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CAPÍTULO 2: DEFINIÇÃO DE PROBLEMAS NA POLÍTICA DE REFORMA DA

2.3 A transformação de condições em problemas

2.3.1 Representação simbólica da reforma

2.3.1.2 Narrativas de declínio

Além das narrativas causais, outra narrativa bastante comum na definição de problema é composta por histórias de declínio (Stone, 2002). Numa primeira versão deste tipo de narrativa, um momento inicial é destacado e caracterizado como extremamente negativo. Segue-se um segundo momento, no qual algumas mudanças promovem melhorias nas condições iniciais. Este processo é interrompido, dando origem ao terceiro momento, que corresponde à situação atual. O momento atual é retratado como potencialmente desastroso, ensejando uma ação enérgica e urgente.

A segunda versão da narrativa de declínio situa o momento inicial em condições altamente positivas, sendo estas crescentemente substituídas por acontecimentos negativos. Também neste caso, momento atual é caracterizado como negativo, a menos que algumas medidas sejam tomadas para reverter a situação. Em ambos os casos, a estratégia de definição do problema inicia-se com a descrição de um período anterior, representado como negativo, para então situar o momento atual na perspectiva de mudança positiva.

Comunicativa de Habermas (Andrews, C.W. e Kouzmin, A. “O Discurso da Nova Administração Pública”. Lua Nova, n.º 45, 1998; pp. 97-129).

Figura 2.1: Narrativas de declínio

A análise dos textos selecionados permite evidenciar a aplicação de narrativas de declínio na construção da idéia de problema na política de reforma administrativa. A idéia da crise do Estado e, mais especificamente, a crise da administração pública é narrada por meio de uma reconstituição histórica que procura transformar uma condição percebida em um problema objetivo. Um momento inicial é fixado para a narrativa da crise, sendo este seguido por mudanças, que resultam num quadro atual bastante deteriorado, impelindo o governo a uma ação emergencial. Cada um desses momentos é caracterizado de forma valorativa (positiva ou negativa).

O modelo patrimonialista é representado como negativo, sendo entendido como fonte de corrupção e nepotismo (Brasil 1995, 20), clientelismo e fisiologismo (Brasil, 1995, 25). A este modelo, seguiu-se a administração burocrática. Esta, em raros momentos não é qualificada como negativa, principalmente quando comparado ao modelo patrimonialista29. No entanto, a representação dominante consiste em qualificar o modelo burocrático como negativo. O modelo é ineficiente, auto-referido, incapaz de voltar-se para os cidadãos (Brasil, 1995, 21), além de ser caro e lento (Bresser Pereira: 1996-a).

Na análise do caso brasileiro, os textos procuram construir a idéia de problema utilizando a narrativa de declínio. A um momento representado como negativo (administração patrimonialista), segue-se um segundo momento positivo

29

Como destaca o Plano Diretor da reforma: “a qualidade fundamental da administração pública burocrática é a efetividade no controle dos abusos” (Brasil, 1995, 21).

Situação 1 Negativa Situação 2 Positiva Situação 3 (momento atual) Negativa: crise iminente Necessidade de ação urgente Situação 1 Positiva Situação 2 Negativa Situação 3 (momento atual) Negativa: crise iminente Necessidade de ação urgente

(administração burocrática). No entanto, este segundo momento é rapidamente convertido de positivo em negativo tanto por seu fracasso em eliminar as características indesejáveis da situação inicial (exemplificada pela incapacidade do DASP em eliminar traços patrimonialistas), quanto pela geração de efeitos perversos. Seguem-se algumas tentativas de superação do modelo burocrático, caracterizadas como positivas (exemplificadas pelas reformas do Decreto-Lei/200 e das ações de desburocratização nos anos 1980). No entanto, esta situação positiva é novamente transformada em negativa (devido às mudanças efetivadas pela Constituição de 1988). A situação atual é representada da seguinte forma: “Como resultado do retrocesso burocrático de 1988 houve um encarecimento significativo do custeio da máquina administrativa, tanto no que se refere a gastos com pessoal como bens e serviços, e um enorme aumento da ineficiência dos serviços públicos” (Brasil, 1995, 29-30). Caberia ao governo, portanto, uma ação urgente para reverter esta situação negativa.

