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CAPÍTULO 2: DEFINIÇÃO DE PROBLEMAS NA POLÍTICA DE REFORMA DA

2.3 A transformação de condições em problemas

2.3.1 Representação simbólica da reforma

2.3.1.1 Narrativas causais

Uma das formas mais usuais para a definição de problemas e para a representação simbólica na política é o desenvolvimento de narrativas que procuram estabelecer relações causais. Estas narrativas têm como objetivo apontar as causas primárias para que um problema possa ser definido e apresentado de forma consistente. Neste sentido, as causas são entendidas como elementos objetivos, passíveis de análise e comprovação científica. Localizar as causas de um problema representa um recurso para o desenvolvimento posterior de alternativas para ação governamental que procurarão neutralizar o problema, modificá-lo ou mesmo eliminá-lo. Mais do que isso, localizar as causas de um problema permite atribuir responsabilidades: “to identify a cause in the polis is to place burdens on one set of people instead of another. It is also to tell a story in which one set of people are oppressors and another are victims” (Stone, 2002, 189).

A forma como os textos analisados definem o problema brasileiro – a crise do Estado – ilustra este recurso às narrativas causais. “Venho dizendo que a causa fundamental da crise brasileira e da crise latino-americana é a crise do Estado, desde 1987, quando a percebi com clareza”, diz Bresser Pereira (1995-a, 04). O recurso aos mecanismos causais é empregado ao longo dos textos produzidos pelo MARE, que procuram estabelecer claramente uma relação causal entre uma “crise generalizada” no Brasil e a crise do Estado (sendo a primeira causada pela segunda) e, esta, por sua vez, atribuída às crises fiscal, do modo de intervenção e, principalmente, do modelo burocrático de administração pública. A crise da administração pública também tem suas causas - o modelo burocrático - apontadas nos textos. Definir o problema como sendo o próprio modelo burocrático encoraja alternativas específicas, políticas que incidam sobre esta questão, tarefas atribuídas ao MARE. Por outro lado, definir o modelo burocrático como problema também permite apontar responsabilidades. A idéia de que a sociedade é vítima de procedimentos inadequados, ineficientes e custosos, gerados pelo sistema de administração vigente é enfatizada ao longo dos textos do período. Esta responsabilização foi recebida pelos servidores públicos (com exceção da alta burocracia) de forma bastante negativa, o que fez com que este grupo se tornasse um dos maiores opositores às mudanças defendidas pelo MARE.

De acordo com Stone (2002), existem quatro tipos de teorias causais frequentemente empregadas na representação de problemas, que variam de acordo com os graus de intencionalidade e propósito atribuídos às causas estabelecidas. A primeira versão – teoria das causas acidentais - é composta por narrativas que exprimem causas desprovidas de propósitos e intencionalidade: desastres naturais, catástrofes, momentos de “sorte” na vida de um indivíduo26. “This is the realm of

26

Baumgartner e Jones (1993) discutem esta modalidade narrativa assinalando a importância da imagem de uma política. Quando a policy image está ligada a causas acidentais, há poucas chances desta questão chegar à agenda governamental, uma vez que não se espera por uma atuação governamental. Por outro lado, se a definição deste problema é alterada, mudando sua policy

image em direção a uma representação na qual as causas são atribuídas à negligência

accident and fate. Politically, this is a good place to retreat if one is being charged with responsibility, because no one is responsible in the realm of fate.” (Stone, 2002, 190). A segunda versão para uma narrativa causal aparece sob a forma da teoria das causas intencionais. Neste tipo de argumentação, oposta à anterior, os problemas são atribuídos à ação humana, num esforço deliberado e intencional de causar efeitos perversos. A opção por este tipo de argumentação representa a posição mais ofensiva possível, dentro do modelo da autora, uma vez que a responsabilização é estabelecida de forma clara e direta. Uma terceira modalidade narrativa atribui igualmente as causas de uma política à ação humana, mas de forma indireta: são as teorias das causas mecânicas. Neste caso a ação, embora intencional, é desviada de seus propósitos originais pela interferência de outros indivíduos, de máquinas ou de procedimentos sociais “mecânicos”. Finalmente, o quarto tipo de narrativa causal – teoria das causas não-intencionais – é a história dos efeitos perversos gerados por políticas supostamente bem-intencionadas. Condições não-antecipadas que intervém nas políticas, efeitos não previstos, ignorância quanto a questões relacionadas à política em questão, e mesmo omissão, são exemplos de interpretações relacionadas a este tipo de narrativa.

