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O MARE e a estratégia de difusão das idéias

CAPÍTULO 2: DEFINIÇÃO DE PROBLEMAS NA POLÍTICA DE REFORMA DA

3.3 A transformação de idéias em soluções

3.3.2 O MARE e a estratégia de difusão das idéias

No modelo de Kingdon, dois elementos são considerados fundamentais para a transformação de uma idéia em solução: a ativa participação de um empreendedor (policy entrepreneur) e o processo de difusão e “amaciamento” das idéias (soften up).

Bresser Pereira assume claramente o papel de empreendedor, da maneira como Kingdon (2003, 122) define este ator: um indivíduo cuja característica principal consiste em investir seus recursos, tais como tempo, energia, prestígio, reputação, em função de uma idéia. Logo após a publicação do Plano Diretor, o então ministro empenha-se em difundir as idéias presentes no documento, procurando enfatizar as características positivas dos projetos propostos pelo governo: “Dispunha de um poderoso instrumento de persuasão: o Plano Diretor. Não perdia oportunidade de apresentá-lo aos servidores (...)”, diz Bresser Pereira (1999-a, 20).

Além de utilizar o Plano Diretor como mecanismo de persuasão junto aos servidores, a mesma estratégia foi utilizada para difundir as idéias para outras audiências:

“Era essencial persuadir a opinião pública. Então, durante os dois anos e meio de discussão da emenda no Congresso, tornei-me o advogado nacional da reforma. Levei o Plano Diretor e a emenda para todos os lugares, para todos os foros, debatendo, argumentando. Nesses debates, procurei ter uma mensagem simples e clara, em que os aspectos positivos – e não apenas os punitivos – da reforma também estivessem presentes.” (Bresser Pereira, 1999-a, 16).

A ênfase na difusão de “aspectos positivos” da reforma se deve à recepção, bastante negativa, principalmente por parte dos servidores públicos e da oposição, com relação às propostas de reforma constitucional, apresentadas logo no início do governo. A imagem da política de reforma da administração pública (policy

emotivos (tone). O tone é fundamental para a mobilização em torno das idéias de reforma, atraindo ou afastando novos participantes. Uma representação negativa ou positiva das soluções constitui-se, desta forma, em um fator crítico no desenvolvimento das questões. A proposta de reforma constitucional, de acordo com Bresser Pereira, carregava características “negativas”, exploradas, sobretudo, pela mídia. No entanto, como empreendedor da reforma, sua atuação se dá no sentindo de buscar converter esse tone negativo em positivo:

“Os jornalistas apenas se interessavam pelos aspectos financeiros e de curto prazo. Seus temas prediletos eram a redução de quadros, o fim da estabilidade, o teto salarial (...). Pouco se interessavam pelos objetivos mais positivos, de médio-prazo: maior papel para as organizações públicas não- estatais, aumento da eficiência, foco no cliente cidadão, nova política de recursos humanos e nova política de concursos públicos. Mas consegui inserir progressivamente as novas idéias, e, aos poucos, começou a ficar claro que eu não era, como meus adversários sugeriam, o ´carrasco dos servidores públicos´, o ´neoliberal impiedoso´, ou o ´defensor xiita do mercado´, e sim que minha mensagem envolvia reconstruir o Estado (...).” (Bresser Pereira, 1999-a, 16).

Em outra passagem, o ex-ministro comenta a forma pela qual utilizou a mídia como recurso estratégico para representar as propostas de forma positiva, a partir da ênfase na relação entre a definição de problema (o modelo burocrático) e as soluções propostas (administração gerencial):

“Quando as idéias foram inicialmente apresentadas, em Janeiro de 1995, a resistência a elas foi muito grande. Tratei, entretanto, de enfrentar essa resistência da forma mais direta e aberta possível, usando a mídia como instrumento de comunicação. O tema era novo e complexo para a opinião pública e a imprensa tinha dificuldades em dar ao debate uma visão completa e fidedigna. Não obstante, a imprensa serviu como um maravilhoso instrumento para o debate das idéias. Minha estratégia principal era atacar a administração pública burocrática, ao mesmo tempo que defendia as carreiras

de Estado e o fortalecimento da capacidade gerencial do Estado. Dessa forma eu confundia meus críticos, que afirmavam que eu agia contra os administradores públicos ou burocratas, quando, na verdade, procurava fortalece-los, torna-los mais autônomos e responsáveis. Em pouco tempo, um tema que não estava na agenda do país assumiu o caráter de um grande debate nacional.” (Bresser Pereira, 1998-e, 13).

