• Nenhum resultado encontrado

1. Sobre a “adolescência”

1.5. Voltando à “crise”

Essas ideias30 convergem no conceito de moratória de Calligaris (2000)31. O autor afirma que os adolescentes apresentam força física e mental para trabalhar, psicologicamente estão prontos para amar e fisicamente apresentam capacidade de reprodução. Porém, estão desautorizados a isso: a adolescência se apresenta como um tempo de suspensão e moratória, destinada à preparação para o sexo, para o amor e para o trabalho. O adolescente está preparado culturalmente e fisicamente para o “mundo adulto”, mas não possui autonomia (socialmente não estão autorizados a possuírem autonomia) para desenvolver atividades econômicas, financeiras e sexuais. Para Calligaris, a imposição dessa moratória (na qual o adolescente é desqualificado para determinados assuntos) é a principal causa da rebeldia presente nesta idade; mesmo porque nossa

29 Ou seja, a crise não se dá exclusivamente em função do biológico. 30

Aqui me refiro à oposição de Bock (2004, 2007) em relação à Aberastury & Knobel (1989) no que se refere à "crise" na adolescência.

31 Muitos autores com referencial teórico da psicanálise não levam em conta os fatores culturais e históricos na

constituição da adolescência. Embora Calligaris tenha esse referencial teórico, ele não descarta os fatores sociais para conceituar a adolescência.

sociedade promove um ideal de autonomia e o adolescente não tem um reconhecimento social para poder ser independente. A moratória da adolescência gravita em torno da indefinição do que seria um adulto na cultura moderna ocidental — em outras culturas a passagem para a vida adulta é bem nítida porque se dá por ritos de iniciação. Em nossa sociedade, um adulto não é definido por alguma competência específica — se fosse, não haveria adolescência, mas candidatos aptos ou não aptos à serem adultos —; em nossa sociedade não há “uma lista estabelecida de provas rituais” (op. cit., 2000, p. 21).

Assim, apesar dos referenciais teóricos diferentes, Calligaris (2000) e Bock (2004) reconhecem que há uma tensão ou crise na adolescência devido à configuração social, mas negam que isso ocorra em decorrência de fatores biológicos. Acerca dessa questão, Palacios (1995) argumenta que a maior parte dos adolescentes parece se situar em pontos intermediários entre os extremos de uma vivência isenta de tensões e uma época agitada e turbulenta. O autor propõe o conceito de “adolescências” para enfatizar os diferentes tipos de adolescentes, a diversidade e as diferentes formas e possibilidades de vivências a partir das condições sociais dessa faixa etária. Esse conceito supõe que o fenômeno da adolescência deve ser considerado pela perspectiva da história evolutiva, exclusiva do sujeito, e das características conjuntas da adolescência constituídas socialmente. O indivíduo têm uma história evolutiva e experiências diferentes ao longo da vida, o que possibilita o fato de experiências iguais terem significados diferentes. Nesta perspectiva, pode haver adolescentes que vivem uma tormenta e outros numa situação mais fácil (mas não isenta de problemas), porém, significam suas vidas de modo diferente:

[...] para alguns adolescentes, tirar a carteira de motorista significa poder levar seus amigos e amigas de carro, ir de um lugar para outro, exibir-se... Para outros adolescentes, ter a carteira de motorista significa poder aceder a um posto de trabalho, para o qual ela é um requisito necessário. Não se pretende dizer, com isto, que o primeiro tem uma adolescência tranquila e que o segundo tem turbulenta, pois poderá estar ocorrendo o contrário. (PALACIOS, 1995, p.269).

Num estudo posterior, Palacios & Oliva (2004) fazem uma revisão de literatura dos dados disponíveis acerca do tema e reiteram que a ideia de adolescência como período de crise e problema, de forma generalizada, não se sustenta. Os adolescentes devem enfrentar novos papéis, compromissos e conflitos; mas essas dificuldades não aparecem simultaneamente de uma vez só, elas surgem numa sequência de momentos diferentes (que ora podem coincidir, mas não todas de uma vez): acostumar com o próprio corpo; mostrar comportamentos tipicamente masculinos ou

