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A obstinação de Genet para fazer o mal era tão exacerbada que é possível dizer que Genet buscava ser um santo do mal. A mentalidade religiosa que Genet adquirira na infância nunca foi abandonada. Pela sua decisão pelo crime, Genet se martirizou. O mau quer aquilo que o horroriza. O mau se sacrifica ao mal. Seu sacrifício é uma forma primitiva de atribuir

força sagrada a seres exteriores a si. Genet precisava encontrar consolo no seu sofrimento. Pela constituição de sua personalidade e seus fundamentos religiosos, Genet via no sofrimento uma causalidade sagrada, até mesmo de santidade. O santo se priva de tudo, vive uma vida miserável, mas assume lugar de privilégio porque se consagra pelo martírio que impõe a si mesmo. A função de Genet na sociedade do crime não era diferente. Refletindo sobre que contexto social e político, Genet construiu sua trajetória de vida, observa-se que os valores dessa sociedade, tem raízes nocivas, cheias de crenças, carentes de consciência. Verdadeiros sistemas alienantes, os santos do bem ou do mal, a “má-fé” está por toda parte e é preciso parar de agonizar.

Penso, como muitos outros, que é preciso abreviar as convulsões de um mundo que está morrendo, ajudar o nascimento de uma comunidade de produção e tentar estabelecer, com os trabalhadores e os militantes, o quadro dos valores novos. É por isto que a Santidade me repugna, com seus sofismas, sua retórica e seus mornos deleites; ela tem apenas uma utilidade hoje: permitir aos homens de má-fé raciocinar errado (SARTRE, 2002, p. 200).

Genet tinha uma cultura religiosa refinada, mas em sua vida não havia espaço para o amor. Tudo era um retorno à ordem do mal. Construiu sua história com os conceitos de bem e de mal que aprendera na infância e não conseguiu passar disso.

O santo, para renunciar ao mal, renuncia à sociedade dos homens, a si mesmo e a tudo para apegar-se somente a Deus. Ele passa a não ser nada, e Deus é tudo. O seguidor do mal, determinado a fazer o mal, renuncia, por sua vez, ao bem, à ética, à honra, a si mesmo. Apega-se somente ao seu objeto, que tem como fim a perversidade, passa ser o nada do seu mal. Para o santo, Deus é tudo. Para o criminoso, seguidor do mal, o mal é tudo. São dois lados da mesma moeda: bem e mal. Porém, ambos fazem uso de sua liberdade para destruir os limites. Ambos são despojados. Importante lembrar aqui é que o santo do bem e o seguidor do mal têm sua aprovação ou desaprovação fora deles. No caso do santo, permanece o ser que é Deus. No caso do criminoso, seu rompimento com os limites o coloca limites ainda piores ao seu ser. O ser do santo é venerado pelos outros. O ser do bandido, por outro lado, é banido. São os valores externos já pré-concebidos os responsáveis por tudo isso? Nos dois extremos há uma atitude premeditada, pré-concebida como estrutura de educação. Se ambos o santo do bem e o santo do mal fizessem suas escolhas por consciência, ainda seriam dessa forma? Sem esquecer os valores de suas obras, ambos estão respondendo ao bem ou ao mal. Se deixarmos de lado os valores pré-concebidos e avaliarmos cada sujeito, estaremos mais próximos das significações, pois mesmo que o sujeito responda a valores pré-concebidos, cada qual tem sua dialética, suas significações. O santo do bem e o santo do mal seguem, no caso de Genet, o

mesmo ritual sagrado. Ambos se escolhem como um outro aos olhos dos outros, o outro que se é para si. Já compreendemos isso quando falamos de consciência e ego. A consciência é o caminho que o sujeito deveria percorrer e não a crença. Quando percorre a crença, aliena-se de alguma forma.

O maior crime de Genet foi ter escolhido ser traidor. Este crime, a traição, a história mostra como inexpiável. Genet escolheu o pior. Para Genet trair o mal é torná-lo mal pior. Genet incitava os companheiros a roubar e depois os denunciava à polícia. Essa é a busca do pior mal. Genet cometeu o pior crime para realizar o bem? Onde ficou sua vontade má? O mal traiu o mal. A procura da santidade por Genet era uma defesa contra as traições do mal. Quando Genet decidiu trair, passou a fazer o mal pelo mal. Quando preso, fez de seu sofrimento uma tortura pela expiação. A trajetória foi assim: houve o momento da práxis, de fazer o mal, e depois, quando preso, foi o momento da introspecção, um tempo para a Santidade. Tudo isso se deduz do conceito de vontade má. O sofrimento se tornou um bem.