Figura 2.2: Narrativas de declínio nos textos analisados

A esta narrativa de declínio, que enseja a necessidade de ação por parte do governo, soma-se, na estrutura dos textos analisados, uma outra narrativa também bastante comum na estratégia de definição de problemas. Stone (2002, 141-142) denomina esta variação da narrativa de declínio como stymied progress: “The stymied progress story runs like this: in the beginning things were terrible. Then

Situação 4 Negativa CF/88 Situação 1 Negativa Modelo patrimonialista Situação 3 Positiva DL/200; desburocratiza- ção Situação 2 Positiva e Negativa Modelo burocrático Necessidade de ação urgente

things got better, thanks to a certain someone. But now somebody or something is interfering with our hero, so things are going to be terrible again”.

Este recurso narrativo é particularmente ressaltado em momentos em que os textos relacionam a definição de problema com o plano de estabilização macroeconômica. A idéia geral é que a crise econômica dos anos 1980 foi contida pelo Plano Real, a partir de 1994. No entanto, esta “conquista” está ameaçada pela crise do Estado. E, a menos que esta crise do Estado, traduzida, como vimos, nas crises fiscal, do modo de intervenção estatal e da administração pública seja superada, a ameaça de crise econômica estará presente. Assim, a estabilidade macroeconômica, alcançada pelo Plano Real só poderia se consolidar a partir do enfrentamento da crise do Estado e da reforma da administração pública.

No primeiro texto selecionado para análise, datado de janeiro de 1995, portanto logo após assumir o Ministério da Administração e Reforma do Estado, Bresser Pereira escreve um artigo intitulado “A Reforma do Estado”. Neste momento, a crise do Estado é narrada como fruto de uma sucessão de crises que se agravaram a partir dos anos de 1980 e que começam a ser superadas com o Plano Real, demandando ação imediata do novo governo para a manutenção da estabilidade econômica e da “reconstrução do Estado”:

“O Brasil, nestes últimos quinze anos, viveu uma grande crise econômica e política, cuja causa fundamental é clara: a grande crise do Estado: crise fiscal do Estado, crise do modo de intervenção do Estado na economia, crise do próprio aparelho estatal (...). 1994 foi afinal o ano da grande virada; foi o sinal do fim da crise econômica, com o êxito do Plano Real; foi o marco da superação da crise política, com e eleição de Fernando Henrique, no bojo de um grande acordo nacional. Se a causa principal da crise foi a crise do Estado, a tarefa fundamental que inspirará o novo governo está clara: a reforma e a reconstrução do Estado30.

30

Bresser Pereira em “A Reforma do Estado”. Artigo publicado simultaneamente em Correio

Esta mesma idéia parece também em outro artigo do mesmo ano, publicado em maio, nos “Textos Para Discussão”:

“Nos últimos quinze anos o Brasil viveu uma crise econômica sem precedentes. Crise que manteve a renda por habitante estagnada e elevou as taxas de inflação para níveis altíssimos. Em 1994, porém, estabilizaram-se os preços através do Plano Real, criando-se as condições para a retomada do crescimento. Entretanto, não se imagine que a estabilização dos preços esteja consolidada, nem que o desenvolvimento esteja assegurado” (Bresser Pereira, 1995-a, 4).

Na apresentação ao Plano Diretor, o então presidente Fernando Henrique Cardoso confirma a importância da reforma para a manutenção da estabilidade: “A reforma do Estado passou a ser instrumento indispensável para consolidar a estabilidade e assegurar o crescimento sustentado da economia” (Brasil, 1995, 9).

Aplicadas ao processo político, as narrativas são representações de mundo, que têm como objetivo transformar condições em problemas. As narrativas de declínio conferem um caráter dramático a esta representação ao enfatizar uma tensão entre situações positivas e negativas. Transformam condições em problemas ao demandar ação urgente, ao formatar uma história em que a necessidade de mudança seja percebida como fato objetivo: “O primeiro requisito para o êxito de uma reforma é que ela responda a uma demanda social real (embora possivelmente oculta)”, diz Bresser Pereira (1999-a, 10). Criar a idéia de urgência e de “demanda real” são maneiras de transformar uma condição em problema. Caso a necessidade por mudança não seja percebida (“demanda oculta”) cabe aos formuladores de políticas representá-las de forma que o problema seja compartilhado. “A demanda existia”, continua o autor, “mas não estava clara para ninguém, não fazia parte da agenda política da nação e não fora um tema relevante na campanha presidencial de 1994” (Bresser Pereira, 1999-a, 10). Para afirmar a necessidade da mudança, o então ministro concentra seus esforços na divulgação da reforma em diversos fóruns, afirmando as narrativas que discutimos aqui sobre causas e difundido também as histórias de declínio.

Mais adiante, ao discutirmos a atuação de Bresser como policy entrepreneur da reforma, analisaremos as formas empregadas na divulgação das idéias.