femininos; primeiros encontros com o sexo oposto; decidir a carreira profissional ou os estudos que vai seguir — tudo isso não cai na cabeça do adolescente como um tijolo que vai desnorteá-lo, são “problemas” que lhes virão à mente numa espiral de preocupações que podem ser concomitantes, mas suportáveis na maioria das vezes. Os autores salientam a existência de determinado consenso entre os pesquisadores de que os adolescentes que experimentam algum tipo de desajuste psicológico não ultrapassam 20%, coincidindo com a porcentagem de crianças que passam por problemas parecidos na infância (PALACIOS & OLIVA, 2004, p. 314). A imagem negativa e distorcida da adolescência se deve ao fato de psiquiatras e psicólogos se basearem em dados procedentes de suas consultas com um grupo de pessoas com problemas acima da média da população e pouco representativa em termos estatísticos. Além disso, os autores reconhecem que o nosso contexto cultural não facilita muito essa idade: o custo de vida, as condições sociais, a competitividade no mercado de trabalho e o prolongamento da escolarização dificultam a realização do desejo de se tornar adulto (independência financeira, possibilidade de formar sua própria família e estabilidade profissional).

A divergência sobre a existência ou não da crise da adolescência consiste, em parte, no fato dos autores suporem coisas diferentes quando falam de crise. De maneira geral e simplificada podemos dizer que para a concepção tradicional (Stanley Hall, Debesse, Erickson, Osório, Aberastury e Knobel) a crise da adolescência é interpretada como algo natural e universal, se manifestando em forma de rebeldia e comportamentos negativos, onde todo ser humano inevitavelmente passaria por essa experiência devido às mudanças biológicas. As teses históricas e os estudos das ciências sociais32 negam a existência da crise como um acontecimento natural e universal da adolescência, pois ela é uma criação histórica, produto de determinada cultura — em outros tempos históricos e culturas ela inexistia, assim como os comportamentos negativos que a concepção tradicional diz existir. Essas ideias também são compartilhadas pelos autores da perspectiva sócio-histórica33, que enfatizam a constituição social do homem e não consideram que a maturação biológica seja o fator de rebeldia e problemas da adolescência. Esses autores criticam a grande carga negativa que a concepção dominante pressupõe a esta idade. Para Calligaris (2000) a moratória é a principal causa da crise, onde a desautorização social dos adolescentes terem status de adultos faz com que sejam rebeldes e adotem determinados

32 Margaret Mead (1928), Santos (1996), Ariès (1986) e César (1998). 33

Aguiar, Bock & Ozella (2001); Bock (1999, 2004, 2007); Bock & Liebesny (2003); Clímaco (1991); Gonçalves (2003); Ozella (2002, 2003); Ozella & Aguiar (2008); Tomio & Facci (2009).

comportamentos dessa idade; assim, a crise se configura na forma de atritos e discordâncias entre adolescentes e adultos relacionados aos seus papéis sociais. Quando Palacios & Oliva (2004, p. 314) negam a adolescência como período de crise e problema, ressaltando que para a maioria dos adolescentes essa fase não representa graves dificuldades e tensões, eles entendem “crise” como desajustes ou transtornos psicológicos que necessitem de um tratamento adequado de um profissional.

Wallon e Vygotski também admitem ou falam em crise, mas dão outras explicações e significados à “crise”. Wallon admite uma crise na fase da adolescência, mas essa crise se diferencia de tudo que foi tratado pelos outros autores até aqui. A teoria walloniana coloca a crise e o conflito como elementos constitutivos do desenvolvimento psicológico que possibilitam o crescimento e a superação do indivíduo (GALVÃO, 1995). Vygotski (1996), no texto “El problema de la edad”, ao analisar o processo de desenvolvimento descreve fases de estabilidade e instabilidades que são intercaladas por períodos de crise.

Desse modo, não podemos falar de “crise” da adolescência no singular, mas de diferentes “crises” que ora são associadas, ora são negadas à adolescência. Mesmo que as teorias apresentadas não entrem em consenso e apresentem divergências insuperáveis, elas trazem informações importantes sobre as diversas perspectivas e dimensões desse fenômeno. Vale lembrar que cada texto sobre a adolescência apresenta uma teoria que o alicerça, além de serem obras produzidas em circunstâncias específicas. Portanto, devem ser contextualizados não apenas como produtos de seu tempo, mas a partir de diferentes raízes epistemológicas.