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A noção de competência surge nos estudos sobre o trabalho a partir da ênfase dada à “polivalência”, resultado da introdução de novas tecnologias na base técnica e pela nova configuração das formas de produção e da gestão do trabalho (taylorismo, toyotismo), que demandam um conjunto de capacidades que possam atender à com- plexidade e à imprevisibilidade no “novo” modo de produzir que substitui o modelo taylorista, cujo esgotamento vinha sendo verificado desde meados dos anos 1970.

O mundo do trabalho encontra-se, portanto, sob um processo de reestruturação produtiva e organizacional. Pierre Naville em seus estudos sobre qualificação através de um conceito relacional, já enfatizava os aspectos sociais na construção do con- ceito, não desprezando as características implícitas e informais do trabalho, o que fez com que as suas discussões se tornassem extremamente atuais no debate sobre os dilemas contemporâneos do trabalho.

Segundo Tartuce (2004):

É neste ponto que acreditamos que o conceito de qualificação elaborado por Naville deve ser recuperado e mantido, primeiro porque ele é mais amplo que o de competência e, segundo, porque é por meio dele que se pode compre- ender a pertinência da sua disputa com a noção de competência no contexto brasileiro. (p. 369)

Diferente, então, da qualificação, a competência não teria o taylorismo como referência, mas os novos modos de organização de trabalho.

A autora Helena Hirata (2013) remete sua análise à passagem das teses sobre a polarização das qualificações para o modelo de competência, apontando que tal modelo distinguiria a qualificação formal da qualificação tácita, no contexto das mu- danças tecnológicas e organizacionais.

As qualificações exigidas no interior de “novo modelo produtivo”, represen- tado pelo modelo empresarial japonês, contrastam fortemente com aquelas relacionadas com a lógica taylorista de remuneração, de definição de postos de trabalho e de competências: trata-se da capacidade de pensar, de decidir, de ter iniciativa e responsabilidade, de fabricar e consertar, de administrar a produção a qualidade a partir da linha, isto é, ser simultaneamente operário de produção e de manutenção, inspetor de qualidade e engenheiro. (HIRATA, 2013, p. 130)

Segundo a autora, a competência é uma noção “oriunda do discurso empresa- rial nos últimos dez anos e retomada em seguida por economistas e sociólogos na França. (HIRATA, 2013, p. 132). O surgimento de um novo modelo de produção in- dustrial é muito bem representado pelo modelo empresarial japonês, o toyotismo. Este modelo tinha como características o trabalho cooperativo em equipe, funcionamento dos postos de trabalho fundados sobre polivalência e rotação de tarefas. Ferretti (1997) complementa esta afirmação quando pondera que:

O chamado “modelo de competência” surge como alternativa, no plano em- presarial, para orientar a formação de recursos humanos compatível com a organização do trabalho que lhe convém. Tal conceito é contraposto ao de qualificação profissional (e, às vezes, usado como seu sinônimo), mas tem conotações diferentes, na medida em que enfatiza menos a posse dos sabe- res técnicos e mais a sua mobilização para a resolução de problemas e o enfrentamento de imprevistos na situação de trabalho, tendo em vista a maior produtividade com qualidade. (p. 229)

A competência, nesse sentido, baseia-se em resultados e o trabalhador preci- sará desenvolver aptidões comunicativas e de interatividade remetendo assim, se- gundo Hirata (2013), a um sujeito e a uma subjetividade. A partir desse “modelo”, da gestão de competências, observa-se a excessiva individualização do trabalho, pois tem seu foco no indivíduo e não no posto de trabalho, não podendo, portanto, ser coletivizado além de uma perda de importância da qualificação formal e do saber téc- nico, em favor de outra dimensão (competência), resumida, segundo Ferretti (1997),

Na expressão ‘saber ser’, na qual se confundem/articulam/mobilizam sabe- res, comportamentos, racionalidade orientada para fins, sustentada por ou- tros valores qualitativos como colaboração, engajamento e mobilidade, forte- mente apelativos da estrutura subjetiva do ser-do-trabalho. ‘Saber ser’ é, por- tanto, nesse contexto, colocar-se por inteiro, mobilizar-se completamente, em direção a um fim, neste caso, a valorização do capital. (p. 258)

Atualmente, em um contexto de desemprego, segmentação do mercado de tra- balho e flexibilização dos vínculos empregatícios, a discussão se concentra sobre a questão da substituição do conceito de qualificação pelo conceito de competências. Para Tartuce (2004) a qualificação não pode, assim, ser reduzida às propriedades intrínsecas dos indivíduos – suas “aptidões”, “habilidades” e “competências” – pois ela depende de sua realização no mercado de trabalho, local onde se concretizam as representações sociais que acabam exclusivizando certos postos a determinados seg- mentos. De acordo com a autora, qualificação também não pode referir-se apenas aos atributos dos indivíduos, pois estes podem possuir – e normalmente possuem – capacidades de que não necessitam nem podem utilizar em seu trabalho.