A utilização da imprensa, sem dúvida, foi um recurso explorado por Bresser Pereira principalmente no início de sua atuação frente ao MARE. Em 1995, o então ministro publicou 16 artigos, sendo vários desses artigos publicados mais de uma vez, em jornais diferentes. No ano seguinte, 1996, são publicados 10 artigos de sua autoria. Em 1997, o então ministro já publicava a metade do volume de artigos do início do governo: 8 artigos. A partir de 1998, este número se reduz ainda mais, e os textos não têm mais a reforma como objeto central65.

Ao longo de 1995, o tema predominante nesses artigos foi a reforma constitucional. A maioria dos textos publicados discute exclusivamente as emendas constitucionais, abrangendo questões relativas à estabilidade, extinção do regime jurídico único e outros pontos considerados polêmicos. Os artigos destacam as características positivas das medidas enviadas ao Congresso, procurando discutir a reforma constitucional em conjunto com outros projetos de reforma do Estado, contextualizando a proposta de emendas. São poucos os textos que não abordam a questão das emendas constitucionais. Nestas exceções, a atenção é concentrada na criação das Organizações Sociais e do “setor público- não estatal”.

A partir de 1996, alguns textos ainda se concentram na reforma constitucional, reforçando os aspectos positivos das mudanças, discutindo a tramitação do projeto no Congresso, e inserindo a proposta no contexto maior da administração pública gerencial. Observa-se neste ano, em comparação com as publicações de 1995, um aumento na quantidade de textos que destacam o modelo

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gerencial de administração e a redefinição do papel do Estado a partir do relato de experiências internacionais.

Em 1997, os artigos publicados continuam a destacar as emendas constitucionais, principalmente a tramitação das propostas no Congresso. Mas nota-se um equilíbrio maior na distribuição temática dos textos, que contemplam também o novo “papel” do Estado, fazendo referência a projetos e programas desenvolvidos em outros países. No ano seguinte, com as emendas aprovadas no Senado, em março, e a promulgação, em junho, nenhum texto é publicado pelo autor sobre o tema, tão pouco sobre os demais projetos previstos no Plano Diretor.

É importante registrar ainda um artigo publicado na Folha de São Paulo, em 10 de janeiro de 1999 (a única publicação deste ano), intitulado “Um Novo Aprendizado”. Já no Ministério da Ciência e Tecnologia, o ex-ministro do MARE faz um balanço (muito positivo) de sua atuação na reforma da administração pública, considerando os fatores que teriam auxiliado na aprovação das emendas constitucionais.

A atuação de Bresser Pereira como policy entrepreneur da reforma é fundamental no processo que Kingdon chama de “amaciamento” (softening up). Este processo consiste na divulgação das idéias em fóruns diferentes, tarefa desenvolvida pelo então ministro e também por seus assessores no MARE. Vimos que a imprensa escrita foi utilizada como veículo para a divulgação das soluções propostas para a reforma. Nestes textos, as idéias são comunicadas ao público em geral, e também aos servidores públicos. Mas a estratégia de softening up foi muito além desta audiência. Outros textos foram publicados visando grupos mais especializados. Bresser Pereira escreveu o artigo “Cidadania e Res Publica: A Emergência dos Direitos Republicanos” (Bresser Pereira, 1997-a) com o objetivo de divulgar a reforma entre os juristas. Conforme o autor, “Fiz várias tentativas de falar e debater com juízes e promotores, mas sem sucesso. (...) Receberam, entretanto, com grande interesse o trabalho teórico que fundamenta, no plano do direito, a reforma” (Bresser Pereira, 1999-a, 15). Outros artigos de cunho teórico foram publicados pelo autor em revistas acadêmicas, como a Revista Lua Nova

(artigos publicados em 1995 e 1998), Revista de Filosofia Política (1997), Novos Estudos CEBRAP (1998) e Revista de Administração Pública (2000)66.

