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2. A TEORIA DA PERDA DE UMA CHANCE E SUA

2.3. Natureza jurídica da prestação do serviço de advocacia e

Por muito tempo, questionou-se acerca da natureza da prestação do serviço advocatícios, se pública ou privada. A controvérsia, no entan- to, consolidou-se com previsão contida no art. 2.º, § 1.º, do Estatuto da Advocacia, o qual dispõe que “no seu ministério privado, o advogado presta serviço público e exerce função social”259.

Em verdade, a administração da justiça é espécie do gênero ativi- dade pública. Essa atividade pública, porém, não se confunde com a administração pública em sentido estrito. Relaciona-se com a função social da atividade advocatícia, que se dá quando o advogado concretiza a aplicação do direito – e não apenas da lei –, quando obtém a prestação jurisdicional, e quando participa do processo construtivo da justiça soci-

suas empresas controladas ou concessionárias de serviço público; IV - ocupan- tes de cargos ou funções vinculados direta ou indiretamente a qualquer órgão do Poder Judiciário e os que exercem serviços notariais e de registro; V - ocupantes de cargos ou funções vinculados direta ou indiretamente a atividade policial de qualquer natureza; VI - militares de qualquer natureza, na ativa; VII - ocupantes de cargos ou funções que tenham competência de lançamento, arrecadação ou fiscalização de tributos e contribuições parafiscais; VIII - ocupantes de funções de direção e gerência em instituições financeiras, inclusive privadas. [...] § 1º A incompatibilidade permanece mesmo que o ocupante do cargo ou função deixe de exercê-lo temporariamente. [...] § 2º Não se incluem nas hipóteses do inciso III os que não detenham poder de decisão relevante sobre interesses de terceiro, a juízo do conselho competente da OAB, bem como a administração acadêmica diretamente relacionada ao magistério jurídico. [...] Art. 29. Os Procuradores Gerais, Advogados Gerais, Defensores Gerais e dirigentes de órgãos jurídicos da Administração Pública direta, indireta e fundacional são exclusivamente legitimados para o exercício da advocacia vinculada à função que exerçam, durante o período da investidura.

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al, em rigorosa observância do status constitucional que lhe foi conferi- do, de que é indispensável à administração da justiça260.

Nas palavras de José Geraldo de Souza Junior, “[...] a compreen- são dos deveres e a plena concretização dos direitos dos advogados passam pela mediação de sua prática social, de sujeito coparticipante do processo de reinstituição contínua da sociedade”261.

Esse caráter de munus público foi consolidado pela Constituição da República e pela doutrina262. No entanto, em que pese o reconheci- mento da natureza de seu munus, importa recordar que, no presente trabalho, analisaremos a possibilidade de responsabilização civil do advogado liberal263 no que diz respeito à sua atuação profissional. A

260

LÔBO, op. cit., p. 28. 261

SOUZA JÚNIOR, 1990, p. 130. 262

Nas palavras de Rui Sodré “Deixava a advocacia de ser profissão exclusiva- mente privada e exercia com a mais ampla e irrestrita liberdade, para tornar-se regulamentada, selecionada, fiscalizada e disciplinada, funções essas delegadas pelo Poder Público à própria classe. Passou a imperar o princípio, até então desprezado, de que o advogado participa da administração da Justiça, que é serviço público. Dêsse princípio decorrem não só a subordinação do advogado à disciplina funcional, ao compromisso que presta ao iniciar a profissão, e ao mais importante de todos, qual seja o de ter acesso, como defensor da parte, no de- senrolar do processo judicial”. (SODRÉ, op. cit., p. 76). Gisela Gondim Ramos assevera que “Conquanto, pois, diga-se sempre que a advocacia é uma profissão liberal, o termo não significa que seja ela exercida no interesse privado, exclusi- vamente, porque acima dele está o serviço à Justiça. O advogado é um profissi- onal liberal, no sentido de que ele trabalha com a sua palavra – oral ou escrita – com seus dons de exposição e de persuasão, com seus conhecimentos jurídicos, e neste aspecto, sua independência é absoluta”. (RAMOS, 2013). No mesmo sentido, Paulo Lôbo ensina que “A advocacia, sobretudo quando ministrada em caráter privado, é exercida segundo uma função social intrínseca. A função social é sua mais importante e dignificante característica. O interesse particular do cliente ou da remuneração e o prestígio do advogado não podem sacrificar os interesses sociais e coletivos e o bem comum. A função social é o valor finalís- tico de seu mister. [...]. É serviço público, na medida em que o advogado parti- cipa necessariamente da Administração Pública da justiça, sem ser agente esta- tal; cumpre uma função social, na medida em que não é simples defensor judici- al do cliente, mas projeta seu ministério na dimensão comunitária, tendo sempre presente que o interesse individual que patrocine deve ser plasmado pelo inte- resse social” (LÔBO, 2009, p. 29-30).

