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Neoliberalismo, Democracia e participação política

CAPÍTULO I – DEMOCRACIA E GLOBALIZAÇÃO NEOLIBERAL

2. Democracia e participação política no contexto da Globalização Neoliberal

2.3. Neoliberalismo, Democracia e participação política

Nesta nova ordem mundial, a democracia e os direitos humanos e sociais passam a constituir vítimas inevitáveis dos efeitos das políticas supra descritas. Não obstante estes efeitos perversos, esta situação parece não apontar para a extinção do Estado nacional ou da Democracia, mas antes para a sua reconfiguração em novas bases.

Neoliberalismo e Democracia, considerados a partir dos seus conceitos fundamentais apresentam-se aparentemente como incompatíveis. Todavia, nada parece impedir que com uma reconfiguração da forma de conceber a democracia ambas possam coexistir.

Para as sociedades contemporâneas a democracia tem um valor universal, ela é vista como a melhor forma de regime político. Assim sendo, a ideologia neoliberal terá todo o interesse em se legitimar no seio da Democracia. O custo que outra alternativa poderia representar no cenário social, provavelmente seria muito maior. Adam Przeworsky sublinha que essa cumplicidade é imprescindível “seja porque o apoio popular é exigido pelas regras da democracia ou pelo menos porque o consentimento é necessário para desarmar a omnipresente ameaça revolucionária.” (Przeworsky,

1995:90). Outro aspeto central na democracia e bastante valorizado pela ideologia neoliberal é o facto de a democracia possibilitar a garantia da liberdade individual.

Posto isto, e de forma a facilitar-se a aplicação das políticas neoliberais cujas agendas pressupõem alterações estruturais significativas no modo de funcionamento da economia, particularmente do mercado de trabalho, mas também dos modelos de organização social dominantes, torna-se indispensável a criação de condições para o exercício forte dos poderes executivos o que, por seu turno, exige a constituição de maiorias absolutas parlamentares. Não é pois de excluir a possibilidade de alterações às leis eleitorais no sentido de se facilitar a constituição de tais maiorias (ex.: através da alteração das regras subjacentes à atribuição de mandatos pelas diferentes forças eleitorais em contenda, bem como pela redução do número global de deputados eleitos) ou ainda através da revisão dos direitos cívicos que conferem aos cidadãos diversas expressões de liberdade individual e coletiva (ex.: através do cerceamento do direito de manifestação e de outras formas de participação política).

Em última análise, a pretensão da ideologia neoliberal consubstancia-se num progressivo enfraquecimento do Estado Democrático, não só através da transferência de poder para entidades supranacionais, mas simultaneamente através da gradual transferência das suas responsabilidades sociais para a sociedade civil (Harvey, 2007).

Esta nova situação requereu uma reconfiguração das conceções de cidadania, sociedade civil e participação.

No que concerne ao conceito de cidadania, entendida como soberania, abandona a sua abrangência coletiva, empreendida fundamentalmente pelos movimentos sociais, ficando confinada ao indivíduo em permanente subordinação ao “mercado”, quer na figura de consumidor quer na figura de produtor.

Por outro lado, os direitos sociais, políticos, culturais e económicos que deviam ser universalmente garantidos, são desvalorizados, passando-se a privilegiar e a enfatizar os direitos individuais e a liberdade de escolha.

O cidadão, ao beneficiar de liberdade de escolha, passa igualmente a ser o único responsável pelas escolhas que faz e, consequentemente, pelas consequências que daí resultem. Deste modo, poder-se-á falar de uma privatização dos ónus das suas escolhas, dos fracassos ou sucessos de pobreza ou de riqueza. Esta situação retira ao Estado qualquer tipo de responsabilidade pelo devir de cada cidadão, reduzindo deste modo o ónus associado à sua função de agente de garantia dos direitos universais.

Assim sendo, o modelo de “cidadania” neoliberal pressupõe a existência de indivíduos responsáveis, empreendedores e consumidores de diversas “mercadorias” tais como a saúde, a educação e o lazer, entre muitas outras.

Por outro lado, o individualismo, ao ser fortemente estimulado, conduz à perda das referências de coletivismo e associativismo e, por conseguinte, da condição de cidadão enquanto elemento de uma comunidade ou coletividade, uma vez que deixam de existir problemas comuns, ideias convergentes, projetos comuns, anseios coletivos. Assim, com a atomização da sociedade realizada através da dissolução das estruturas coletivas e associativistas, o comportamento cívico e político de cariz individual perde eficácia comprometendo e, consequentemente, reduzindo a participação política.

Por outro lado, a crise do Estado-providência, que se consubstancia na retirada de direitos e regalias, a par da complexidade das exigências que são impostas aos cidadãos, representará um fator adicional para a criação de pobreza e de exclusão social que, por si mesmos, funcionam como inibidores da participação política.

