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Como vimos no primeiro capítulo, nas obras que antecederam “O Ser e o Nada”, em “A Transcendência do Ego”, a consciência foi entendida como espontaneidade sem conteúdo, sem eu. Em “O Imaginário” a consciência foi descrita como imaginação e percepção, como percepção da realidade e como função irrealizante ou imaginação. O real e o irreal fazem parte da realidade do mundo, e mesmo a imagem não é conteúdo de consciência.

A teoria das emoções mostrou a consciência como um dos componentes da realidade, com uma estrutura de escolha, que motiva os comportamentos. As emoções são o resultado das reações do homem contra o mundo (SARTRE, 1972), e é a consciência que se relaciona com o mundo e se emociona. O homem vive em situação, num processo de liberdade, experimenta-se no mundo e se emociona.

Em 1943, Sartre publicou “O Ser e o Nada, Ensaio de Ontologia Fenomenológica”. Em “O Ser e o Nada”, a consciência se mostra como um dos componentes da realidade, a intencionalidade é um dos princípios fundamentais no entendimento da consciência, a consciência é absoluto de transparência e espontaneidade, e a coisa é um absoluto de opacidade. As coisas não estão na consciência e a consciência não se dissolve nas coisas, são dois absolutos. A consciência é um nada, um vazio total, o mundo todo está fora dela e a consciência se faz, ou acontece, por meio de suas escolhas, no mundo objetivo.

A filosofia e a psicologia devem ser entendidas pelos fatos objetivamente concretos. O homem passou a ser pensado como um ser no mundo, ou como um ser diante do mundo. A intencionalidade é um princípio fundamental dessa relação para o pensamento

fenomenológico. A consciência não é substância, nem mesmo o ego pode habita-la. A consciência é vazia, um nada que permite nos separarmos das coisas. Num movimento para fora de si, a consciência existe diante do objeto, do mundo. Não há consciência que não seja consciência de um objeto transcendente, a consciência não escapa à condição de intencionalidade e existe na medida em que aparece. A consciência é um absoluto de aparência e existência, além de ser separada do mundo, desabitada de ego e de qualquer conteúdo e existir em relação a um objeto transcendente. Por isso, se pode dizer que a consciência é intenção:

A consciência é consciência de alguma coisa: significa que a transcendência é estrutura constitutiva da consciência, quer dizer, a consciência nasce tendo por objeto um ser que ela não é. Chamamos isto de prova ontológica (SARTRE, 1997, p. 34).

Pela intencionalidade, chegamos à descrição fenomenológica da consciência como sendo um nada em face do ser. A consciência é um nada que se apresenta também como função nadificadora. Na percepção, a consciência se anula para constituir o real como mundo e também se evidencia não sendo essa coisa, existindo totalmente separada do mundo percebido. A consciência é o próprio nada diante do ser.

O homem é concreto como ser no mundo, como relação com o mundo, como um nada humano e um nada transcendente. Sartre partiu da interrogação acerca do que é o homem e o mundo para que seja possível uma relação, pois foi com base nas condutas humanas que fez a análise do ser e do nada.

[...] acaba de surgir novo componente diante do real: o não-ser. [...] porque já não temos de tratar só das relações entre o ser humano e ser-em-si, mas também entre ser e não-ser e não-ser humano e não-ser transcendente (SARTRE 1997, p. 46).

O ser e o “não-ser”, ou a afirmação e a negação, são sustentados pela realidade objetiva. O ser e o nada aparecem como realidades objetivas. Uma conduta interrogativa só faz sentido porque pode haver uma afirmação ou uma negação como resposta. Ao se esperar num bar um amigo, a presença ou a ausência deste é um dado de realidade objetiva, pois o amigo está ou não está; existe, mas em outro lugar. A consciência expressa uma negação em forma de consciência de negação, ela não produz a negação, mas apenas a constata. A verdade objetiva é a verdade do ser e do nada.