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Nas palavras de Rui Sodré “Exercemos profissão liberal, concebida esta como uma atividade puramente intelectual. Ela é, segundo a definição do gran- de Dictionnaire Universal de P. Larousse, daquelas „cujo sucesso depende das

ressalva de José de Aguiar Dias remonta bem o objeto de nosso estudo, pois reconhece o caráter público da atividade do advogado, ressaltando, no que toca à responsabilidade civil, que, por não ser oficial público – particularidade que se situa fora do presente objeto –, a aferição de sua responsabilidade é puramente contratual, salvo nos casos de assistência judiciária264.

A relação entre cliente e advogado, a bem da verdade, nada mais é do que um contrato de mandato, sendo que quase a totalidade das rela- ções entre o mandante e o mandatário possuem, com fulcro nas regras do Código Civil, natureza eminentemente contratual265. A exceção dá-se quando o advogado atua com vínculo empregatício (advogado de uma empresa, por exemplo), situação esta em que, pelos danos causados pelo procurador, responderá a pessoa jurídica em nome de quem atua o ad- vogado266.

De rigor, a responsabilidade contratual se instrumentaliza através do mandato outorgado pelo cliente, através do qual o procura- dor/mandatário se obriga a defender o direito e oferecer conselhos e orientações profissionais ao mandante267.

Em sendo uma relação eminentemente contratual, à relação enta- bulada entre cliente e advogado incidem as normas do Código Civil atinentes à celebração e resilição contratuais, bem como as regras que regulamentam o adimplemento e o inadimplemento das obrigações con- tratuais. Além disso, existe lei especial que, par a par com o Código Civil, regem as relações estabelecidas entre o cliente e seu advogado, notadamente o Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil, Lei n.

faculdades do espírito‟. [...] hoje, o conceito de profissão liberal se ampliou tanto que nêle se incluem até as profissões técnicas. Para nós, no entanto, quan- do se diz que somos profissionais liberais, subentendem-se nessa denominação a preeminência de atividade meramente intelectual, exercia com liberdade e independência, ou seja, sem qualquer subordinação, nem mesmo até ao próprio cliente. É a profissão liberal eminentemente cultural, exercida com liberdade, em clima de liberdade e com integral independência” (SODRÉ, 1967, p. 81). 264

DIAS, op. cit., p. 410. No mesmo sentido, Félix Represas ensina que “Em general, la opinión que hoy prevalece es la de que el abogado aunque defende um interés particular, tasciende em su acción esse interés privado, para servir em realidade al interés público de la justicia” (REPRESAS, 1978, p. 33). 265

LOPES, 2001, p. 227. 266

CAVALIERI FILHO, 2012, p. 431. 267

8.906/94, e o Código de Ética do Conselho Federal da Ordem dos Ad- vogados do Brasil.

Em decorrência, portanto, da natureza do negócio jurídico a que se vincula, quando evidenciada alguma falha na prestação do serviço para o qual foi contratado o advogado, estaremos, na grande maioria das vezes, diante de uma infração contratual voluntária, porque oriunda de ato culposo do procurador. Diante de um inadimplemento imputável ao devedor da obrigação de fazer contida no mandato, pois normalmente o erro decorre de conduta exclusiva do causídico, e não de fatores que fogem à sua esfera de controle. E, a depender da situação no caso con- creto, o inadimplemento poderá ser, ainda, definitivo ou não definiti- vo268.

Inadimplida a avença, o credor, in casu, o cliente, poderá exigir do devedor, o advogado, o ressarcimento com a consequente indeniza- ção por perdas e danos269. A execução do contrato, para que a obrigação seja adimplida, nesses casos, dificilmente será o caminho eleito pelo devedor, porquanto, com a exceção de raríssimas situações, tendo perdi- do o prazo para a interposição de um recurso, por exemplo, não será possível exigir do advogado o cumprimento da avença270.

A ressalva é importante porque, inadimplida a avença e provada a culpa do advogado para fins de responsabilização do causídico, deverão incidir as regras civis a respeito da resolução do contrato. Não obstante, tem havido confusão entre, de um lado, o instituto da rescisão da avença em razão do inadimplemento do advogado e, de outro, o da reparação pela perda de uma chance, conforme se denota dos julgados analisados e explicados na Seção 2.7.1.1.5.

Em muitas das ações judiciais que têm como objeto o ressarci- mento pela perda de uma chance, como se verá, o fundamento do pedido repousa tão somente no inadimplemento contratual do advogado, inexis- tindo demonstração suficiente do dano derivado da perda das chances. Há, igualmente, situações em que, embora o fundamento da condenação tenha sido a teoria da perda de uma chance, o que se mandou ressarcir foi, na realidade, a importância dos honorários contratuais dispensados pelo cliente ao procurador inadimplente, o que evidencia uma incom- 268 RIZZARDO, 2008, p. 264. 269 ibidem, p. 267. 270

Nas palavras de Pontes de Miranda: “[...] basta que o inadimplemento ruim seja tal que se cancele o interesse do credor em torna-lo bom, ou que retire poder confiar-se no adimplemento posterior” (PONTES DE MIRANDA, 1984, p. 342).

preensão da teoria tanto por parte dos advogados, quanto por parte dos julgadores.