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2. Objetivos e quadro teórico metodológico para coleta de dados

2.1. A observação

Grande parte dos dados de pesquisa foi coletada mediante entrevistas individuais, mas num primeiro momento, para uma sondagem do ambiente escolar, foi realizada uma observação com inspiração etnográfica. Importante observar que essa etapa de coleta foi extremamente frutífera, pois permitiu mergulhar no cotidiano dos alunos sem se restringir na sala de aula, além de possibilitar uma aproximação, ou acesso, dos significados nas vivências adolescentes.

Durante as observações nos inspiramos no estudo de Geertz (1995), que traz o conceito semiótico de cultura — na qual o homem se encontra amarrado em teias de significados que ele mesmo teceu. O conceito de cultura semiótico pressupõe a cultura como diversos

51 Como veremos no capítulo 3 esse tipo de alunato apresenta diferenças significativas se comparada com a

realidade escolar em âmbito nacional.

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sistemas entrelaçados de signos e símbolos, o que converge na nossa tese da adolescência como fenômeno criado em determinado contexto histórico e cultural. Nossas observações estão relacionadas à “descrição densa” ─ teoria interpretativa da cultura que busca explicar uma trama de significados dos eventos ao invés de apenas descrevê-los ─ na medida em que orientamos nossa atenção aos significados das ações e vivências dos adolescentes.53

Atentamos à “invisibilidade da vida cotidiana” (ERICKSON, 1989), onde a familiaridade e o trivial encobrem a realidade, num esforço de transformar o “familiar” em “estranho” para aguçar nossa percepção de realidade. Assim, nossas observações foram conduzidas com atenção especial ao cotidiano escolar, pois é nele que determinada noção de adolescência se manifesta numa configuração de normalidade. Pressupomos que na uniformidade aparente presente na vida social e nas semelhanças superficiais encobre-se uma grande diversidade ─ diversidade essa que pode nos revelar uma visão mais abrangente da adolescência.

Os procedimentos de observação seguiram as recomendações de Beaud e Weber (2007). A utilização de um caderno de campo foi indispensável na tomada de notas sobre eventos, dados, esquemas, análises provisórias e observações — interações, encontros, o que ouvi, o que fiz, o que me agradou ou chocou. A coleta de dados consistiu, também, na recolha de fontes que nos ajudaram na escolha dos informantes e em informações acerca desses alunos: lista de classes, listas de alunos, ficha de ocorrências e etc. O contato com funcionários e professores também compuseram a coleta de dados.

2.1.1. A entrada em campo: considerações sobre as observações.

A observação, de inspiração etnográfica, foi realizada apenas na Etec João Goulart, localizada na zona sul de São Paulo.54 Essa escola foi escolhida porque o intuito das observações era não se restringir à sala de aula — e dentre as três Etecs dessa pesquisa, apenas ela trazia essa possibilidade porque o convívio dos alunos extrapolava em muito a sala de aula. Pelo seu porte, e também por alguns problemas de financiamento55, essa era a única escola que os alunos tinham

53 Interessante observar que apesar do referencial teórico de Geertz se diferenciar da Teoria Histórico-Cultural,

ambas as teorias apresentam analogias e convergências no que se trata da cultura e o ser humano.

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Embora o trabalho de campo se restringiu à Etec João Goulart, as outras duas Etec’s também foram observadas, mas de maneira diferente — sob a perspectiva de professor nessas escolas.

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Essa escola apresentava falta de funcionários (inspetores e outros agentes escolares) que desse suporte no controle e organização da escola, mas isso não quer dizer que a escola tinha graves problemas de indisciplina.

mais liberdade para saírem da sala de aula56. Nessa escola também havia uma facilidade do aluno sair da escola, pois o período matutino englobava alguns cursos técnicos — com alunos (mais velhos) e horários (hora de entrar e sair) diferenciados — além do ensino médio, por isso era difícil o controle do fluxo de quem entrava e saía porque havia diferentes horários para cursos distintos.

Desse modo, no cenário rotineiro dessa escola sempre havia alunos espalhados pela escola circulando, e os poucos inspetores de alunos — para ser mais exato apenas três por turno para dar conta de quase 1.500 alunos num prédio de quatro andares (dois no subsolo, o térreo e o primeiro andar) naquele período — tentando encaminhá-los para a sala de aula ou à orientação pedagógica. Nas outras duas Etecs era muito raro um aluno estar fora da sala de aula, os corredores estavam sempre vazios e por isso se um aluno tentava “matar aula” ele logo seria percebido pelos inspetores porque ficava “bem visível” — não havia uma multidão para se camuflar e garantir o anonimato. Apesar dessa característica, a Etec João Goulart tinha uma boa reputação em relação ao nível de qualidade educacional que oferecia.57

Grande parte das observações foi realizada nas quintas-feiras durante o período da manhã58, se concentrando numa sala chamada “orientação pedagógica”. Claro que não me restringi apenas a essa sala — embora seja o local em que a maior parte dos dados foram coletados. Por vezes sondei diversos corredores e o pátio. Também não me restringi temporalmente nas manhãs das quintas-feiras, busquei cobrir algumas situações ou eventos completamente diferentes do casual, como o de uma festa que ocorreu num sábado letivo.

