• Nenhum resultado encontrado

[...] esse futuro escritor não foi favorecido ao nascer; nada de “temperamento artístico” nem de “talento de poeta”. Aos quinze anos só pensava em fazer o mal. Quando encontrou a beleza, foi uma evidência tardia, um fruto fora de estação

(SARTRE, 2002, p. 339).

A expressão de Genet começou se modificar como reflexo de uma atitude mais espontânea que premeditada. Até então, o sonho, o imaginário, estavam no ser mau. A escolha pelo mal estava calcada no imaginário, nos devaneios infantis, nas aparências. Suas escolhas escondiam um projeto fundamental de responder ao mundo com maldade, já que foi assim que foi recebido ao nascer e ao se desenvolver. O sonho de ser um grande mal parecia também pouco favorecido, uma vez que Genet, era um marginal miserável, um mendigo, frustrado na tentativa de ser um grande bandido, um forte ser do mal. Genet foi um grande falsificador, uma grande aparência e é pela aparência que ele queria o mal para o mundo que tanto lhe fez mal, que o agrediu ferozmente. Genet é uma expressão absoluta de artificialismo. Até mesmo a pederastia, antes de ser contra a natureza, era uma forma de falsificação, tudo deveria ser falso. Sendo ilusão, falsificação, Genet devolveu à sociedade a falsificação de valores que a sociedade dos “honestos” é. Sendo traição, ele agredia dando o retorno a essa sociedade e, sendo fracasso, ele confirmou seu conflito original e sua primeira metamorfose aos dez anos. Assim, ele construiu suas obras e também peças teatrais, que foram o resultado do que ele era. Em outras palavras, ele fazia teatro com a realidade imaginária que vivia. Os personagens não eram fictícios, mas tirados de sua própria história. Genet fez um teatro calcado na aparência irritante, demoníaca. Mas pode-se dizer que, na ficção Genet conseguiu agredir irreverentemente. De forma teatral, apresentava escancaradamente a realidade. Quando entramos em contato com a obra literária de Genet, se vê uma realidade: Genet é real na obra literária que produziu a partir da vida imaginária que viveu. É como conseguir uma forma de se apresentar de fato e de direito. Só que essa apresentação real só é possível na representação. Assim, Genet conseguiu a forma mais sutil de vingança, mostrando a verdadeira realidade da sociedade dos “honestos”.

A única coisa real é a representação, a encenação. É possível dizer que o não-ser torna- se, na representação, o ser. É uma grande contradição, mas seu grande poder de ser mau estava calcado na sua impotência profunda.

Só o homem tem a capacidade do imaginário e somente ele produz as aparências. Genet viveu a aparência e fez dela seu ser pelo imaginário. A busca incessante do ser não parou, mas ele caminhava na aparência, no imaginário incansavelmente. Genet viveu o imaginário como uma arma ofensiva contra os outros. Porém, a aparência o conduziu à impotência, à solidão completa, aos limites do nada. Mas Genet encontrou a fórmula de trair o real com o imaginário. Mais tarde, a matéria das falsas aparências seria encontrada nas palavras escritas. O sonhador se transformou em esteta e se encontrou com a beleza, embora a beleza ainda estivesse misturada com o mal.

A virtude é o hábito do bem, mas o hábito do bem é o dilaceramento da consciência. O artista produz o belo, o homem “honesto” pratica a virtude. O artista cria, o homem de bem copia, mas copia os valores prontos. O artista é original na sua inspiração e criação, mas o homem de bem vive seu código moral assimilando o bem ao ser, pois tudo é ser, e suprime o “não-ser”. O artista trabalha sobre as aparências, o homem de bem vive sob estruturas objetivas da realidade. O artista trabalha na representação uma aparência organizada que diz toda verdade por múltiplos ângulos. Foi assim que Genet levou ao teatro a sociedade dos “honestos” para ver exibida sua obra.

Genet descobriu que a beleza poderia ser uma arma muito ofensiva que lhe daria condições de combater os “honestos”. Por esse caminho, existia a possibilidade de atingi-los. Então, o sistema de bem e mal que regia sua vida foi deixado para trás. Agora era o momento de atacá-los pelo belo. O culpado recorreu a beleza e esta é um valor. Então, se Genet atacasse pelo valor a sociedade dos justos, a questão ficaria: valor contra valor. A descoberta tardia da beleza deu a Genet um recurso de socorro. O universo do esteta, da beleza, leva o justo à prestação de contas. Quando Genet era expressão do bem e do mal ele era o culpado, o inferior. No universo da beleza, ele se igualaria ao justo e ambos se separariam por uma questão de valores. Diz Sartre que “[...] a beleza é, antes de tudo, a peça que o marginal prega na

virtude” (SARTRE, 2002, p. 356). Ao invés de ser o culpado, o marginal mostrava com a peça

de teatro, montada com arte, o papel de quem exercia o outro lado, o daquele que condenava. A arte e sua beleza foram uma revelação para Genet. Ele entendia que “[...] o ser é feito para o nada. A intuição do belo é um desvanecimento em plena consciência” (SARTRE, 2002, p. 358). A poesia também revelou a Genet o “não-ser”. O projeto de Genet passou a ser investigar o homem “honesto”, colocar em dúvida sua moral do bem, desconsertar os “justos”.

A beleza é uma virtude do pensamento. Genet não mudou o projeto de atingir os “honestos”, mas passou pela arte a agir sobre eles com elegância.