Com isso, a Santidade – ideal daquele que procura simultaneamente o sofrimento pelo Mal que ele faz e o Mal pelo sofrimento que ele causa - é ao mesmo tempo boa e má, aparência de Bem que se funde no Mal, aparência de Mal que se funde em Bem. Genet pensa, pois, ter salvo o seu delito na sua própria contingência, preservando também os direitos absolutos do Mal (SARTRE, 2002, p. 232).

Genet chamava de santidade suas perversões demoníacas e dava a elas uma noção sagrada. Mas o que Genet buscava era sempre a mesma coisa, ou seja, atingir-se. Seu agir buscava o mal em seu fim supremo que era se tornar ele mesmo. Mas Genet afirmava-se negando-se, ele era mau, e o agir mal destruía seu ser. Genet era a própria contradição, no não havia o sim e no sim havia o não. Assim, ele atingiu o nada puro. Mas a consciência de Genet era uma unidade de contradições, um paradoxo que remetia do nada à existência. Genet queria ser, mas se anulava. Queria o mal para ser, mas o mal o aniquilava, viveu a lucidez de contemplar o próprio fracasso:

“Genet, se quiser descobrir o ser secreto da sua consciência, deve procurar saber aos olhos de quem essa consciência é, secretamente, objeto” (SARTRE, 2002, p. 234).

Desde a infância que a sua verdade lhe escapava, mas seu estado de ansiedade denunciava: Genet não se via, mas os outros o viam. Enquanto Genet era visto pelos outros, construía suas experiências até que passasse a ser um outro.

Como se entender no meio de um tão complexo labirinto? Como viver diante de tão séria inquietação? Mas é preciso recuperar a verdade que escapa à consciência. Genet buscava em algum lugar do absoluto um sentido para sua existência. Aqui ele traiu o próprio mal e

passou para o lado do bem. Esperança de aliviar seu sofrimento ou simplesmente loucura, mas Genet passou de um extremo ao outro. Se sua vida foi só sofrimento, um repouso eterno poderia ser uma conseqüência. A contradição que viveu foi mesmo uma violência. Nasceu na contradição, foi criado numa sociedade contraditória, com valores loucos, sua práxis foi envolvida nos piores erros e contradições, que fizeram de seu ser um tormento, mas ele não deixou de, pelo menos, sonhar com alguma quietude para seu ser.

O mal é uma explosão, não é um sistema, não pode exalar harmonia. É muito ruim viver de maldade. Se alguém vive nela, há que se buscar a verdade dessa expressão, porque ela esconde uma significação importante para quem a vive. Genet tentou liquidar toda moral, toda forma de humanismo, já que ele fora relegado ao inumano, e a ética da santidade é o que Genet via como saída. Diz Sartre: “[...] a originalidade de Genet é que ele quer ser e é a unidade não- sintética das suas próprias contradições” (SARTRE, 2002, p. 241).

O outro que se apresenta como o ego de Genet é uma grande loucura social, objetiva, do mundo e dos valores éticos, religiosos e morais, do qual ele foi vítima e se fez vítima também.

Deixando um pouco de lado o Genet vítima social, ou a relação entre Genet e o mundo externo, Sartre faz uma análise do escritor quando adolescente, como ele aparecia a si mesmo aos dezoito anos. Se Genet não tinha nada e ninguém para amar, ainda lhe restava pelo menos uma coisa: a sua própria vida. Estar vivo, em movimento de alguma forma. Só o coma pode manter paralisado um ser vivo. Até mesmo o sujeito catatônico está ativo, pois seu mutismo e sua falta de expressão já são uma grande forma de protesto. A catatonia toca profundamente os outros. Ninguém consegue passar despercebido, alheio, ao paciente catatônico. O grito do catatônico é um eco de ressonância de larga abrangência na realidade. Em se tratando de Genet, ele sempre lutou, a seu modo, pela vida. Até afirmou estar morto, mas nunca perdeu a paixão de viver. Experimentou a morte afetiva, moral, mas não morreu. Continuou a luta. Genet conheceu todos os desprazeres da vida, mas desconheceu o tédio. Sua vontade e sua consciência nunca desfaleceram.

