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CAPÍTULO 4: A DINÂMICA POLÍTICA

4.2 Governo Federal no fluxo político

4.2.3 Questões jurisdicionais

A criação de um órgão específico para lidar com a reforma da administração pública representa um esforço no sentido de trazer as questões relacionadas a essa política para esta nova estrutura, ou seja, estreitar a jurisdição sobre essa questão. A relação entre jurisdição e o processo de agenda-setting é destacada tanto por Kingdon (2003) quanto por Baumgartner e Jones (1993). Para Kingdon, o processo de agenda-setting no fluxo político é afetado, além dos processos anteriormente mencionados, pela mudança no domínio sobre uma questão, ou seja, pela disputa entre agências administrativas em torno da jurisdição sobre determinado tema, processo que pode levar uma idéia a se destacar e ascender à agenda. Mas é no modelo de Baumgartner e Jones que encontramos uma análise mais detalhada da questão jurisdicional, principalmente porque, ao abordar esta questão, os autores destacam a dinâmica institucional do processo de agenda-setting.

Vimos no primeiro capítulo que Baumgartner e Jones (1993) denominam

policy venue às instituições que detém autoridade para decidir sobre as questões

de políticas governamentais. Para os autores, a policy venue está diretamente relacionada à imagem da política (policy image) e, na medida em que a imagem de uma questão é redefinida, ela frequentemente também se move para a jurisdição de outras instituições. Da mesma forma, Baumgartner e Jones destacam que reestruturações organizacionais e mudanças jurisdicionais também podem produzir mudanças na política, uma vez que esta passa a ser considerada por um grupo de formuladores de políticas distinto daqueles presentes na organização anterior. Assim, mudanças na policy venue produzem alterações na policy image e

também, de forma inversa, mudanças na policy image alteram o domínio da política, ou a jurisdição, sobre uma questão.

A reestruturação organizacional que culminou na criação do MARE, no início de 1995, representa uma mudança jurisdicional na questão da política de administração pública. Em termos de estruturas organizacionais criadas para conduzir reforma administrativas, temos como primeira iniciativa o DASP - Departamento Administrativo do Serviço Público77, criado em 1938. Quando este órgão é extinto, em 1986, suas funções são transferidas para a SEDAP – Secretaria de Administração Pública da Presidência da República78, que permanece na estrutura organizacional do governo federal até 1990. Na reorganização do governo Collor, a SEDAP é transformada em SAF - Secretaria da Administração Federal da Presidência da República79 - tendo sido responsável pela política de administração pública até 1995, quando o MARE é criado80. Na formação do MARE, o legado institucional das estruturas anteriores não se colocou como fator de restrição para a nova política de administração pública e para a geração de uma nova policy image, uma vez que não se formou, ao longo do tempo, uma comunidade orgânica em torno dessa política específica. Na ausência dessa comunidade, as questões relativas à política de administração pública foram tratadas de forma incremental, longe da atenção pública, por meio do desenvolvimento de ações fragmentadas e esparsas. Estas características - que Baumgartner e Jones entendem como sendo a “política de equilíbrio” – foram pontuadas pela mudança desencadeada pela reestruturação organizacional do início do governo Fernando Henrique Cardoso. Neste momento, a questão da

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Decreto-lei nº. 579, de 30 de julho de 1938. Entre 1938 e 1967, o DASP – Departamento Administrativo do Serviço Público - permanece vinculado à Presidência da República. A partir de 1967, com o Decreto-lei nº. 200, de 25 de fevereiro de 1967, a denominação do DASP é alterada para “Departamento Administrativo do Pessoal Civil”, sendo mantida a sigla DASP. Com a Lei nº. 6.036, de 1º de maio de 1974, o DASP é transformado em órgão de assessoramento imediato do Presidente da República e, no ano seguinte, sua denominação original é retomada.

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Decreto nº. 93.211, de 03 de setembro de 1986.

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Medida Provisória nº. 150, de 15 de março de 1990, posteriormente Lei nº. 8.028, de 12 de abril de 1990. A partir de 1992, a SAF é transferida para o Ministério do Trabalho e da Administração (Lei nº. 8.422, de 13.05.1992).

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Após a saída do tema da agenda, o MARE se dissolve, originando a SEGES - Secretaria de Gestão Pública, vinculada ao Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, em 1999.

política de administração pública rompe os limites do subsistema e chega ao macro-sistema político (ou à agenda governamental), levando à criação de uma nova estrutura. Esta nova estrutura, não encontrando limitações histórico- institucionais para suas alternativas, tem ampla liberdade para estruturar a participação no processo decisório da reforma. Bresser Pereira, à frente do novo ministério, monta sua equipe e com ela desenvolve a policy image da reforma, sem grandes conflitos com relação às estruturas anteriores, procurando consolidar a jurisdição da política de administração pública no MARE.

Embora tenha se estabelecido na ausência de conflitos com outras instituições especializadas no tema e que poderiam disputar a jurisdição sobre a questão da política de administração pública, o domínio dessa política, pelo MARE, não é exclusivo. A autoridade sobre uma questão, (policy venue) não é automaticamente atribuída a uma instituição específica, até mesmo pela própria característica da área: a reforma da administração pública, tal como proposta no Plano Diretor, envolveria todas as organizações públicas, além dos diferentes níveis de governo. A maior parte das decisões, no que diz respeito à implementação das soluções propostas pelo MARE, caberia a outras instituições. No caso das Organizações Sociais, das Agências Executivas, do programa de qualidade, entre outros projetos, o papel do MARE consistia em estimular a adesão ao projeto e prestar assessoria técnica às organizações que decidissem adotar novos formatos organizacionais e novas metodologias de gestão. Por estar na mesma linha hierárquica que os demais ministérios, o MARE não detinha autoridade formal para colocar em prática sua idéia de substituição do modelo burocrático pelo gerencial.

