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2 CONFLITOS, VIOLÊNCIAS E TERRITORIALIDADE: A RESISTÊNCIA GUARANI E KAIOWÁ

2.2 Protagonismo nas ações de retomada

Como mencionado anteriormente, existe uma compreensão corrente em Mato Grosso do Sul, expressa em várias ocasiões, e que a carta da FAMASUL acima transcrita demonstra, de que grupos externos insuflam o índio contra a legitimidade do direito de posse a partir do título de propriedade da terra.

A ação de retomada empreendida pelo grupo de Ypo’i demonstra, entretanto, a autonomia dos Guarani no processo decisório e na realização da mesma. Ela vinha sendo pensada há tempos. Quando as lideranças da família Vera manifestaram na Aty Guasu que não esperariam pelos estudos de identificação e delimitação por virem sendo continuadamente adiados, aludiam a que a família vinha com esse intento e que não adiantaria mais esperar. O grupo saiu da Aldeia Pirajuí no dia 28 de outubro; apenas no final da tarde, alguém contatou uma das professoras do Ára Verá, comunicando que saíram da aldeia. Naquele momento não foi possível saber quantos eram. O dia seguinte, 29 de outubro, quinta-feira, foi

feriado para os servidores públicos. No sábado, já tarde da noite, uma jovem Guarani telefonou para mim, dizendo que o grupo estava bem e que achavam que ainda não haviam sido percebidos. Segundo essa jovem, a intenção de seguir para a retomada, no momento do feriado prolongado, visava que o grupo conseguisse se estabelecer, construindo seus barracos, sem que fosse visto.

Na segunda-feira, também dado como ponto facultativo, por ser véspera do feriado de “todos os santos”, a situação já havia mudado. As notícias que recebíamos relatavam a abordagem dos pistoleiros sofrida pelo grupo e a grande aflição de todos, porque, após a violência sofrida, muitos voltaram para a aldeia, mas alguns não retornaram.

Os professores Rolindo e Genivaldo estavam entre os que não retornaram, assim como duas crianças. As crianças chegaram ao final da tarde de segunda feira, exaustas e famintas, contando que passaram a noite vagando pelos pastos, evitando passar próximo à estrada, para não serem vistas pelos carros que nela circulavam. Contaram como viram, do lugar onde ficaram escondidos, Rolindo e Genivaldo serem agredidos ao irem conversar com os pistoleiros que abordaram o grupo. Na abordagem violenta, a tentativa de diálogo não deu resultado. Os homens armados atiraram sobre todos e dispersaram o grupo, ferindo vários.

Em um texto produzido no curso Ára Verá em 17 de julho de 2009, Rolindo descreveu como costumava agir com as pessoas, o que nos permite imaginar qual foi sua atitude na presença de seus agressores:

Eu sou Rolindo Vera da aldeia Pirajuí, município de Paranhos MS. Um homem que quer viver na paz com todos, para isso não gosto de mostrar cara feia e estou sempre com sorriso no rosto, para mim todos os seres humanos são iguais. Mesmo que muitas vezes me sinto desrespeitado procuro me aproximar desses e conversar devagar para fazer que me compreenda que respeito as pessoas e gosto de pessoas respeitosas. (CURSO..., 2009).

A partir do momento em que as professoras do Ára Vera foram comunicadas sobre o desaparecimento dos dois professores da aldeia, iniciou-se uma campanha de denúncia do ocorrido junto aos órgãos da justiça. Por ser um feriado prolongado, a FUNAI não estava em serviço. A Polícia Federal da Regional Amambai foi contatada por telefone. O policial, por telefone, disse que era cedo para fazer alguma coisa, porque não havia nenhuma denúncia formal sobre o ocorrido e quanto aos dois índios poderia ser “que tivessem bebido e poderiam estar caídos em alguma estrada por aí”. Depois que uma das professoras conseguiu contatar a então coordenadora regional da FUNAI e esta procedeu a uma denúncia formal, a Polícia Federal se deslocou para Paranhos para averiguar o ocorrido.

O grupo de professoras do Ára Verá aguardava por notícias. Uma semana após o grupo ter sido atacado pelos pistoleiros, souberam que os corpos haviam sido encontrados. Este foi um momento doloroso, porque a ligação com um dos desparecidos, o professor Rolindo, era de muito afeto, respeito e admiração, tanto por suas características pessoais quanto pela qualidade do trabalho pedagógico que realizava junto ao seu povo.

Posteriormente, depois de algumas horas, soube-se que o corpo encontrado era de Genivaldo Vera e que Rolindo ainda estava desaparecido. No início de 2011, a família de Rolindo ainda não tinha informações sobre o que teria acontecido com ele, mesmo tendo percorrido diversas instâncias, pedindo que a justiça fosse feita.

Nas duas semanas após o desaparecimento dos dois professores, as professoras dos cursos Ára Verá e Teko Arandu, por revezamento, visitaram a aldeia Pirajuí, manifestando solidariedade aos familiares de Rolindo Vera e Genilvado Vera. Em uma dessas visitas, da qual participei, os familiares reunidos relataram os episódios, dizendo que “Rolindo dizia que as professoras do Ára Verá eram pessoas amigas” e solicitando que levassem seus apelos às instituições competentes e que colaborassem para que a polícia fizesse algo para que Rolindo fosse encontrado e seus assassinos fossem punidos. Na ocasião, essas narrativas foram gravadas e posteriormente o CIMI utilizou parte das imagens produzidas para compor um documentário de curta metragem intitulado “Ypoy, Terra Vida e Justiça”. (CIMI, 2010).

