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Sob o olhar dos “honestos” que o haviam transformado em ladrão era preciso viver: “Agora é preciso viver; no pelourinho, com o pescoço no garrote, é preciso viver: Não somos torrões de argila e o importante não é o que fazem de nós, mas o que nós mesmos fazemos com o que fizeram de nós” (SARTRE, 2002, p. 61).

Decidir viver para quem fora obrigado a ser ladrão em tão tenra idade já era uma grande escolha, porque nenhuma criança aos dez anos poderia defender-se de tal situação. Mas era preciso viver. Poderia se matar, também seria uma escolha. No caso de Genet, essa absurdidade de pôr fim à vida seria compreensível, senão previsível, mas Genet escolheu a vida. “Serei o ladrão”, decidiu para ser, para estar vivo. Essa decisão de viver fez de Genet, nos próximos vinte anos, um ladrão, e após vinte anos se fez nascer o grande poeta. Quando escolheu ser o ladrão, fez uma péssima escolha. Teria outras escolhas? Difícil dizer que sim, ao mesmo tempo que é difícil dizer que não. Genet estava no limite,mas escolheu esta saída: “Decidi ser o que o crime fez de mim” (SARTRE, 2002, p. 61).

Genet assumiu seu destino de ser o ladrão e tentou dar o melhor de si, fazer do mundo do crime o seu mundo, a sua expressão. A sociedade o preparou cuidadosamente para isso e foi isso que ele decidiu ser.

Genet fez sua escolha com o coração e com a alma, em “Diário de um Ladrão” Genet escreve:

Neste diário eu não quero dissimular as outras razões que fizeram de mim um ladrão, a mais simples sendo a necessidade de comer, todavia em minha escolha jamais entraram a revolta, a amargura, a raiva ou qualquer sentimento idêntico. Com

um cuidado maníaco,“um cuidado ciumento”, eu preparei a minha aventura como se arruma um leito, um quarto para o amor: eu tive tesão pelo crime (GENET, 1968, p. 23).

Genet deixou claro que escolhera, embora não pudesse ter claro, a princípio, o significado e o significante que continham suas escolhas. Mas sabia, até certo ponto, que era o resultado do que haviam feito dele. Genet poderia, já adulto, ter feito o caminho contrário ao crime, afinal ser o que a sociedade havia feito dele não era um caminho prazeroso, agradável. Porém, assumiu o caminho traçado como se fosse uma provação, e tudo o que ele fez foi pelo mundo da ilegalidade, pois isso que foi o que sobrou para ele, visto que do mundo dos “normais”, dos “honestos”, fora expurgado como um ser que não pertencia a esse mundo. Mas Genet sabia que nascera em Paris, que pertencia a um sistema administrativo do Estado. Não era só filho adotivo de camponeses. Pertencia à cidade porque lá nascera, mas estava ligado também ao campo pela sua estadia na adoção.

A dificuldade de Genet era reivindicar o mal. Genet buscava a perfeição no mal, a vontade do mal. A idéia de natureza má era uma concepção de sua cultura: os juízes acreditavam nisso e Genet acreditava em seus juízes. Se sua natureza era má, então é preciso assumi-la. Suas ações levaram essa premissa em consideração. A prova da maldade era o roubo. Genet era movido pela culpa, pela agressividade irônica, pela vergonha, ao mesmo tempo em que procurava fazer de tudo isso um ato de perfeição. Lendo seus livros, é possível sentir em Genet um ser vingativo, com agressividade requintada, e ao mesmo tempo, irônica, em tom muito dissimulado.

Pelo menos, pensava eu, se a minha vergonha é verdadeira, dissimula um elemento mais agudo, mais perigoso, uma espécie de dardo que há de ameaçar sempre aqueles que a provocam. Talvez não fosse ela atirada sobre mim como uma armadilha, não fosse intencional, mas sendo o que é Eu quero que ela me esconda e que debaixo dela eu fique espiando (GENET, 1968, p. 79).

É evidente que a interpretação de natureza má de Genet, ou de quem quer que seja, só serve a falsos conceitos ou preconceitos. Não havia o ser mau dentro de Genet como o quer a sua cultura religiosa ou do mundo dos “honestos”. São falsos valores.

Conduziram a educação de uma criança de tal forma, tiveram um resultado e depois acusaram a natureza de comportar um ser mau dentro de si? Assim o estigma passa a marcar uma pessoa como se esta fosse irrecuperável diante de um ato. São valores, falsos entendimentos sobre um sujeito. É claro que há de se considerar a complexidade dos fatos, nada pode ser negligenciado. Porém, em se tratando de conteúdos psíquicos, o que é adquirido

pode ser removido. E, se assim não fosse, de que valeria a possibilidade de nadificação da consciência? É preciso dar ênfase à possibilidade de mudança, de nadificação, pois sem isso de nada valeria o processo psicoterapêutico, a psicanálise existencial. Não se nasce monstro, se produz monstros. Se nadifica a história monstruosa, se muda o curso dela, afinal: “O importante não é o que fazem de nós, mas o que nós mesmos fazemos com o que fizeram de nós” (SARTRE, 2002, p. 61).