Dentre as iniciativas de difusão da reforma, destaca-se a atuação da ENAP - Escola Nacional de Administração Pública - com a reativação da “daspiana” Revista do Serviço Público, cuja edição estava paralisada desde 198967. A Revista conferiu espaço aos artigos de técnicos envolvidos nos projetos de reforma, além de outros servidores da alta administração pública. Outros artigos, sempre versando sobre temas ligados à reforma gerencial, são elaborados por especialistas brasileiros e estrangeiros, enfocando as experiências de reforma no cenário internacional, tendências da reforma brasileira e reflexões sobre os projetos desenvolvidos no MARE. A partir de 1995 foram também lançados pela ENAP uma série de Textos para Discussão, abordando a mesma temática68.

Outras publicações, de iniciativa direta do MARE, foram lançadas durante o período. A Revista Reforma Gerencial foi criada em março de 1998, tendo como público-alvo os servidores federais. Com o objetivo de disseminar as idéias da administração gerencial, a revista ocupa um espaço intermediário entre as revistas voltadas para o público acadêmico (Revista do Serviço Público) e as demais publicações informativas (Jornal do Servidor, Boletim Estatístico do MARE), produzidas pelo governo. Trazendo seções fixas (“servidores fazendo a mudança”, “capacitação do servidor”, “modernizando o Estado”, “entrevista”, “artigo”, entre outras), a Revista teve ao todo, seis números publicados, sendo extinta em janeiro de 1999. Em seu lugar, foi criada a Revista Administração Federal que manteve as características da revista anterior, mas teve apenas apenas duas edições (maio-junho de 1999 e julho-agosto de 1999)69.

Também os Cadernos MARE da Reforma do Estado contribuem para a documentação dos principais projetos e divulgação dos objetivos da reforma. Os

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Ver Apêndice A, item 3-b.

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A Revista do Serviço Público foi criada para dar sustentação à reforma promovida pelo DASP, defendendo as idéias do departamento e, mais tarde, defendendo-o em sua luta pela sobrevivência e pela manutenção de suas atividades dentro do Estado.

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Foram editados 5 números dos Textos para Discussão em 1995; 7 em 1996; 10 em 1997; 10 em 1998; 1 em 1999; 6 em 2000; 5 em 2001; e 3 em 2002.

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Cadernos eram temáticos e tinham como objetivo atingir o público diretamente afetado pela reforma. Foram produzidos 17 números dos Cadernos, entre 1997 e 199870.

Além de publicações, a estratégia de softening up envolveu visitas constantes de membros da equipe da Secretaria da Reforma do Estado a congressos e palestras por diversos estados do país. As idéias sobre a reforma foram também divulgadas junto a núcleos formadores de opinião por meio da realização de seminários organizados pelo MARE, entre os quais o Seminário Internacional Reforma Administrativa em Países em Desenvolvimento, em novembro de 1997; Seminário Reforma Gerencial do Estado, novembro de 1998 (ambos realizados na ENAP); Seminário Internacional Sociedade e Reforma do Estado, realizado em São Paulo em março de 1998; Seminário Internacional Reestruturação e Reforma do Estado: Brasil e América Latina no Processo de Globalização – realizado na USP em maio de 1998.

Também foram estimuladas linhas de pesquisa sobre a Reforma do Estado em diversas universidades, como por exemplo o programa de mestrado da Fundação Getúlio Vargas, e o núcleo de pesquisa da Fundação Instituto de Administração (FIA), ligada ao Departamento de Administração, Economia e Contabilidade (FEA) da USP. A pesquisa de Abrucio e Pó (2002), que apresenta um survey descritivo da produção bibliográfica sobre a reforma do Estado entre os anos 1995 e 2002, mostra que houve, a partir das propostas de reforma do MARE, uma grande expansão de estudos acadêmicos voltados ao tema da reforma, além do surgimento de novas áreas e temas de pesquisa vinculados a essa temática.