Os sonhos de ser e de ter nunca morreram. O melhor de Genet está na consciência reflexiva. Ele refletiu sobre sua realidade, tentou encontrar sentido. Mas o mundo é uma linguagem estrangeira. O significado do seu nascimento, ser abandonado, rejeitado e confiado a desconhecidos, para Genet, não era produto da contingência. Via em tudo isto uma pré- destinação. Ele anulou a realidade contingente para dar significação a algo fora dela que lhe impusesse um destino com um objetivo. Com isso ele via sua infelicidade com uma contradição: sua tensão interior era de viver o horror dos fatos de sua vida com entusiasmo,

porque essa era uma resposta ao seu destino. Ele era um destinado. Nessa fase de sua vida, Genet estava muito próximo da loucura, da desintegração. Não tinha clareza das suas significações, acreditava que podia se entender fora da contingência, se colocava com os outros ausente, secreto, e sua maneira de ser o isolava. Porém, a realidade lhe escapava, era obscura, mas vivida de alguma forma, significa-se e ressignifica-se de alguma maneira. Mas a que ponto de complexidade pode estar a capacidade de consciência, em função do ego, de apreender claramente a realidade?

Para nós, a maioria dos objetos no nosso ambiente manifestam uma organização que se refere a fins preciosos e afinal ao próprio homem: uma cidade não é mais do que uma coleção de instrumentos dispostos em boa ordem, ela nos remete à imagem da realidade humana. Para Genet, ela significa a sua exclusão do gênero humano, as coisas não lhe falam (SARTRE, 2002, p. 248).

Se as coisas não lhe falavam era preciso criar significações, ainda que imaginárias. Genet não conseguia distinguir o ser da aparência. O real, para ser real, deve ser experimentado por meio da ação. A única ação com que Genet parecia se identificar era o roubo que praticava para viver e para provocar uma forte expressão de destruição ao mundo e aos outros. O mundo que o cercava com seus utensílios não era visto, mas anulado. A recíproca é verdadeira, ou seja, o mundo o anulara primeiro, o matara.

Onde estavam seus vínculos, seus afetos? Sua relação com o mundo era destrutiva, tudo girava em torno da destruição. É incrível como Genet era sozinho! E é mais incrível ainda que sua personalidade, sua consciência não tenham se deteriorado totalmente. Até que ponto um sujeito pode suportar a dor e a solidão absoluta? Genet tornou-se o lixo de uma sociedade doente. Genet era destrutivo? Mas o mundo, as pessoas que o cercaram também. Uma análise de Genet só pode ter validade se descritos os dois lados: Genet com sua história e os valores morais, as leis e tudo o que regia sua sociedade dos “honestos”, cheios de falhas, de terríveis contradições e absurdos. Se uma criança que nasce abandonada, nasce marcada, já se pode dizer que nasceu numa sociedade doente. Na realidade humana, tudo se define em sociedade. A natureza não passa de um mito social. Tudo se aprende e apreende do convívio social desde o nascimento. Genet, expulso do social por ser diferente, foi também expulso da natureza. Viveu no meio do mundo, mas expulso o tempo todo. Foi essa sua marca social e humana de ser inumana.

Se a natureza é apenas um mito social e o social a anula, então Genet não fazia parte da natureza, ele era a propriedade dos outros. Para Genet, tudo pertencia aos outros, nada pertencia a ele. Não existia a ponte entre ele e os outros a não ser para excluí-lo, torturá-lo

como um ser à parte, separado, não querido. Tudo passou a ser normal na sua exclusão, pois ao nascer, já foi excluído. A palavra máxima já fora dita, este é seu destino. Para Genet, nesta fase da vida, todos o vigiavam em tempo integral. Quando preso ou andando pelo mundo, ele era vigiado porque era um excluído. Estava ali, mas não poderia estar. A repetição e a fatalidade eram seu futuro. A repetição reproduzia simbolicamente a crise original. A fatalidade reproduzia o momento em que foi surpreendido roubando. Nascimento, abandono, exclusão. Roubo exclusão, repetição do ato de roubar, tudo seguia num ritual interminável.

Todo sujeito nasce e se desenvolve no mundo, dentro da história, e para que tenha uma história própria, precisa deixar no mundo de alguma forma a sua marca. Assim, o sujeito se conhece com uma singularidade que, por mais tímida que seja, é a sua. O sujeito, ao se modificar durante sua história, dentro da história, modifica também a história pelos seus atos. Nós mesmos somos nosso próprio risco, e o mundo é nosso perigo neste desenrolar da história.

O sujeito não é uma totalidade atemporal, ele existe no espaço e tempo históricos. Olhando por esse prisma, a identidade de Genet se desenvolveu numa complexidade quase assassina de cortes, bloqueios e limites, de falta de direitos à história e a sua história. O mundo lhe bloqueou esse direito ainda em tenra idade. Genet ainda irá conseguir dar uma grande virada quando se tornar escritor.

