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Os grupos e o meio escolar como constitutivos da adolescência

4. Análises acerca das relações entre adolescentes e a escola

4.1. O cotidiano escolar e as referências culturais como constitutivos da adolescência

4.1.2. Os grupos e o meio escolar como constitutivos da adolescência

Aqui iremos tecer algumas considerações sobre a relação entre o meio escolar e a adolescência como significado compartilhado socialmente. Para tanto, destacamos o conceito de meio proposto por Wallon:

O meio nada mais é do que o conjunto mais ou menos durável de circunstâncias nas quais se desenvolvem existências individuais. Ele comporta, evidentemente, condições físicas e naturais, que são, porém, transformadas pelas técnicas e pelos usos do grupo humano correspondente. A maneira pela qual o indivíduo pode satisfazer suas necessidades mais fundamentais depende do meio e, também, de certos refinamentos de costumes que podem fazer coexistir, nos mesmos locais, pessoas de meios diferentes. (Op. Cit., 1959 b, p. 170).

Wallon (1959b) toma a escola como um meio funcional111 onde há uma disciplina e relações interindividuais específicas, ao mesmo tempo em que é um meio local (onde as crianças ou adolescentes de diversos meios sociais se encontram). Os meios podem superpor-se para um mesmo indivíduo e, inclusive, entrar em conflito. Importante frisar que o meio social coloca as condições concretas de existência, que são coletivas. A escola não chega a ser um grupo, mas um meio em que se constituem grupos de diversas tendências — os adolescentes formam um grupo,

109 Socialização no sentido do indivíduo se tornar membro de uma determinada sociedade. 110

Neste texto, sempre que houver menção aos conceitos propostos por Wallon as palavras estarão em itálico.

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dentro do qual se configuram diversos outros grupos internamente. O grupo é indispensável à aprendizagem social, ao desenvolvimento da personalidade e consciência de si próprio.

No grupo há uma relação com o outro, possibilitando que o eu assuma a consciência de si (WALLON, 1959a). Como bem observa Braga (2010), a consciência de si próprio só é possível a partir do momento em que temos a consciência do outro, quando percebemos que somos o outro para o outro. E tanto o reconhecimento do outro, quanto o autoconhecimento do eu ocorrem pelo mesmo mecanismo de mediação social, na qual a linguagem ocupa papel central. A partir das observações é possível afirmar que no cotidiano escolar ser membro de uma determinada turma fazia parte da identidade de determinado aluno. Eles se reconheciam como membros de uma determinada coletividade que era a turma da qual pertenciam — qual a sala, o curso e o período que estavam. É a partir disso que teciam uma rede de relações com o universo escolar e nutriam laços de amizades ou de coleguismo.

Isso ocorre porque cada integrante do grupo se define num parâmetro comparativo em relação aos indivíduos pertencentes a outras categorias. “Os grupos provocam uma organização íntima da pessoa ao introduzir-lhe as diferentes categorias de relações com os outros. Estas categorias são relativas tanto à ação própria de cada um quanto ao meio social” (WALLON, 1959 b, p.178). Assim, a assimilação do eu em relação ao outro também se dá por intermédio do grupo — este é indispensável para a autoconsciência. O indivíduo aprende a se observar como sujeito e como objeto; tem consciência de si, consegue integrar diferentes aspectos ou momentos de existência, porque consegue distingui-los e classifica-los. Ser membro de um grupo implica em definir-se entre os outros que são semelhantes e diferentes ao mesmo tempo. A partir das condições concretas de vida, tomamos a adolescência como um grupo que se distingue das outras idades. Seja dentro desse grupo de pares, seja em oposição às outras faixas etárias, o adolescente terá a consciência de si, pois a relação do eu com o outro é constitutiva da pessoa (WALLON, 1959a).

