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Nhanderu Marangatu e Kurusu Amba: aspectos de uma mesma luta

2 CONFLITOS, VIOLÊNCIAS E TERRITORIALIDADE: A RESISTÊNCIA GUARANI E KAIOWÁ

2.1 Nhanderu Marangatu e Kurusu Amba: aspectos de uma mesma luta

Os estudos de identificação e delimitação de terras demonstram, entretanto, que durante o século XX ocorreu um intenso processo de esbulho das terras indígenas em Mato Grosso do Sul. Em perícia para a demarcação da terra indígena Ñanderu Marangatu constatou-se que os Guarani que a habitavam haviam sido expulsos com atos de muita violência ao longo de décadas. Muitas famílias que compunham o grupo se dispersaram, em um processo que os Kaiowá chamam de sarampiba (esparramo ou dispersão). (OLIVEIRA; PEREIRA, 2009).

O longo processo de resistência e mobilização que os Kaiowá de Marangatu viveram está relatado no relatório de perícia judicial para a demarcação da terra reivindicada, elaborado pelos antropólogos Jorge Eremites de Oliveira e Levi Pereira, publicado na forma de livro em 2009 (OLIVEIRA; PEREIRA, 2009).

Esse relatório traz dados que são constantes nos relatos dos Guarani e Kaiowá de outras localidades, que lutaram ou continuam lutando para recuperar a terra na qual seus ancestrais nasceram, que dizem respeito ao processo de expropriação violento sofrido.

O Estado concedeu terras a terceiros, em locais onde viviam esses povos, sem atentar para esse fato. Os considerados “proprietários”, empossados através dos títulos da terra, enxotavam os índios que nela viviam. Algumas famílias continuavam morando em localidades próximas, ou trabalhando como peões em fazendas e até mesmo na fazenda estabelecida onde era sua terra, ou se articulando com autoridades locais para conseguirem um pequeno lote de terra onde pudessem alojar seus integrantes. A maioria das famílias mudava-se para outras localidades, onde tinham parentes e alianças, seguindo a prática de mobilidade apontada por Pereira (2003, 2007).

A liderança que permanecia próxima ao tekoha ancestral percorria um longo caminho até conseguir que algumas das famílias esparramadas retornassem para o local que lhe havia sido doado, onde passavam a viver de forma extremamente precária, já que a terra não era suficiente. Dava-se um longo caminho de articulação política, com o objetivo de reconquistar o tekoha perdido, que envolvia agregar outras famílias, com as quais se mantinha relações de parentesco ou aliança política e, também, com organizações com histórico de cooperação na luta dos povos indígenas.

Neste processo, os órgãos indigenistas oficiais mantinham-se omissos. A política indigenista oficial seguia o intento de alocar os índios para as áreas reservadas. Aqueles que não cediam, motivados por redes de parentesco e alianças políticas, passavam a viver em outras áreas, inclusive dentro do território do país vizinho, Paraguai.

A pesquisa etnográfica desenvolvida nos últimos três anos de pesquisa evidenciou as muitas lutas dos Guarani e Kaiowá por suas terras, mostrando o vigor do movimento indígena no objetivo de voltar para suas terras.

No início do mês de janeiro de 2007, a comunidade de Kurusu Ambá havia sofrido uma ação violenta de despejo, na qual os pistoleiros contratados pelos fazendeiros mataram Julite Lopes, nhadesy (nossa mãe – nome atribuído às mulheres que se dedicam às práticas religiosas entre os Guarani e Kaiowá) da comunidade. Os Guarani e Kaiowá foram expulsos da área da fazenda, mas queriam enterrar a nhandesy na área reivindicada, motivo pelo qual iniciaram uma ação jurídica, apoiados pelo Ministério Público. Cerca de dez dias transcorreram, em que várias instâncias jurídicas foram percorridas, buscando que a justiça autorizasse a entrada na fazenda para o sepultamento. Não tendo conseguido a autorização judicial para o mesmo, na terra reivindicada, o local onde se deu o enterro foi a Aldeia Taquapery, no município de Coronel Sapucaia.

Nesse mesmo período acontecia a segunda etapa de estudos do curso de licenciatura indígena Teko Arandu, realizada entre 08 a 27 de janeiro de 2007. A mobilização dos estudantes foi intensa. Todos os dias, durante uma semana, os integrantes do curso se reuniam em frente ao prédio do Ministério Público, onde faziam discursos, rezas e danças tradicionais, portando pinturas e ornamentos tradicionais.

Nessas ocasiões, aqueles e aquelas que tiveram seus parentes mortos em situações semelhantes reviveram os trágicos acontecimentos pelos quais passaram. Neste contexto, a identidade adquire uma dimensão expandida, onde os traços da diferença étnica se apresentam com maior nitidez, evidenciados em uma circunstância de dor e revolta, onde os chamados “karai” são os outros, partícipes de um projeto de mundo onde não se considera o índio, ou pior, onde o índio precisa ser eliminado.

Naquele momento eu iniciava os trabalhos nos cursos de formação de professores e dava os primeiros passos no terreno de pesquisa. Meu olhar interessado, dirigido aos Kaiowá e Guarani, não apagava, por completo, a sensação de estranhamento. Foi valioso presenciar a luta política que os estudantes faziam, na cidade, para apoiar os interesses daqueles que eles chamam de “seus parentes” e que estavam a cerca de duzentos quilômetros.

Na ocasião, uma estudante do curso Teko Arandu, filha de um líder assassinado por ocasião da retomada de um tekoha, estava muito angustiada com a situação vivida pelos Guarani que retomavam Kurusu Amba. Em manifestação em frente ao Ministério Público, ela mantinha seu rosto, por inteiro, pintado de preto. Ao retornar à universidade, onde estavam sendo servidas as refeições, uma das professoras formadoras se aproximou dela e, pensando expressar cuidado, disse que ali ela poderia lavar seu rosto. A estudante se sentiu muito ofendida com a sugestão e reclamou veementemente, em público, dizendo que, se algum professor branco se sentisse incomodado com sua aparência, poderia se retirar.

Esse foi um momento em que percebi a relação de alteridade presente na interpretação dos significados, dada pela diferença. Posteriormente, fiquei sabendo que a pintura preta para os Kaiowá indica uma situação de invisibilidade. Quando a usam, esperam não ser vistos e, por isso, as tomadas de imagens, quando estão com essa pintura corporal, indica um contrassenso. Neste sentido, a fala da professora, que tentava ser gentil e cuidadosa, foi entendida como uma grave ofensa.

Os Kaiowá e Guarani de Kurusu Amba ficaram, ainda, por mais de dois anos acampados à beira da rodovia, quando decidiram, no mesmo período que os grupos de Ypo’i, voltar à área dentro da fazenda. Um líder do grupo afirmou que cansaram de esperar pela decisão da justiça para voltarem à sua terra. E salienta que, em vez de morrerem um a um, acampados na beira da estrada, decidiram morrer todos juntos, lutando pela terra que é deles. (CIMI, 2010).