A minha entrada em campo foi pouco usual, pois eu já estava “dentro” da escola como professor59 — o que me ajudou a conseguir as autorizações e a entregar o Termo de Livre Consentimento Esclarecido com mais facilidade. Além disso, conhecer previamente aquela

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Ou “matar aula” como eles diziam; muitos aproveitavam para “fugir” durante a troca de professores ou até mesmo não retornavam à sala depois do intervalo ou quando tinham que mudar de ambiente (laboratório de informática, biblioteca, quadra, sala de artes).

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Isso se comprova pelos resultados do ENEM, além de grande concorrência e demanda no processo seletivo daquela instituição.

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Cabe salientar que eu mesmo era docente na referida escola, o que

59 O fato de eu ser docente nessa escola contribuiu para o acesso a muitas informações que um observador “de

fora” não teria. Isso não interferiu a ação dos alunos durante as observações, em vista da maioria deles não me conhecerem. Conhecia pessoalmente por volta de duzentos alunos, que no momento estavam tendo aula comigo ou já tiveram, num universo de mais ou menos 1.500 alunos do ensino médio e técnico. A maioria dos alunos que observei sequer sabiam que eu era docente, muitos me confundiam como aluno (pela minha aparência) ou estagiário.

escola me permitiu escolher um local específico que se adequasse melhor aos propósitos de minha observação.

A sala de orientação pedagógica se localiza no primeiro andar, num corredor que abriga em torno de 25 salas.60 Nesse corredor as salas de aula seguiam uma numeração, ele começava com as salas dos segundos anos e terminava com a dos terceiros. A sala de orientação pedagógica se encontrava entre as últimas salas dos segundos anos e as primeiras salas dos terceiros anos.

Quando o sinal entre aulas tocava esse corredor se tornava barulhento por alguns minutos; na troca de professores alguns alunos aproveitavam para ir ao banheiro ou beber água, buscavam algo nos armários, desciam para comprar alguma coisa na cantina, trocavam de sala quando a aula era em outro ambiente; alguns simplesmente saiam para conversar com seus amigos formando grupinhos em meio ao corredor, enquanto outros desciam para o pátio. Esse corredor obedecia uma certa regularidade de calmaria (nos períodos de aulas) e alvoroço (nas trocas de aulas, nos intervalos) ditado pelo sinal sonoro da escola. Quando o sinal tocava, o fluxo de pessoas era intenso e o ruído aumentava drasticamente, chegando a atrapalhar alguns professores que estavam dando duas aulas seguidas numa mesma sala. Percebi que a sala de orientação pedagógica se tornava mais movimentada e requisitada nesses momentos em que o corredor se encontrava tumultuado durante as trocas de aulas.

Quando iniciei as observações, eu já conhecia as funcionárias da sala de orientação pedagógica. Conhecia Regina e Mariana apenas como colegas de trabalho, a maioria das comunicações que elas estabeleciam comigo se davam por meio escrito — avisos diversos sobre alunos nos diários de classe, como dispensas e atestados médicos, que eu precisava assinar. Antes de iniciar o trabalho de campo perguntei sobre a possibilidade e pedi permissão à Mariana. Fui muito bem recebido, ela se mostrou muito disposta a me receber e até se preocupou em como poderia me ajudar. Mariana foi muito aberta e receptiva comigo, e com as observações percebi que essa característica é muito forte na personalidade dela, que agia cordialmente da mesma forma com os alunos.

60 Nesse corredor havia dez salas de aula dos segundos anos do ensino médio, dez dos terceiros, dois banheiros, a

sala da coordenação, uma sala que abriga livros didáticos, um laboratório de Física, uma gráfica da qual os professores retiram impressões de provas e atividades, e a sala da orientação pedagógica.

Mariana era formada em pedagogia e tinha especialização em psicopedagogia, o cargo que ela ocupava na escola era de Ata (Assistente Técnico Administrativo)61, ela fazia o “papel” de orientadora pedagógica. Ela orientava e dava suporte — muitas vezes afetivo e/ou educativo — aos alunos, para que estes tivessem sucesso intelectual ou apenas uma boa e agradável vivência na escola. É interessante ressaltar que não encontrei isso nas outras duas Etecs62. Na sala da orientação pedagógica a figura central era Mariana, que se encontrava presente na maior parte do tempo. Regina também era Ata, mas se encarregava da distribuição de livros didáticos e autorizações diversas que por vezes os alunos necessitavam. Na maior parte do tempo Regina se encontrava fora da sala de orientação pedagógica resolvendo algo ou atendendo os alunos.

Grande parte dos problemas de indisciplina era encaminhada à Mariana, assim como outros problemas — de saúde, psicológicos, afetivos, de inserção social, familiares — que de certa forma afetavam o desempenho escolar dos alunos. Mariana estabelecia, em grande parte, uma ponte de ligação dos problemas pessoais dos alunos aos professores através de recados fixados nos diários de classe e conversas na sala dos professores. Percebi que Mariana sabia muito mais sobre determinados alunos do que os próprios professores, além de buscar manter um diálogo constante com os pais dos discentes. Ela também mantinha um contato estreito com os alunos do Grêmio estudantil, com representantes de salas, com os alunos considerados “problemas” e até outros alunos que simplesmente mantinham laços de amizade com ela.