O cotidiano dos adolescentes é permeado por diversas redes de amizades e coleguismo, onde diversos grupos circulam e interagem no meio escolar. Apesar de ser o mesmo espaço físico, muitos grupos não se encontram ou mantém contato na escola devido à alternância de horários — o desconhecimento mútuo se deve à distância e à “invisibilidade” das outras turmas. Os espaços da escola apresentam uma configuração diferente dependendo do horário e das pessoas que circulam nela. A sala de aula, por exemplo, ganha contornos específicos

dependendo do turno: de manhã ela pode abrigar uma turma do ensino médio, enquanto à tarde e à noite distintas turmas de cursos técnicos. Se um aluno da manhã perder a noção de tempo e entrar na sua sala de aula no período da tarde encontraria outra turma, com alunos diferentes (que apesar de frequentarem o mesmo espaço todos os dias nunca os encontrava em função do período), com conteúdos que ele não estaria habituado (disciplinas dos cursos técnicos que não estão presentes na grade do ensino médio) e ficaria deslocado como se estivesse “fora do lugar” — nessa dimensão estar no lugar certo na hora errada tem o sentido de estar no lugar errado. Talvez esse aluno se espantasse ao constatar que tem um “estranho” ocupando a carteira que geralmente se sentava; sendo que o único elo de contato entre os dois fossem rabiscos, desenhos e algumas coisas escritas na mesa que compartilhavam em horários diferentes. Se esse mesmo aluno andar pelo corredor e pelo pátio, ele também estranharia a situação, pois haveria diferentes grupos de alunos, inspetores de classe, professores e outros funcionários — como se essas pessoas não fizessem parte do “cenário” que costumava ver; os rostos dessas pessoas não lhe pareceriam familiar como os rostos (tanto dos conhecidos, quanto dos desconhecidos “não estranhos”) presentes no período da manhã. Por sua vez, os alunos da classe que tiveram a aula interrompida por aquele “estranho” (aluno da manhã que nunca viram antes) poderiam supor que ele estivesse “perdido” ou no lugar errado.

O amalgama de diferentes alunos ganha liga através dos laços de amizades, formando diversos grupos (ou “panelinhas”) que mantém uma relação de proximidade, podendo criar um “pedaço”112

— onde o determinante é constituído por relações estabelecidas entre seus membros e pelo manejo de símbolos e códigos comuns. Esses “grupinhos” de alunos acabam se tornando reconhecíveis e familiarizados quando se deslocavam pela escola113. Eles mudavam de ponto facilmente, levando o “pedaço” junto — a relação do “pedaço” com o meio escolar (espaço) é mais transitória, pois pode mudar-se de um ponto a outro sem se dissolver. O componente constitutivo do “pedaço” é o simbólico, em razão da forte presença de uma rede de sociabilidade

112 Aqui me utilizo do conceito “pedaço” elaborado por Magnani, que remete à um “campo de interação em que as

pessoas se encontram, criam novos laços, tratam das diferenças” (op. cit., 2003, p. 86) formando redes de sociabilidade.

113 Durante o trabalho de campo acabei me familiarizando com determinados grupos de alunos, mesmo não os

conhecendo pessoalmente, os “conhecia de vista” ― era normal eles estarem em determinados cantos da escola em determinados períodos.

entre seus membros. Isso explica em parte porque na adolescência há uma tendência de aproximação entre os amigos.114

Na adolescência a constituição dos grupos se dá numa configuração social (como alunos), num patamar acima das amizades e afeições:

“(...) a existência de um grupo não se baseia somente nas relações afetivas dos indivíduos entre si, e, mesmo que o seu objetivo seja mantê-las, a própria constituição do grupo impõe a seus membros obrigações definidas. O grupo é o veículo ou o iniciador de práticas sociais. Ele transcende as relações puramente subjetivas de pessoa a pessoa” (WALLON, 1959 b, p. 178).

Assim, a constituição dos grupos se dá pelas práticas sociais desses jovens, que no caso dos participantes de nossa pesquisa estava atrelada ao “papel de adolescente estudante” — se preocupar com os estudos, ter interesses específicos relacionados à música, vestuário, formas de lazer e diversos outros bens de consumo. Por sua vez, essas práticas sociais ganham razão de ser e sentido a partir do meio (escolar), que dispõe aos indivíduos e aos grupos as condições concretas de existência — condições essas que são carregadas de circunstâncias ideológicas. Acerca disso Wallon afirma:

Em frente aos grupos organizados o meio ou os meios representam o conjunto de circunstâncias físicas, humanas ou ideológicas que confluem num mesmo momento. Sua influência é mais forte do que a dos grupos. Ela pode, no entanto, suscitar reações e, em particular, reações de grupo. Seus efeitos são tão mais diretos quanto menos solidamente organizadas forem as condutas daqueles que a sofrem. (op. cit., 1959 b, p.178).