Até esse momento, a beleza em Genet era falsa porque era criação fictícia e falsa destruição. Se propunha eliminar o ser, a destruí-lo. Mas tudo era aparência e falsidade. Este não conseguia criar nem destruir, pois trabalhava com o objetivo de eliminar o ser. Assim, se era incapaz de criar, era incapaz de destruir, uma vez que sua obra-prima era a própria destruição. Genet odiava a matéria e, por isso trabalhava com ela no plano da destruição. Odiava a matéria porque odiava o mundo por ser excluído.

Genet começou a perceber o valor da linguagem, das palavras. Diz Sartre que “Genet transformará, pelo poder das palavras, a sua vida de pária em uma “aventura original”” (SARTRE, 2002, p. 377). Finalmente, parece que Genet havia começado a entender que poderia fazer algo por si mesmo, por seu ser. Um caminho que pudesse ser traçado a seu modo, que pudesse ser sua criação, embora estivesse ainda muito marcado pela sua história, suas tragédias. Mas Genet já encontrara até aqui alguma mobilidade.

Em 1936, Genet, com 26 anos, voltou à França depois de longo período de errância. Agora era o momento em que Genet se abriria para o mundo e para a vida.

Genet fez uma mudança de grande proporção. Parecia olhar de fora o mundo que habitara até então, o quanto era asqueroso, imundo. Não desejava mais os marginais, dizia se sentir homem agora e parecia habilitado para começar a fazer sua própria história. Foi depois do período de errância, em que se tornando arrombador profissional, que dizia ter se encontrado amadurecido como ser e se transformado radicalmente.

Sartre desconfiava um pouco dessa profunda transformação de Genet. Mas até o ponto em que aconteceu essa libertação vale dizer que Genet se libertou tanto do bem quanto do mal e, daqui em diante, aderiu a um amoralismo cínico e positivo. Porém, em toda sua obra a obsessão pelo mal nunca o deixou. Sartre confirmou sua desconfiança, mas Genet afirmou ser este momento uma transformação radical. O que Genet chamou de transformação radical, Sartre chama de reconhecimento de quem se é, uma familiarização com um reconhecimento próprio, sem alterar tanto, ou radicalmente, o projeto original. Mas Sartre concorda que os arrombamentos deram a Genet mais segurança, o que mudou também sua estrutura de sexualidade, passando por uma verdadeira metamorfose, como pode se observar em “Notre- Dame des Fleurs”. Uma mudança no agir não altera apenas uma área da personalidade, mas o sujeito como um todo.

Genet foi um homem enquadrado nos valores dominantes, respondendo ao mesmo paradigma. Foi um fora-da-lei, e, como tal ele foi o resultado da cultura do bem e do mal. Se

decidisse ser do bem, deixar o mal, certamente não seria o que são as pessoas que sempre procuraram ser do bem (na cultura do bem e do mal). Teria que ser outra expressão considerando sua experiência anterior.

Genet, nesse momento de seu percurso, não fez modificações importantes quanto ao seu projeto original. Se não houve modificação na estrutura fundamental, então não foi radical a sua modificação. Foi apenas algum despertar

Os arrombamentos não foram situações bem-sucedidas, pois o levavam à prisão e, no isolamento, ele caía nos devaneios e perdia também o benefício de suas atividades de macho. Mas mesmo assim Genet não era mais o mesmo, muita coisa mudara, sua personalidade passara por modificações complexas, ele já se entendia de outro jeito. Se experimentou o macho, a fêmea já não tem mais o espaço psíquico de antes. Algo mudou, o momento era outro. Mas como Genet continuava impossibilitado de viver o real, o que seria então? Qual a saída? Seria realizar o imaginário? Uma saída seria colocar o imaginário na realidade. Num mesmo projeto, Genet colocou sua intenção realista e sua intenção irrealizante. Mas como fazer isso? Objetivando seus sonhos e colocando-os num lugar que fossem apreendidos pelos outros fora dele. Os sonhos, imaginário de Genet, foram levados ao espírito objetivo nos fatos culturais. Então seu imaginário tinha a chance de ser real. Genet passou a agir na consciência dos outros, produzindo uma consciência imaginante que interferia nas consciências como tal. E assim ele pôde objetivar as suas imagens. Genet queria atingir sua cultura e inseriu o imaginário na trama do real:

O paradoxo do objeto de arte é que a sua significação permanece irreal, isto é, fora do mundo, e que, entretanto, ela pode ser a causa e o fim de atividades reais. Um quadro põe em jogo interesses econômicos; é comprado, vendido (SARTRE,

2002, p. 398).

A trajetória de vida de Genet, de revolta, de culpado, de excluído, não poderia encontrar uma saída melhor para revanche à cultura burguesa. Diz Sartre que Genet “[...] quer contagiar os justos com suas imagens e, já que não é nada mais além de seus sonhos, esse morto social decide vir, em pessoa, “assombrar” a comunidade das pessoas honestas” (SARTRE, 2002, p. 399).

A nova escolha de Genet, seu novo projeto de ser, o levou criar. Genet tornou-se o imaginário em pessoa. Quando fez isso aconteceu o despertar da consciência de Genet, que o levou à criação e à liberdade. Nasceu então um novo Genet. Ele não era mais vítima do bem e do mal apenas. Foi além, tornou-se consciente. Estava tomada a decisão de escrever.