Além das questões relacionadas à implementação, as decisões sobre os próprios mecanismos de funcionamento das Organizações Sociais e das Agências também não estavam apenas sob a jurisdição do MARE. O Plano Diretor estabelece a concepção básica a respeitos desses modelos sem, no entanto, detalhar a forma pela qual a mudança seria efetivada. O processo de implementação, as flexibilidades de gestão a serem concedidas, os mecanismos de

avaliação a serem estabelecidos – eram tópicos a serem negociados conjuntamente entre o MARE e os demais ministérios e secretarias81.

Por outro lado, as emendas constitucionais, formuladas pelo ministério, uma vez encaminhadas ao Congresso Nacional, deixam de estar sob sua jurisdição. No Congresso, a ampla coalizão governista consegue manter o projeto de emendas sem alterações substanciais, como vimos no capítulo anterior. Com relação aos demais projetos do Plano Diretor, somente em 1998 é firmado o marco legal dos modelos de agências executivas e organizações sociais82. Como resultado, durante sua existência, o Ministério conseguiu instituir uma única agência executiva - o Inmetro (Instituto Nacional de Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial), em 1998, e duas organizações sociais – a Acerp (Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto) e a ABTLuS (Associação Brasileira de Tecnologia de Luz Síncrotron), ambas criadas em 1997 (Schwarz, 2002)83.

Outro espaço decisório que escapava à jurisdição do MARE era a Câmara de Reforma do Estado, órgão responsável pela definição das diretrizes da reforma e controlado pelo Ministro-Chefe da Casa Civil, Clóvis Carvalho. Na Câmara, frequentemente os posicionamentos de Bresser Pereira e Clóvis Carvalho se contrapunham, contando a Casa Civil com maior suporte presidencial do que o MARE (Martins, 2002, 242).

Assim, ao mesmo tempo em que representa o estreitamento da jurisdição sobre a política de reforma da administração pública, sendo instituído para lidar especificamente com esta questão, o MARE também perde espaço jurisdicional à medida que as decisões resultantes da política formulada são compartilhadas com

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Para uma análise mais detalhada do processo de implementação da reforma, ver Costa (2002).

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As agências executivas foram criadas por meio da Lei n.º 9.649, de 27 de maio de 1998. Já organizações sociais foram instituídas com a Lei n.º 9.637, de 15 de maio de 1998.

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Ainda no governo Fernando Henrique Cardoso, mas após a extinção do MARE, foram criadas mais cinco organizações sociais: Associação Brasileira para o Uso Sustentável da Biodiversidade da Amazônia - Bioamazônia (Decreto de 18 de março de 1999); Associação Rede Nacional de Ensino e Pesquisa – Rnp (Decreto no 4.077, de 9 de janeiro de 2002); Centro de Gestão e Estudos Estratégicos – Cgee (Decreto no 4.078, de 9 de janeiro de 2002); Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá – Idsm (Decreto no 3.605, de 20 de setembro de 2000); e Instituto de Matemática Pura e Aplicada – Impa (Decreto no 3.605, de 9 de setembro de 2002).

outros órgãos. Segundo a avaliação de Bresser Pereira, na ausência de poder político-institucional para fazer valer as decisões do MARE, restava-lhe apenas a persuasão:

“O problema na reforma administrativa é que (...) não tivemos a cooperação que esperávamos, e isto foi um grande problema para a implementação. A persuasão foi a principal arma (...) 80% é persuasão numa reforma sem o poder e a autoridade para implementar, o que torna o processo muito mais longo. O MARE teve que gastar muito tempo e energia para convencer os ministérios e outras instituições para transformar-se em agências executivas ou organizações sociais. Isso foi muito desgastante. A grande questão responsável por tudo isso foi que não tivemos poder e autoridade suficiente para implementar as mudanças institucionais desejadas no papel do Estado.” (Bresser Pereira apud Rezende, 2004, 73).

Esta estratégia de persuasão, como vimos no capítulo anterior, foi dirigida a diversos públicos, procurando mobilizar a atenção em torno das soluções propostas. Mas uma estratégia em especial foi perseguida para o fortalecimento da atuação do MARE: a persuasão junto aos níveis subnacionais de governo. Baumgartner e Jones (1993) mostram que a busca por policy venues mais favoráveis é uma estratégia frequentemente empregada pelos formuladores de políticas, processo que denominam venue shopping. De acordo com os autores, “Losers always have the option of trying to change the policy venue from, say, the national government to sub national units (...) and such efforts are a constant part of politics” (Baumgartner e Jones, 1993, 34). Sem “o poder e a autoridade” para levar adiante as soluções propostas no plano federal, a movimentação das propostas em direção aos estados, possibilitada pelo sistema federativo brasileiro, constitui-se em novo recurso de poder. As idéias se espalham rapidamente por entre essas venues o que, embora não garantisse ao MARE a possibilidade de ditar os rumos das políticas nos estados, fortaleceu sua posição jurisdicional sobre a questão no plano federal.