Desse modo, a escola como meio contribui fortemente para criar determinadas condições materiais de existência que produz a adolescência como signo compartilhado socialmente. Smolka afirma que a significação “acontece na interação dialética, histórica, entre psiquismo e ideologia” (op. cit., 2004, p. 46), ou seja, se produz numa materialidade simbólica, que resulta das relações dos homens em interação e das condições concretas de vida.

Nesse processo de significação da adolescência como fenômeno social ocorre uma diferenciação com as outras faixas etárias; os adolescentes agem como tais, eles têm interesses,

114 Não que as amizades anulem as possibilidades de uma maior aproximação com os pais ou que naturalmente se

crie um abismo entre pais e filhos — talvez isso dependa mais dos próprios indivíduos do que as condições de vida na adolescência.

obrigações e preocupações diferentes das outras idades devido às suas condições de vida fortemente influenciadas pelo meio escolar. Nas três escolas que compõem nosso estudo de caso me deparei115 com alguns eventos “típicos” da adolescência, como o “dia do brega” ou o “dia do pijama”, onde os alunos de algumas classes combinavam previamente de irem à escola com determinada indumentária. Esses eventos inusitados, combinados previamente, eram organizados pelos alunos dos terceiros anos do ensino médio, como forma de despedida e comemoração ao término do ensino médio — eles percebiam que aquela rotina previsível e repetitivo, onde todos tinham certeza que iriam se encontrar na sala de aula em determinado horário e dias da semana, iria acabar.

Além disso, constatamos outros eventos organizados pelos próprios alunos e negociados com a direção e a coordenação. Na Etec João Goulart havia uma tradição de se realizar um sarau, por volta de quatro vezes ao ano, no pátio da escola no período do almoço. Nesses saraus havia danças, bandas de músicas, recitação de poemas e outros espetáculos improvisados com equipamentos do grêmio estudantil, como os amplificadores e microfones. Nessa escola também ocorre todo ano uma semana de comemoração do aniversário da escola, onde diversos projetos organizados pelos professores são abertos ao público: exposições temáticas (projetos dos cursos técnicos; exposições ou projetos interdisciplinares das matérias do ensino médio) e espetáculos artísticos como apresentações teatrais e de danças. No Newton era comum ver alunos divulgando de sala em sala, ou através de cartazes, alguns eventos como festivais de bandas e campeonatos de futsal, de vôlei, de jogos de tabuleiro (dama, xadrez) e de cartas (Magic e outros TCGs). Nessa mesma escola, no final do ano de 2012 houve um concurso cultural para escolher os alunos que poderiam fazer uma pintura decorativa dos armários utilizados pelos próprios alunos que ficam nos corredores. Na Etec Alexandria me deparei com eventos que eram organizados pela direção e coordenação da escola, mas que tinha grande participação dos alunos como a festa junina, a semana de aniversário da escola e uma festa de halloween. Neste último evento foi possível acompanhar os próprios alunos montarem uma “balada” dentro da escola na manhã de uma sexta-feira, com direito a caixas de som, jogo de luzes, um globo brilhante de danceteria e todos fantasiados.

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A possibilidade de conhecimento desses eventos não se deu apenas como pesquisador nestas escolas, mas também pela experiência de vida como docente que fazia parte do cotidiano escolar desses adolescentes.

Esses eventos e rotinas escolares são constitutivos da adolescência — que passa a ter contornos e particularidades específicos. Outros elementos, tais como as brincadeiras e a gestualidade, também contribuem na distinção dessa idade — não são consideradas infantis nem adultas. Durante as observações de inspiração etnográfica presenciei um garoto brincando com seu smartphone, que tinha um app que emulava uma espingarda com som e tudo; ele corria pelo corredor da escola fingindo que estava dando “tiro” em todo mundo. Contabilizei umas nove pessoas “baleadas” até a inspetora aparecer para mandá-lo entrar na sala de aula. Nesse momento ele descarregou a “arma” mirando na inspetora, acho que foram uns cinco “tiros” só na cabeça. A inspetora ria da brincadeira e mandava o garoto voltar para a sala.

