de desprendimento da dependência dos pais. Para todos os alunos tornar-se adulto significava ter mais responsabilidades, sendo que a maioria associava isso ao fim das coisas boas. Isso se relaciona com o que Calligaris (2000) chama de adolescência idealizada. Nossa cultura coloca a adolescência como um tempo de vida feliz, como adultos em férias, onde hipoteticamente não há obrigações, dificuldades e responsabilidades — elementos considerados exclusivos da vida adulta, o que não é verdade.

Em nossa sociedade não há um limite definido que estabeleça o fim da adolescência. Calligaris (2000) aponta que outras culturas apresentam um rito de iniciação (ou um conjunto de provas a cumprir) no lugar da adolescência, pois a cultura moderna ocidental traz o problema da indefinição do que seria um adulto. Este status não é definido por alguma competência específica, tampouco há uma definição objetiva do que é ser adulto. Se houvesse, não haveria adolescência, mas candidatos aptos ou não aptos para serem adultos.

Apesar de ser impossível delimitar um fim para a adolescência, devemos levar em conta que ela mantém uma ligação essencial com a escolarização. Terminar os estudos significa se distanciar do meio funcional que é a escola. Como o grupo etário da adolescência se constitui principalmente nesse meio (escolar), romper com a escola significa romper com parte de uma identidade pessoal marcada por um conjunto de significações (adolescência). Se houver a continuidade dos estudos numa universidade, o meio universitário marcará um novo “rótulo” ao indivíduo, que passará a ser visto como um jovem universitário ao invés de um típico adolescente aluno de ensino médio.

Essa perda de identidade (de adolescente-estudante do ensino médio) somada ao distanciamento dos laços afetivos tecidos no cotidiano escolar explica o vislumbrar de uma “vida nova” que surge no bojo da nostalgia de Alice:

A: E, como você se imagina sem estar na escola?

Al: Ah, eu acho que ia ser muito tedioso. (...) Não sei, a gente fica reclamando, quer logo que acabe as aulas, quer que acabe; acabe pra terminar logo isso. Mas eu acho que a gente vai sentir falta depois quando terminar. (...) eu fico triste porque tipo/começa até encher assim as lagriminhas. Não porque é mó legal, mesmo a sala não sendo muito unida, mas tipo a gente sente mó carinho um pelo outro assim e a gente conver/é tem alguns que a gente não conversa muito, mas tem uns que... eu sempre tento conversar com todo mundo. (...) Ah, meu Deus. Tô apavorada. (...) porque agora as reponsabilidades vão ser grandes. E eu gosto de estudar, gosto de vim ver o pessoal, gosto de ficar conversando. Ah, vai ser mó legal. Ai meu Deus, eu vou sentir falta de tudo isso.

Tornar-se adulto é algo indefinido, imprevisível e se delineia de forma individual — cada um tem a sua passagem. A idade adulta não começa após o término do ensino médio, nem no primeiro emprego registrado; ter filhos não significa ser adulto, assim como morar longe dos pais ou começar os estudos na universidade. Ser adulto é estar imerso em outro conjunto de circunstâncias distintas das existentes na adolescência, onde o sujeito se insere num meio social que coloca condições de existência (consideradas/significadas) típicas de um adulto — só assim o indivíduo deixará de “ser adolescente” para ganhar o status de adulto.