A competência é, portanto, apenas um dos elementos da qualificação, e per- manece submissa a ela, não só porque ela diz respeito aos aspectos individuais das capacidades de trabalho e, portanto, remete menos imediatamente às operações so- ciais de classificação e hierarquização dos indivíduos e dos empregos (Tanguy, 1997, apud Tartuce, 2004) como também porque somente quando ela é reconhecida e ins- tituída socialmente –em termos sociais e monetários – é que ela se torna qualificação.

Este modelo de competência, para Ferretti (1997, p. 258), “representa a atuali- zação do conceito de qualificação, segundo as perspectivas do capital, tendo em vista adequá-lo às novas formas pelas quais este se organiza para obter maior e mais rá- pida valorização”. A valorização do fator humano, os novos princípios organizacionais (autonomia, criatividade, descentralização, participação, cooperação etc.), assim como as novas exigências de qualificação objetivaram uma visão unitária da empresa, uma aparente congruência de interesses que, na realidade, “têm o efeito muito con- creto de enfraquecer a força de trabalho nas suas disputas com o empregador” (FER- RETTI, 1997, p.260). Segundo o autor, algumas das transformações mais significati- vas dizem respeito à progressiva extinção da modalidade de aprendizagem, à con- centração de esforços na formação de técnicos, à instalação de cursos de curta dura- ção e ao investimento em atividades de assessoria técnica a empresas. Entende-se, desta forma, que o modelo atual de gestão de competência reproduz os valores das

sociedades capitalistas, e configura-se em uma realidade que acompanha as trans- formações do setor produtivo com o objetivo de racionalizar, potencializar e se apro- priar da força de trabalho.

Diante das teorias expostas pelos autores que discutem os conceitos de quali- ficação e competência, é importante notar que o problema da qualidade do trabalho é, como bem mostrou Naville, multiplamente determinado e sua medida em termos de qualificação contém fatores que não podem ser redutíveis a uma única medida e di- mensão. Este conceito navilleano, de acordo com Tartuce (2002), revela, ao mesmo tempo, a limitação do conceito de competências, pois, “apesar da importância hoje acordada ao ‘saber-ser’, o ‘saber’ e o ‘saber-fazer’, isto é, os conhecimentos formais consolidados ao longo dos anos continuam centrais para que o trabalhador possa agir em uma dada situação específica”. (Idem, p.200).

No que tange à qualificação, muitas correntes teóricas acreditam que o novo modelo da competência representaria a superação do paradigma da polarização das qualificações, à medida que este paradigma deixa de ser o elemento definidor dos postos de trabalho e dos salários. Nesse sentido, a demanda do setor produtivo por uma força de trabalho mais competente traria também um ganho para a sociedade, através do aumento da qualificação média dos trabalhadores. Consequentemente, o coletivo cede lugar ao desenvolvimento individual, pois atribui-se aos indivíduos a res- ponsabilidade do seu sucesso ou fracasso profissional de acordo com a sua trajetória e projetos pessoais e como parâmetro para eficiência e produtividade do indivíduo, potencializando as formas de controle da força de trabalho e direcionando-a para os objetivos empresariais. Enquanto a qualificação estaria atrelada a um sistema de clas- sificação de cargos e de remuneração, a competência parece ligada aos objetivos e metas da organização e à capacidade do indivíduo em responder convenientemente a esses objetivos. Por conseguinte, a autonomia, a mobilidade e a flexibilidade são vistas como incentivos das capacidades individuais e do próprio desenvolvimento da eficiência e da produtividade dos indivíduos e da sociedade.Entende-se que a qualifi- cação não pode ser derivada do tempo de formação e/ou da qualidade do trabalho, sendo ela mais ampla por abarcar os fenômenos não só do mercado de trabalho "for- mal" como também do mercado "informal" e do desemprego. Através da perspectiva navilleana, concluímos que é a qualificação que pode comportar tanto a dimensão individual, onde consideramos as competências dos indivíduos e suas qualidades,

quanto a social, relacionada com a maneira de qualificar essas qualidades e de reco- nhecer-lhes um valor. Assim, concordando com Tartuce (2002),

(...) há de se reconhecer ao menos, que a qualificação não precisa ser subs- tituída pela competência, já que, concebida de uma perspectiva mais ampla, seu conceito pode, sim, comportar os aspectos implícitos, informais e não organizados das características dos indivíduos. (p. 200)

A globalização, as inovações tecnológicas e os novos princípios organizacio- nais exigem e estabelecem um novo perfil profissional multifuncional com habilidades e capacidades intelectuais abrangentes e adequadas à produção flexível. O desen- volvimento de tais habilidades e competências se tornam diferenciais indispensáveis para o ingresso ou reingresso em um mercado de trabalho cada vez mais automati- zado, flexível, competitivo, que se apropria de forma equivocada do conceito de com- petências, através de uma visão restrita sobre o papel do sujeito nas organizações e como opção estratégica na gestão de pessoas, como forma de explorar e controlar ainda mais a força de trabalho, reforçando seu caráter de mercadoria.

3.4 OS IMPACTOS DAS MUDANÇAS TECNOLÓGICAS SOBRE OS RUMOS DA