A gestualidade também se demonstra como um elemento de diferenciação e distinção dessa idade. Nas observações foi comum presenciar adolescentes que “saltitavam” em meio à sua locomoção, seja um garoto fingindo que estava mantendo uma posição de guarda de algum tipo de luta (boxe ou muay thai) enquanto ia em direção a algum amigo, seja uma garota saltitando inspirada numa bailarina; esse tipo de deslocamento se apresenta como algo presente, não era algo muito frequente que sempre acontecia, mas também não era algo raro de se ver. Entre grupinhos de amigos era comum ver conversas animadas, onde muitas expressões faciais e corporais acompanhavam gritos e expressões sonoras. Essa gestualidade, típica de pessoas completamente absorvidas e entretidas num assunto em questão, parecia exagerada se comparada à adulta — um tapa no joelho quando se estava sentando, um murro na mesa, as mãos esfregando nos cabelos, um salto acompanhando um grito de alegria.

Em outra situação me deparei com um aluno que carregava um ornitorrinco de pelúcia que seu colega havia trazido para a escola. Perguntei se era “dia do brinquedo”, fazendo alusão à prática corrente do ensino fundamental de permitir às crianças trazerem brinquedos para a escola em determinados dias da semana. O aluno respondeu com uma voz forçada de criança dizendo: “Ééééé sim!!!”, enquanto pulava e agitava o boneco.

Todas essas ações, gestualidades e brincadeiras são consideradas “coisas de adolescente”; o que contribui para que essa idade, a adolescência, se configure como fato social, apresentando determinados contornos que derivam das significações que a sociedade faz desse período de vida (BOCK, 2004, p. 42). Palácios & Oliva (2004) captam, de forma satisfatória, quais seriam as principais características daqueles que são (significados) adolescentes na cultura ocidental contemporânea: a) estar no sistema escolar e em busca de emprego estável; b) depender

(financeiramente e afetivamente) e viver com os pais; c) viver uma transição do apego centrado na família para outro centrado num grupo de iguais ou numa pessoa de outro sexo; d) sentir-se membro de uma cultura de idade (adolescente) com hábitos e moda próprios; e) ter preocupações e inquietações que não são da infância, mas que também não são de adultos. Essas características são atribuídas à adolescência simplesmente porque foram significadas dessa maneira116. Smolka (2004) nos demonstra que as possibilidades de significação se ancoram nas práticas sociais, na experiência partilhada das relações interpessoais; nas palavras da autora: “A significação, como produção de signos e sentidos, é (resultante de) um trabalho coletivo em aberto, que implica ao mesmo tempo, acordo mútuo, estabilização, e diferença (inter-in-compreensão constitutiva...)” (op. cit., 2004, p. 44).

Em suma, o cotidiano escolar é constitutivo da adolescência. A escola ocupa lugar de destaque na vida dos adolescentes por “irradiar” uma rede de significados socialmente estabelecidos. Assim, a rotina escolar é permeado por uma trama de valores e ideias que tecem uma “normalidade” crucial, mas não única, no processo de constituição da adolescência como referência cultural. Vimos que as regras da escola — um aspecto “invisível” do cotidiano (ERICKSON, 1989; FONSECA, 1998) e que por isso são tomadas como “normais” e aceitas pela sociedade como um todo — mantém uma ligação essencial à noção de adolescência porque ditam determinadas expectativas e exigências que são cobradas dos adolescentes. Estes, a partir dessas condições concretas, agem como alunos — papel indissociável à adolescência escolarizada. Por sua vez, o autoconhecimento de si (eu) como adolescente só é possível com o reconhecimento do outro (WALLON, 1959). Os adolescentes se reconhecem como tais, distinguem-se dos adultos e de outras idades. Passam a maior parte do dia dentro da escola, onde são nivelados pela idade, imersos num conjunto de circunstâncias distintas das existentes em outras etapas da vida — ou seja, os grupos e o meio escolar são constitutivos da adolescência, numa circunstância em que ser adolescente é indissociável de ser estudante. Assim, as condições sociais constroem determinadas “adolescências” (PALACIOS, 1995), que são constituídas nas relações sociais e na cultura; e que por isso podem apresentar heterogeneidades dentro de determinados contornos etários.

116 Essa pesquisa se limita apenas a algumas dimensões e características específicas das "adolescências" (Palacios,

1995). Não negamos a existência de outras vivências e condições de adolescentes que se encontram fora deste contexto.

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Como dito anteriormente, a partir dos materiais das entrevistas, que compõem um estudo múltiplo de casos, reunimos alguns pontos recorrentes nas narrações singulares da experiência de vida desses adolescentes, a partir dos quais estabelecemos algumas categorias analíticas, apresentadas a seguir.