Acresce ainda salientar que, com a transferência de grande parte dos poderes soberanos tradicionais para entidades supranacionais, o cidadão passa a conviver com um modelo ideológico mundializado, onde os problemas nacionais se confundem com os problemas mundiais e os centros de decisão se apresentam como difusos, não permitindo, por esse motivo, descortinar com clareza os responsáveis pelo Poder. Sem pontos de referência, e perante tal “desconcerto” social e cultural, o cidadão sente-se incapacitado para tomar decisões, tornando-se assim abúlico e potencialmente manipulável. Esta situação pode representar um fator relevante para a inibição dos cidadãos em se envolver em processos de participação política. Aliás, os níveis elevados e crescentes de abstenção

eleitoral poderão representar uma tradução desta situação de descontentamento e de desenraizamento ideológico e cultural.

No que se refere ao ativismo civil, Maria Célia Paoli refere que foi através de organizações não-governamentais profissionalizadas “que se deslocou o ativismo político pela cidadania e justiça social para o ativismo civil voltado para a solidariedade social. Se o caminho aberto pelos movimentos sociais era fortemente politizado e implicava a demanda direta da população carente organizada por bens públicos, o caminho das ONGs opta por representar as demandas populares em negociações pragmáticas, tecnicamente formuladas, com os governos, dispensando a base ampliada da participação popular.” (Paoli in Santos, “2002:378). Deste modo, foram retirados da cena política os movimentos sociais de resistência política, sendo estes substituídos pelas ONGs que assumiram o papel antes desempenhado pelo Estado, tornando-se executoras das políticas públicas junto dos mais carenciados.

A tais restrições à participação política dos cidadãos, associam-se outros fatores inibidores, tais como: a destruição dos valores sociais e culturais e a criação de novos valores que poderão dificultar a integração social; a reinvenção da história do projeto político democrático, fazendo do Estado Social, dos sindicatos, das conquistas sociais e das leis constitucionais elementos perniciosos para a Sociedade; a ausência de cultura democrática forte que permite a recetividade destas ideias, levando os indivíduos a deixar de acreditar de que é possível inverter a situação (fatalismo), conduzindo-os à resignação. O discurso desideologizado10, defendendo que a realidade se deve sobrepor às ideologias, tem como consequência deixar as pessoas à mercê de um certo pragmatismo,

…A ideologia neoliberal, gerada nos Estados Unidos e em várias agências multinacionais, sustenta que a escolha é óbvia: há somente uma via para o desenvolvimento, e ela deve ser seguida. Os proponentes dessa ideologia argumentam como se possuíssem uma visão do mundo da perspetiva do Juízo Final, um modelo geral da dinâmica política e econômica que lhes dá acesso às consequências últimas de todas as etapas parciais. (Przeworski, 1993:210)

10 O argumento da desideologização não passa de uma falácia porque de facto ele próprio implica uma certa visão ideológica da sociedade, e a única forma de resistir a este discurso fatalista e pragmatista só pode ocorrer através da ideologia ou seja através de uma visão alternativa da Sociedade.

Parece, pois, poder inferir-se que, para o neoliberalismo, a participação política dos indivíduos não é central, desconsiderando as formas de organização que não aceitem a realidade da desigualdade social natural. A preocupação é antes com a adesão incondicional dos cidadãos a esta nova organização do Estado que pressupõe a supressão da influência dos grupos tradicionais de poder e a adesão incondicional dos indivíduos aos seus valores e ideais pragmatistas e à sua visão da Sociedade. (Santos, 2001; Przeworski, 1993)

…O estilo de formular políticas inerentes aos programas neo-liberais de reforma econômica contribui para isso da seguinte maneira. Sendo dolorosa a "cura" neoliberal, com custos sociais significativos, as reformas tendem a ser iniciadas a partir de cima e desencadeadas de surpresa, independentes da opinião pública e sem a participação de forças sociais organizadas. As reformas tendem a ser postas em vigor por atos arbitrários ou empurradas através de legislativos sem quaisquer mudanças que reflitam a divergência de interesses e opiniões. O estilo político de implementação tende no sentido do governo por decreto; os governos tentam mobilizar suas bases de apoio, ao invés de aceitar os compromissos que resultariam da consulta pública. No final, a sociedade fica sabendo que pode votar mas não escolher; legislativos são levados à impressão de que não têm papel a desempenhar na elaboração de políticas; partidos políticos, sindicatos e outras organizações nascentes aprendem que suas vozes não contam. (Przeworski, 1993a)

A comunicação social tem aqui um papel e um poder preponderantes na construção da opinião pública. Os indivíduos expostos às interpretações e às descrições que a comunicação social faz dos factos sociais e dos valores que reproduz, são potencialmente manipulados e levados a aceitar e a acreditar na nova ordem económica e social.