Desta forma, o MARE se constitui como uma policy community, fortalecendo a representação da solução – a administração gerencial – e disseminando essas idéias para outras comunidades.

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3.4 Considerações finais

As soluções e alternativas propostas pela reforma são definidas, desde o início do governo Fernando Henrique Cardoso, como um conjunto de mudanças destinadas à implantação, na administração pública brasileira, do modelo gerencial. Representada como uma solução legítima (valence issue) do ponto de vista técnico, político e social, as idéias a respeito do modelo gerencial vão sendo ampliadas, ao longo do tempo, nos textos do então ministro Bresser Pereira. Se inicialmente, as soluções remetem às idéias de Osborne e Gaebler (1994), aos poucos o modelo vai sendo fundamentado com base em outras experiências e nas idéias na “nova administração pública”71.

De qualquer forma, independentemente da fundamentação, muitas idéias estão disponíveis e apenas algumas são selecionadas. Para uma idéia ser seriamente considerada, e posteriormente selecionada, alguns critérios, como viabilidade técnica, congruência com os valores da comunidade, aceitação pública e limitações orçamentárias são apontados por Kingdon (2003) como fundamentais.

As propostas de reforma apresentadas são demonstradas viáveis, do ponto de vista técnico, por meio principalmente dos Cadernos MARE, nos quais os burocratas envolvidos em cada um dos projetos procuram detalhar os objetivos e estratégias de implementação, convertendo as idéias em objetivos práticos. Mesmo que a implementação não se desenvolva da forma como planejado, sem essas especificações técnicas dificilmente as soluções seriam aceitas, como afirma Kingdon (2003, 132):

“Attention to the details of implementation does not necessarily result in enacted programs that work. Policy makers do not always anticipate all of the consequences that will flow from their actions (...). To be seriously considered, however, policy makers believe that a proposal will work if

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Em Reforma do Estado para a Cidadania (Bresser Pereira, 1998-e), um capítulo inteiro é dedicado à discussão dos fundamentos teóricos do modelo gerencial (pp. 81-162).

enacted, even if the idea seems far-fetched in hindsight. Without that belief in its technical feasibility, the proposal is not likely to survive to the point of serious consideration.”

Além disso, para que as soluções sejam aceitas, é necessário que elas sejam compartilhadas pela comunidade de especialistas. Pela fragilidade do campo acadêmico em administração pública no país, esta comunidade não se constitui como geradora de idéias para a reforma. Por outro lado, comunidades mais ativas, como as formadas por consultores internacionais, compartilham das mesmas visões de mundo a respeito de soluções para a administração pública, tendo grande influência na geração de alternativas.

O MARE procurou influenciar a aceitação pública das soluções, principalmente no processo de difusão das idéias e da ênfase nas “características positivas” da reforma. O apelo às valence issues atua exatamente no sentido de garantir apoio às soluções junto ao grande público. Limitações orçamentárias tão pouco se constituíram num fator de restrição às soluções propostas, em primeiro lugar porque as próprias soluções se apresentavam como meio de equilibrar as contas públicas, e também pelo financiamento internacional garantido para a execução da reforma.

A existência de uma solução que satisfaz esses critérios faz com que uma questão tenha maior possibilidade de chegar à agenda. Além disso, como ressaltam Baumgartner e Jones (1993), mesmo que não exista uma relação de causa e efeito entre definição de problemas e geração de alternativas, a proximidade entre a policy image das soluções e a policy image dos problemas aumentam as chances de um tópico entrar na agenda. Esta “costura” é evidente nos textos analisados, uma vez que o modelo gerencial (a solução), da forma como é representado, encontra correspondência na definição de problemas analisada no capítulo anterior (o modelo burocrático).

As soluções também não apresentam relação de causa e efeito com o outro fluxo do modelo de Kingdon – a dinâmica política. No entanto, sem um contexto político e institucional favorável, tanto soluções quanto problemas podem ser

definidos e difundidos sem provocarem mudanças na agenda. São estas questões que conduzirão nossa análise no próximo capítulo.