As escolhas de Genet têm a ver com seu contexto, com seus valores internalizados de seu meio. Noutra estrutura social, noutra cultura haveria outros encaminhamentos para sua história de origem, e suas escolhas teriam chance de ser outras. Genet fez sua apropriação, e o resultado de sua relação com o mundo foi essa história, mas bem que poderia ter sido outra, se os valores fossem outros. Objetivamente era essa a cultura de Genet, mas e sua subjetividade? Como Genet via os fatos? Qual sua estrutura intencional e suas escolhas e por que?

Enfocamos muito a objetividade que fez Genet; é preciso enfatizar agora o ser consciente de Genet que decide ser o que o dado fez dele.

Em “Diário de um Ladrão”, Genet se expressa desta forma:

Sem me crer nascido magnificamente, a indecisão de minha origem me permitia interpretá-la. A ela acrescentava a singularidade das minhas misérias. Abandonado pela minha família, já me parecia natural agravar isso pelo amor dos rapazes e esse amor pelo roubo, e o roubo pelo crime ou a complacência para com o crime. Assim recusei decididamente um mundo que me havia recusado (GENET, 1968, p. 99).

Genet parecia ter conhecimento de sua origem, de seus significados, bem como é fácil perceber, na leitura da referida obra como Genet viveu um sentimento de vingança dissimulada, mas presente a cada ação, saboreando o gosto da vingança do que o mundo fizera dele. Assumiu ser o que o crime fez dele. Em toda sua narrativa parece muito clara a idéia de que nada de precioso tinha a perder, pois sua maior riqueza, a dignidade, havia também sido roubada, então era necessário se vingar. Talvez esteja aí o ponto que Genet deveria ter recusado; o confronto e a vingança contra a sociedade que o tornara ladrão. Mas é como dizer que a sociedade deu a Genet a opção de ser ladrão, e ele fez disso a sua carreira, o seu aprimoramento. A sociedade dizia que o mal estava nele, o caminho estava traçado para ele. Se Genet acreditasse nisso de fato, não odiaria a sociedade que fez dele um ladrão, que foi mais forte do que ele e seu poder de decidir a ponto de mudar seu destino. Decidiu, sim, escolheu sim, mas dentro do que foi traçado, escolhido pelos outros. O mundo foi mais forte que ele, e aí se justifica o seu desejo de vingança. Era como dizer: eu ainda sou eu, eu ainda sou um ser.

O ser de Genet não poderia escapar à realidade a que todo ser pertence como realidade humana: a ambigüidade da condição humana do ser que não é o que é por estar perpetuamente em questão. Diz Sartre que “[...] nossa maneira de ser é estar em questão no nosso ser” (SARTRE, 2002, p. 71).

Genet não era um robô programado pela sociedade? Ele era o outro lado da história, mas também o resultado de sua apropriação do mundo. O destino de Genet não foi escrito previamente, mas construído por meio de suas vivências, de sua história. Ele não era mau por natureza como queria a moral do seu contexto social, mas um ser em constante vir-a-ser. Então, pelo menos teria o direito de fazer uso a seu modo de como ser o ladrão. Quando Genet dizia que decidira ser o que o crime fizera dele, mostrava que também havia decidido, que também dera o encaminhamento para sua vida. Se o caminho era esse, então poderia pelo menos ser agente ativo dessa trajetória fazendo dessa apropriação o seu lugar do seu jeito.

Então há claramente duas forças em jogo: a sociedade, com seus valores de um lado, e Genet de outro, cada qual com suas escolhas; porém, eis que todos estão dentro dos mesmos valores. Se Genet estivesse fora dos valores de seu meio, se sua experiência não estivesse calcada na mesma moral, certamente poderia vislumbrar outros encaminhamentos, outras escolhas. Para a moral vigente, ele seria um ser “Em-si”. Porém, ele era um ser “Para-si”. Se fosse programado apenas, seria um ser estável e fixo como os objetos. Se Genet era um ser “Para-si”, como é toda consciência na realidade humana, por que decidiu ser o que o crime fizera dele? Seriam os valores internalizados de Genet também respondendo às mesmas determinações da sociedade que o criara? Mas Genet não era uma natureza má, não era um ser “Em-si”, estático, Genet era um “Para-si” e, então, poderia não ter recebido o destino que a sociedade/cultura/moral de sua época lhe atribuíra. Não existe natureza humana, só existe a realidade humana, e o sujeito é o que fizer de sua história diante do seu contexto de possibilidades. Genet, influenciado pelos seus próprios valores, fez o mal porque acreditava ser mau. Mas ele não era, eram apenas falsos valores.