Estas teorias causais não são mutuamente exclusivas e são escolhidas estrategicamente para a definição de um problema. A análise dos textos governamentais permite evidenciar o emprego de diferentes explicações causais. Com relação à teoria geral da administração exposta nos textos, o modelo burocrático é inicialmente apresentado como uma evolução nos modelos de administração pública. Embora largamente criticado nos textos, sua introdução não é representada como uma ação intencional no sentido de causar um problema. Os textos procuram mostrar que o modelo burocrático vem, na verdade, resolver problemas engendrados pelo modelo patrimonialista: “[o modelo burocrático] surge como forma de combater a corrupção e o nepotismo patrimonialista” (Brasil, 1995, 20-21). Neste contexto, ele não é retratado como problema, mas como solução. O problema do modelo burocrático é atribuído a dois fatores básicos. Do ponto de vista interno, o modelo burocrático carregaria consigo

contradições que terminariam por inviabilizá-lo, principalmente por basear-se em controles rígidos sobre os procedimentos administrativos:

“[no modelo burocrático] os controles administrativos visando evitar a corrupção e o nepotismo são sempre a priori . Parte-se de uma desconfiança prévia nos administradores públicos e nos cidadãos que a eles dirigem demandas. Por isso, são sempre necessários controles rígidos de processos, como por exemplo na admissão de pessoal, nas compras e no atendimento a demandas. Por outro lado, o controle (...) transforma-se na própria razão de ser do funcionário. Em conseqüência, o Estado volta-se para si mesmo, perdendo a noção de sua missão básica, que é servir à sociedade. A qualidade fundamental da administração pública burocrática é a efetividade no controle dos abusos; seu defeito, a ineficiência, a auto-referência, a incapacidade de voltar-se para o serviço aos cidadãos vistos como clientes.” (Brasil, 1995, 21).

Por outro lado, outra argumentação presente nos textos aponta para a dinâmica histórica – o papel do Estado – e a inadequação do modelo burocrático frente às recentes transformações do Estado:

“A administração pública burocrática surge na segunda metade do século XIX, na época do Estado liberal (...) A administração pública gerencial emerge na segunda metade do século XX, como resposta, de um lado, à expansão das funções econômicas e sociais do Estado e, de outro, ao desenvolvimento tecnológico e à globalização da economia mundial, uma vez que ambos deixaram à mostra os problemas associados à adoção do modelo anterior. A eficiência da administração pública – a necessidade de reduzir custos e aumentar a qualidade dos serviços, tendo o cidadão como beneficiário – torna-se então essencial.” (Brasil, 1995, 21).

Desta forma, na crítica à administração burocrática, a questão central é definida como a ineficiência do modelo burocrático, seja pelas características próprias desse modo de gestão, seja pelos desafios colocados pelo “novo papel do Estado”.

O problema, no plano da teoria geral da administração pública, não é, portanto, causado de forma intencional, antes é apresentado como uma solução que se tornou ineficiente por suas próprias características, associadas às mudanças históricas. Na adaptação desta teoria geral ao caso brasileiro, no entanto, a narrativa procura apontar e estabelecer responsabilidades com relação à crise. Os textos iniciais, publicados entre 1995 e 1996, enfatizam a questão do “retrocesso burocrático” a partir da promulgação da Constituição de 1988. A argumentação básica consiste na idéia de que havia um esforço deliberado no sentido de superação do modelo burocrático instituído na “era Vargas” - traduzido principalmente nas experiências do Decreto-Lei 200 e nas tentativas de desburocratização da década de 1980 - esforços que “a Constituição de 1988 (...) ignorou completamente”. (Bresser Pereira, 1995-a, 8).

“Os constituintes e mais amplamente a sociedade brasileira revelaram nesse momento uma incrível incapacidade de ver o novo. Perceberam apenas que a administração burocrática clássica, que se começara a ser implantada no país nos anos 30, não havia sido plenamente instaurada. Viram que o Estado havia adotado estratégias descentralizadoras – as autarquias e fundações públicas – que não se enquadravam no modelo burocrático-profissional clássico e que, portanto, não eram tão seguras contra o empreguismo (...) E decidiram completar a revolução burocrática antes de pensar nos princípios da moderna administração pública. Agiram segundo um raciocínio linear semelhante ao daquele gênio da seqüência das ações administrativas para o qual seria, primeiro, completar a revolução mecânica, para só depois participar da revolução eletrônica.” (Bresser Pereira, 1995-a, 8-9).

Assim, o modelo burocrático é representado de duas formas diferentes nos textos analisados. Quando apresentadas suas características gerais, adota-se a explicação dos estágios (administração patrimonialista - administração burocrática - administração gerencial), e a introdução do modelo não é relacionada a intenções deliberadas de promover efeitos perversos. A argumentação, neste sentido, caminha por entre as teorias das causas mecânicas ou não-intencionais. Porém,

quando analisado no contexto brasileiro, a ênfase recai sobre o “retrocesso burocrático”, destacando a intenção dos “constituintes” e da “sociedade brasileira” (Bresser Pereira, 1995-a, 8) em barrar o surgimento do modelo gerencial, responsabilizando estes atores pelo problema: a crise do Estado e da administração pública. Embora estabeleça responsabilidades, esta posição não é necessariamente ofensiva: “sociedade” e “constituintes” são grupos difusos. Esta estratégia de definição do problema, no entanto, geraria intensa oposição de outro grupo de atores – os burocratas. Bresser Pereira destina uma grande parte de seus escritos, em especial artigos publicados em jornais, aos servidores públicos, procurando contornar os custos políticos de sua estratégia de representação do problema durante o início do primeiro governo Cardoso. “A reforma gerencial não é contra os burocratas, e sim contra a administração pública burocrática”, comenta o ex-Ministro com relação às freqüentes críticas dos servidores públicos (Bresser Pereira, 1999-a, 20).