Naquela ocasião, mencionaram que Rolindo chamou de “irmão” aos seus agressores e que eles os conheciam. Faziam, assim, referência à forma de tratamento utilizado por membros da mesma igreja. Mesmo nominando seus agressores, até o momento não há notícias sobre a prisão dos envolvidos e o inquérito segue em segredo de justiça.

Durante a visita à região, em 2009, logo após o desparecimento dos dois jovens professores Guarani, na qual integrei o grupo de professoras do Ára Verá, moradores da cidade de Paranhos afirmavam que os índios comprometiam quem de fato não estaria envolvido no ato, e que fulano ou cicrano mencionado por eles estaria com esta ou aquela pessoa no momento do ocorrido.

Na cidade de Dourados, docentes e estudantes da UFGD Universidade Federal da Grande Dourados, UFGD, realizaram o “Ato em defesa da vida Verá”, em frente ao prédio em que a Secretaria de Educação do Estado de Mato Grosso do Sul abriga vários órgãos ligados à educação, inclusive o Ára Verá. Houve apresentação de peça teatral pelo grupo de estudantes do curso de Artes Cênicas da UFGD e a apresentação de ritual religioso guarani e kaiowá, com a participação dos estudantes do curso Ára Verá. Este momento foi indicativo de

que as temáticas indígenas têm conquistado espaço na universidade, a partir da inserção dos Guarani e Kaiowá como estudantes no curso de licenciatura.

Desde quando Rolindo entrou no Ára Verá, ele mencionava, de forma velada, principalmente para a professora que acompanhava o desenvolvimento dos seus trabalhos no curso, que um dia sairia com seu grupo familiar para retomar o lugar onde seus antepassados viviam, e a intenção sobre a retomada era confirmada por outros integrantes da família Vera. Isso estava posto. Não era motivo de angústia, nem de ansiedade. O que parecia era que ele apenas esperava o momento em que os mais velhos tomariam essa decisão, que poderia vir a qualquer momento.

A carta que Rolindo deixou, dirigida à professora diretora da escola em que ele trabalhava, datada de 29 de outubro de 2010, mostra que, ao se juntar a sua família, agia de acordo com o que havia sido decidido pelos mais velhos: chegara a hora de andar (oguata) de volta para seu tekoha. Rolindo saiu da aldeia Pirajuí, com destino à Ypo’i, para se juntar à sua família, um dia depois da maioria do grupo, já no feriado do dia 29. Percebe-se, pela carta, que partia ciente do perigo que corria. “Se Deus permitir poderemos nos ver e falar pessoalmente de novo”.

A professora, para quem Rolindo deixou a carta, que dirige a escola da Missão Evangélica situada na divisa com a Aldeia Pirajuí, na qual ele era professor, é de origem alemã e está entre os Guarani desta aldeia há 25 anos. Na carta estão presentes as várias concepções que se apresentavam como referência para o jovem, como elementos com os quais dialogava para justificar sua decisão de se juntar à sua família. Ele se refere à religião, ao passado de colonização e à resistência histórica dos Guarani10.

Em um trecho, Rolindo agradece à professora por tudo que havia lhe ensinado e diz que não sabia se o que estava fazendo poderia ser comparado ao que fizera o personagem Rodrigo, do filme “A missão”, que os padres diziam que trairia tudo o que lhes ensinaram, como os mandamentos e as leis cristãs. No filme, o personagem decide lutar, se dispondo a matar para defender os Guarani contra os bandeirantes, indo contra os ensinamentos religiosos.11

A Carta aberta ao Presidente da República, publicada pela FAMASUL, que é transcrita acima, demonstra que os fazendeiros, representados por seu Sindicato, se organizavam em nível estadual, o que indica que uma ação para rechaçar as retomadas

10 Essa carta foi fotografada por Lauriene Saraguzza e por mim.

11 A MISSÃO. Direção: Roland Joffé. Produção: Fernando Ghia e David Puttnam. BrasilFilms International,

indígenas não se dá de forma isolada.A articulação envolve homens, armas e transportes. Em Mato Grosso do Sul, esse foi o primeiro momento de ações organizadas institucionalmente e com apoio político. Antes, as ações criminosas eram pontuais, embora disseminadas.

No momento da retomada de Ypo’i, no final de outubro e início de novembro de 2009, os titulares da terra estavam ausentes, vivendo fora do país e a área era cultivada por arrendatários, que desapareceram após o desfecho violento da ação, deixando animais e lavouras por colher. Mesmo estando distante, a reação à tentativa de retomada foi vigorosa, contando “com um caminhão cheio de homens armados”, como disseram os Guarani. As relações hegemônicas presentes na questão agrária se consolidam na articulação de forças contra a resistência dos Guarani na luta por ocupar suas terras ancestrais.

Durante a etapa de estudos do Teko Arandu, em julho de 2008, acompanhei as reuniões dos professores Guarani, em que discutiam a situação política e o conflito no qual estavam envolvidos; reunidos na universidade, tendo à frente o nhanderu, rezavam e dançavam pedindo aos seus apoiadores das esferas celestes que os guiassem no seu caminho de volta para seus tekoha.

Entre os Guarani e Kaiowá, a luta pela terra é permeada pela expressão religiosa e, nesse sentido, a presença das lideranças nos momentos relevantes para as questões agrárias é constante. São os nhanderu que buscam a coesão do grupo, através do contato com os seres celestes que fazem parte da cosmologia Guarani e Kaiowá.