Imbuído dos mesmos valores de seu meio social/cultural, ele acreditava ser mau e escolheu seguir o destino do crime ao mesmo tempo em que agridia seu meio pela sua ilegalidade: “Ser ao mesmo tempo Satã e uma filoxera; ser provido de um livre-arbítrio e de um servo-arbítrio, ao mesmo tempo e sob a mesma relação” (SARTRE, 2002, p. 72).

No entendimento de Sartre, Genet precisava assumir-se para, pelo menos, manter sua integridade. Se o outro decidisse tudo por ele, ele estaria louco. Assumindo o crime como sendo de sua vontade, em última instância, ele estava tomando posse de seu ser de alguma maneira, e seu ser não se desintegraria totalmente. A decisão de Genet de ser o que o crime

fazia dele foi uma escolha dele e de seu ser como ser e, assim, salvou sua integridade psíquica: “Sim, ele é livre, eles nunca conseguirão persuadi-lo do contrário; sim, ele é mau e mais ainda do que eles pensam” (SARTRE, 2002, p. 72).

Genet pensou o mundo como ser marcado e como ser livre. Com livre-arbítrio e servo- arbítrio. Os seus valores e de seu meio o fizeram servo-arbítrio, e sua realidade humana, seu ser “Para-si”, o fez livre-arbítrio.

É uma liberdade que luta contra uma fatalidade e, mesmo que não consiga se libertar dela, não deixa de travar uma luta contra ela. É a vida se impondo à morte para salvar sua integridade. Assim, Genet viveu uma contradição: era vítima quando assumia o crime que a sociedade programou para ele, mas era liberdade quando assumia ser o crime: “Fora do crime, não existo. Dentro dele, justifico-me” (GENET, 1968, p. 10).

Genet decidiu ser o ladrão, o ser mau que ele era, mas ele seria o melhor. Assim como o santo que obstinadamente busca a Deus, ele buscou o crime, o mal.

O outro, o mau, que ele era estava acima da experiência cotidiana para ser a comunhão com o crime. Genet fez do crime uma experiência religiosa: superou a própria natureza para atingir o ser, o mau, que é seu ser, sua subjetividade maior. Seu objetivo era superar-se por meio do crime. É ser o maior e melhor. Os “honestos”, “justos”, fizeram dele um ladrão; então eles teriam um criminoso de grande requinte. Eles iriam se surpreender de sua obra. Isso garantiu também a Genet ter algum domínio de sua vontade, não conseguindo ser outra coisa senão ladrão, assim lhe restava tomar as decisões de como trilhar esse caminho, o que já lhe garantia, no fim de tudo, decidir alguma coisa. Decidir ser feliz, ter outro destino parece que não estava a seu alcance de forma alguma, sua existência estava presa a uma trama em que sua vontade era insuficiente; então, restava apenas fazer do processo, do infortúnio, o produto de sua vontade. Se tinha uma “natureza má”, devia ser mau premeditando seus crimes: “Essa natureza, que lhe disseram preceder nele à vontade, agora ele quer provar a si mesmo que a desejou” (SARTRE, 2002, p. 79). Esse era o projeto de Genet e suas escolhas não saíram desse percurso, ele confirmou sua natureza de ladrão. A cada roubo, o ser de Genet se matava para ressuscitar o ladrão, afinal era preciso confirmá-lo. Sua liberdade se preservava nesse emaranhado, nessa estranha e complexa expressão, sendo livre para defender e confirmar seu ser de ladrão. Ele dava aos outros os motivos para sua degradação como objeto. Era a sua estrutura, a sua subjetividade, sua identificação como ser. Pela sua liberdade ele se fazia: o ladrão, o fora-da-lei, a natureza má, o ser maldito. Genet foi tomado por uma obsessão que o levou a agir para ser, roubar para ser o ladrão, agir para preservar sua identidade de sujeito. Estranho que, para confirmar sua natureza de mau, ele precisasse agir e ser mau. Então, se

agisse de outro modo, seria outra coisa? Se fosse mau, seria, mas era preciso fazer-se? Que estranha obsessão ontológica era essa? Se Genet parasse de roubar, perderia a única referência para a sua integridade psíquica? A que privação de referencial era submetido seu ser desde a infância? Portanto, poderia novamente afirmar: Genet foi vítima de seus valores, dos mesmos valores dos que o condenaram e o excluíram. Genet e seu meio funcionavam com o mesmo paradigma de valores morais.