Manuel Villaverde Cabral defende que “ aquilo que caracteriza a era da globalização, […] é o fosso crescente entre a cidadania formal e a cidadania efetiva”. A “perda generalizada de substância política afeta a forma como a democracia é vivida ao nível da própria motivação dos cidadãos para a participação”. Por conseguinte, acrescenta ainda o Autor, a motivação para a participação política encontra-se drasticamente reduzida e mesmo no que respeita à participação eleitoral esta apresenta-

se “cada vez mais ritualizada e desprovida de conteúdos substantivos." (Cabral, 2003:40- 48).

Em suma, a participação política dos cidadãos, deixará de ser estimulada dando lugar à defesa de uma participação de caráter moralista e filantrópico, incentivando-se sentimentos altruístas, humanitários, caritativos e solidários que se consubstanciarão no trabalho voluntário dos indivíduos e igualmente na responsabilidade social das empresas. Desta forma, a ideia de solidariedade tão proclamada anteriormente é desprovida do seu significado político e coletivo passando a resignificar-se no campo privado da moral.

Posto isto, em última instância, caberá ao Estado “apenas a função de aparato social de coerção, que deve impedir que os indivíduos (ou empresas) pratiquem atos que prejudiquem a preservação e o funcionamento da economia de mercado, ao passo que a intervenção do Estado na vida dos indivíduos ou nas atividades económicas deve ser mínima, mesmo no que se refere à implementação de políticas sociais para proteger os menos favorecidos” (Denise Gros, 2004:241).

Não obstante esta realidade, David Harvey, afirma que emergem movimentos que produzem um grande número de ideias referentes a alternativas. Os movimentos trabalhistas continuam a sua luta, mesmo nos países capitalistas avançados, pese embora as pressões continuadas de que são vítimas por parte dos neoliberais. Por outro lado, os movimentos de protesto que se espalham pelo mundo e que são uma constante nos noticiários produzem fragilidades no status quo e incentivam o surgimento de ideias alternativas.

…Uns buscam justiça social global e ambiental defendendo a dissolução das poderosas instituições como o FMI, OMC e o Banco Mundial; outros enfatizam o tema da recuperação dos bens comuns, de uma governança democrática com a reinvenção dos significados de igualdade económica, política e cultural, bem como de justiça adaptados às condições e potencialidades contemporâneas. (Harvey, 2007:26)

Da mesma forma, Santos sustenta que uma globalização contra-hegemónica está emergindo ao afirmar que,

… esta forma de globalização, apesar de hegemónica, não é única, e de facto tem sido crescentemente confrontada por uma outra forma de globalização, uma globalização alternativa, contra-hegemónica11, constituída pelo conjunto de iniciativas, movimentos e organizações que, através de vínculos, redes e alianças locais/globais, lutam contra a globalização neoliberal mobilizados pela aspiração de um mundo melhor, mais justo e pacífico que julgam possível e ao qual sentem ter direito. (Santos, 2002: 30-31)

O mesmo Autor defende ainda a ideia de que existe a necessidade de um fortalecimento dos blocos periféricos procurando a eficiência das administrações públicas, desburocratizando-as e aumentando os mecanismos de controlo popular e da construção de democracias mais participativas (Santos 2002). Esta posição remete para uma resposta da sociedade civil que se torna assim o agente principal de mudança social. A questão aqui parece não consistir em negar o sistema democrático representativo, mas antes em propulsionar mecanismos de participação direta de forma a aperfeiçoá-lo de que é exemplo a criação de orçamentos participativos implementados no seio das administrações públicas locais.

Por fim, com base nas referências obtidas, parece incontestável que, na sua essencia, a Democracia não é uma obra acabada, nem foi integralmente alcançada nas sociedades que até ao momento a implementaram; pelo contrário,

…a sua realização reclama o repensar e o aprofundar dos princípios e procedimentos que a caracterizam. (…) O aprofundamento dos valores democráticos é um dos vetores axiológicos mais marcantes, cuja tónica remete, por exemplo, para a apologia da participação política e para a defesa da melhoria do funcionamento democrático das instituições políticas, designadamente no que concerne à representatividade política. (Belchior, 2010:27-29)

11Santos refere a propósito queno interior das teorias contra-hegemónicas, Jurgen Habermas foi o autor que abriu

espaço para que o procedimento passasse a ser pensado como prática social e não como método de constituição de governos.” Santos 2002:52).

CAPÍTULO II – PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: ASPETOS TEÓRICOS E