A situação das relações de erotismo que Genet viveu não lhe conferiu história afetiva, pois tudo se resumia a prostituição, a uma busca enganosa de encontro. As relações sexuais, nem sempre necessitam de afetos, bastam os instintos. Para Genet, que tanto precisava de um encontro, esse tipo de relação era uma sucessiva devastação. Na relação homem/homem, Genet encontrava o erostismo apenas. Genet amava sem a menor pretensão de ser amado, pois tinha em troca a indiferença. Mas como amar sem ser amado?

Entre os quinze e vinte e cinco anos, a vida de Genet é surpreendentemente cheia: é admitido como aprendiz, foge, é pego; vivendo com burgueses, rouba-os, é enviado a Mettray, foge novamente, mendiga, percorre a França, alista-se na legião, deserta, foge para Barcelona , vive de esmolas e prostituição no Bairro Chino, rouba de novo, deixa a Espanha , anda por toda parte, na Itália, na Polônia, na Tchecoslováquia, na Alemanha, roubando e atravessando clandestinamente as fronteiras; suas aventuras dariam assunto para vinte romances pitorescos. Ama, tem ciúmes, é desdenhado ou escravizado, é infeliz. Entretanto, nada o marca e nada o muda, aos vinte anos encontra-se como era aos quinze (SARTRE, 2002, p. 313).

Genet, até essa fase de sua vida, se entendia como sujeito com o que fora programado para ele. Aliás, é assim que vivem as pessoas dentro de culturas conservadoras em que o sujeito se entende pelo que é como outro. Genet vivia a crise original a todo tempo, como se

não tivesse história a partir do fato originário. Vivia em círculo, não saindo do abandono, da solidão absoluta, como se seu destino fosse imutável. Genet foi fabricado por uma cultura camponesa tradicional, na qual o outro era mais que a singularidade, além de sua religião também confirmar tudo isso. Assim, tudo o que aconteceu com Genet ocorreu em movimentos circulares, suas emoções, vontades e sentimentos remetia sempre ao mesmo significante. O movimento do pensamento em Genet era circular. Mas Genet viveu um sistema de valores opostos que lhe mostravam fraco num momento e forte noutro. Ele era forte como o destino, como o mal, como aparência. Mas era fraco porque, como criminoso, não se dava bem. Tudo o que fez o levou a ruína. O fraco e o forte agiam como dois sistemas implicados um no outro, mas não faziam síntese, pois eram duas dialéticas que não se unia, permanecendo em contradição.

O projeto de Genet encerrava uma contradição fundamental. Na vontade primeira, Genet queria ser o que o crime fez dele. Genet queria o ser, e foi viver esse mundo falsificado que fora programado para ele. Mas querendo o mundo que o esmagava queria também o “não-ser” e era preciso querer esse esmagamento até o fim. Ele queria o mundo, mas ao mesmo tempo o recusava. Essas duas verdades contraditórias eram imaginárias, pois não é possível recusar o mundo nem aceitá-lo. Isso só é possível a quem sonha acordado, para quem vive no imaginário. Para recusar o mundo, seria preciso destruí-lo ou cometer suicídio. Genet, não pensava em se suicidar. Ele não pôde fazer seu percurso de vida, seu futuro foi roubado. Sua vontade era apenas imaginária. Ele vivia como um ator obrigado a representar uma peça, só que a peça era sua própria vida. E sob a condição de continuar vivendo, ele segue consagrando o louco empreendimento de tornar-se o que já era, bem como destruir o que podia lhe impedir de ser. Assim, quando Genet escolheu querer seu destino, decidiu também expressar-se pela simbologia e viver só e de imaginário. No imaginário, roubava para fazer-se ladrão. A ação de roubar é um ato real, mas esse real é ao mesmo tempo uma representação dramática que sugere um duplo fim: rouba porque é ladrão e rouba para fazer-se ladrão. Assim, o roubo para Genet representava uma dimensão do real e uma dimensão do imaginário. Roubar era reviver a crise original. Mas quanto mais ele se obstinava em querer o real, mais mergulhava no imaginário. E assim Genet chegou a uma segunda decisão: a de ser um poeta. Então ele é o ladrão que se tornou poeta, mas um poeta do mal. O ladrão foi o projeto das pessoas “honestas”, e o poeta do mal ainda estava dentro do mesmo projeto fundamental, porém, com uma pequena diferença: por enquanto, os “honestos” não decidiram que Genet seria um poeta mesmo que fosse para confirmar sua maldade prevista. Essa decisão lhe conferiu um agir sobre si mesmo, embora ele não tenha escapado ao projeto fundamental

na qualidade de sujeito, mas mostrou uma decisão que dependeria apenas dele, embora não tivesse desviado de seu fim, que é o mal. Era um poeta do mal, que transformaria um sonho de vontade em ato real, a poesia.