Sartre chegou ao ser e o nada com a autonomia da consciência e do mundo, vendo a consciência e o ser como dois absolutos. A ontologia fenomenológica de Sartre é a descrição desses dois pólos, a consciência e o mundo, ou a consciência e o ser. A consciência não tem interioridade, se constata no exterior dela mesma, uma vez que é sempre “consciência de”, e a subjetividade é um momento da realidade objetiva. O sujeito se reconhece por meio do mundo, e a subjetividade se faz presente no momento objetivo. Em Sartre, no texto “Questão de Método” (2002), podemos entender a subjetividade como um momento do processo objetivo, como uma interiorização/exteriorização sucessiva e ininterrupta. Nós mesmos estamos fora de nós, no mundo, e nossa interioridade é também nossa exterioridade. A ontologia fenomenológica consiste nessa praxis, nessa objetividade, e é por isso que não recorre a fundamentos metafísicos. A realidade é a objetividade, seja da consciência ou das coisas.

O homem é corpo e consciência, é pelo corpo que a consciência se faz realidade objetiva. A consciência comanda todos os fenômenos psíquicos, as ações ou condutas, e cada singularidade está no mundo, seres entre seres, coisas entre coisas. Corpo e consciência constituem o psíquico. A consciência como nada não escapa à materialidade pelo corpo, pelo homem em si. A consciência só aparece como realidade objetiva por intermédio do homem. Assim ser e nada são fenômenos objetivos e concretos.

O ser e o nada são componentes do real, e consciência e coisa, ou fenômeno, são relações concretas. A consciência é singular assim como seus significados, e o mundo como ser e como nada está sempre em devir, pelo determinismo das coisas e pela relação do homem com o mundo. Assim tudo está em devir, tudo está em curso, a relação dialética consciência/mundo é um fato singular e objetivo e não se absolutiza, permanece em curso. Isso fez aparecer uma nova compreensão do mundo. O projeto fenomenológico de Sartre apresentou um novo método para a filosofia dentro de uma expressão concreta, rompendo com as concepções abstratas, subjetivistas e metafísicas. Sartre propôs uma ontologia que permite tratar da experiência coerente com os princípios da ciência, com o pensamento moderno, que se volta para uma relação com a objetividade. O pensamento moderno faz uma exigência de cientificidade. Sartre se opôs às teorias do absoluto, idealistas ou materialistas, que desvirtuam a dialética da realidade. A fenomenologia apontou novos caminhos na questão do conhecimento, e veio romper com o idealismo e realismo que dominavam a filosofia até então. Isso levou à ruptura com as dualidades essência/aparência, potência/ato, alma/corpo.

Com a ontologia de Sartre, a filosofia passou a se sustentar numa verdade objetiva do mundo. O ser e o nada estão objetivamente dados como ser e como consciência e com

autonomia de ambos. As coisas não estão mais na consciência e a consciência não se converte em coisas. A ontologia de Sartre, descrevendo a relação entre o ser e o nada, fez isso fugindo do problema dos dualismos, e quanto ao ser ao nada, um não se dissolve no outro, caracterizando a supremacia da consciência e da realidade do mundo. A consciência em perpétua relação com o mundo não pode coincidir consigo mesma, é totalidade destotalizada ininterruptamente. A consciência acontece no mundo no processo de objetivação e é sempre consciência de alguma coisa. O nada não pode ser concebido a partir do “Em-si”, que é pura positividade, a consciência não se sustenta em si mesma, mas num corpo, e se reconhece na relação com o objeto. Pelo corpo, o homem é materialidade, é “Em-si”, e pela consciência é o que não é e não é o que é. O homem é corpo e consciência na faticidade da existência, o objetivo passa pelo subjetivo e o subjetivo pelo objetivo, fazendo-se momento do processo objetivo, se constituindo na relação homem/mundo. A realidade humana é um processo objetivado em curso.