Em uma reflexão sobre a experiência de reforma, após a extinção do MARE, Bresser Pereira chama a atenção para a importância de uma “avaliação precisa” sobre as causas de um problema, ou de um “diagnóstico”. Diz ele:

“Uma reforma bem elaborada e competente depende de uma boa concepção ou um bom desenho. Este, por sua vez, será tanto melhor quanto mais preciso for o diagnóstico do problema e maior a competência jurídica e técnica dos reformadores. O diagnóstico básico estava claro para mim desde o início: a tentativa constitucional de 1988 de restaurar ou instaurar plenamente no país a administração pública burocrática havia sido um desastre. Com a desculpa de que o pior inimigo a ser combatido era o clientelismo, o serviço público tornara-se rígido e ineficiente, carecia de um sistema de incentivos e punições e sofria do excesso de regulamentos e procedimentos estritos.” (Bresser Pereira, 1999-a, 13).

Uma política, como afirma Bresser Pereira, depende tanto da estratégia de definição de problemas (denominado por ele como “diagnóstico”) quanto da fundamentação técnica e jurídica. Stone (2002) ressalta a importância da

legitimação das teorias causais, baseada, sobretudo, no sistema jurídico e em teorias científicas. De acordo com a autora, as relações causais estabelecidas na definição de problemas não são aceitas acriticamente, sendo importante a fundamentação teórica para sua legitimação:

“The political success of causal theories is constrained by two powerful social institutions for determining cause and legitimating claims about harms: law and science. (…). Not all battles over causal histories will be resolved in the court of law or science; but most significant ones will find their way into one or both of these forums.” (Stone, 2002, 203).

Nesta perspectiva, o sistema jurídico ajudaria a garantir autoridade formal para uma relação causal estabelecida, enquanto a ciência auxiliaria na construção do respaldo cultural. Os textos analisados neste estudo procuram legitimar as relações causais em ambas as frentes. No plano jurídico, as publicações do período procuram legitimar as proposta de reforma e atuar sobre definição de problemas27. Mas a argumentação sobre modelo de administração pública é construída sobre um dos pilares das ciências sociais: a teoria da burocracia de Weber. Outros autores, como Marx, Engels, Gramsci, Althusser, além de Nicos Poulantzas, Adam Przeworski, Theda Skocpol, Peter Evans e Norberto Bobbio são convocados por Bresser Pereira em sua análise sobre o conceito de Estado na ciência política, que originou o artigo “Estado, Aparelho de Estado e Sociedade Civil”, publicado pelo MARE, em 1995 (Bresser Pereira, 1995-b). Diversos textos publicados a partir de 1997 procuram, da mesma forma, legitimar a narrativa da crise a partir da perspectiva das ciências humanas, procurando também demonstrar a filiação teórica das idéias a respeito da reforma do Estado28.

27

A este respeito ver Modesto, Paulo. “Reforma administrativa e direito adquirido”. Textos para Discussão no. 5. Brasília, Enap, 1995 e Bresser Pereira. “Cidadania e Res Publica: a emergência dos direitos republicanos”. Revista de Filosofia Política, vol. 1. Porto Alegre, UFRGS, 1997.

28

Especialmente o texto “A reforma do Estado nos anos 90: lógica e mecanismos de controle”, publicado nos Cadernos MARE da Reforma do Estado em 1997 e, no ano seguinte, na Revista Lua

Nova (n.º 45, pp. 49-95). Este artigo de Bresser Pereira, exatamente por objetivar a legitimação de

suas idéias por meio de autores de expressão no campo das ciências sociais levou à publicação de um texto crítico, que procura analisar o discurso do então ministro por meio da Teoria da Ação

Finalmente, o teste derradeiro para a aceitação de uma história causal é sua aceitação. “Causal histories need to be fought for, defended, and sustained. There is always someone to tell a competing story and getting a causal history believed is not an easy task” (Stone, 2002, 202). Bresser Pereira, como policy entrepreneur da política de reforma da administração pública, levou a relação causal entre crise do modelo burocrático e crise da administração pública e do Estado a diversos fóruns, por meio de artigos publicados na mídia, em revistas acadêmicas, além das publicações que se utilizam dos canais institucionais do MARE, difundindo esta representação particular do problema.