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3.2 DO CONCEITO DE QUALIFICAÇÃO À NOÇÃO DE COMPETÊNCIA

3.2.1 A qualificação por Georges Friedmann

Inicialmente, é preciso ponderar que esta construção teórica sobre a qualifica- ção profissional não constitui uma tarefa simples, por ser necessário recorrer a gran- des áreas de estudos como a sociologia, psicologia, economia, filosofia, entre outros campos de estudos, para se chegar a uma construção teórica completa e articulada com os diferentes elementos que sustentam este debate. Villavicencio considera que a qualificação

Não pode ser compreendida como uma construção teórica acabada, mas, sobretudo, como um conceito explicativo da articulação de diferentes elemen- tos no contexto de relações de trabalho, capaz de dar conta das regulações técnicas que ocorrem na relação dos trabalhadores com a tecnologia e das regulações sociais que produzem os diferentes atores da produção que re- sultam nas formas coletivas de produzir. (Villavicencio, apud Ferretti, 2004, p. 414)

Na tentativa de uma definição, é importante e necessário buscar a origem do surgimento destas questões na sociologia do trabalho, mais precisamente na França, nos anos de 1930 e 1940, no período entre guerras, em um momento de hegemonia do sistema taylorista, onde os conceitos de qualificação e competência começaram a

surgir em estudos e debates. A escolha deste recorte teórico se faz relevante, pois de acordo com Tartuce (2004),

(...) a realidade francesa é, talvez, histórica e analiticamente, aquela que me- lhor expressa as condições para a construção social e teórica do conceito de “qualificação" e onde, por isso mesmo, os resultados políticos e interpretati- vos dessa construção ganharam maior relevância. (p. 355).

A autora complementa ainda que o fato de se recorrer à história não significa que a sociedade reproduza sempre as mesmas discussões sobre os mesmos proble- mas sem "progredir", mas sim que refletir sobre os desafios e as respostas do passado é uma das maneiras para entender o presente, desde que as diferenças sejam de- marcadas e problematizadas.

Georges Friedmann fez suas primeiras pesquisas com base na observação do sistema fabril e desenvolveu sua teoria, considerada de viés substancialista, em seu livro intitulado “Problemas humanos del maquinismo industrial” (1945/1956). Nele, Friedmann analisa os efeitos da introdução do maquinismo industrial, da racionaliza- ção da produção e as consequências para o trabalhador. Para o autor, o progresso técnico interferia na evolução das formas de trabalho, segmentando as tarefas e con- sequentemente empobrecendo as tarefas exigidas, o que causava sua desqualifica- ção. Ele busca em sua obra o entendimento da questão da automação e seus efeitos degradantes sobre os saberes, assim como procura mostrar nos seus trabalhos as novas exigências de qualificação nas empresas face ao desenvolvimento do automa- tismo, embora de forma não muito explícita, pois inicialmente, faz poucas referências ao termo “qualificação”. Ele constata em seus estudos sobre a relação entre o traba- lhador e o processo de racionalização que estava ocorrendo no interior do sistema produtivo, que o taylorismo resulta na divisão do trabalho e evidencia o desperdício dos saberes práticos e teóricos dos trabalhadores qualificados.

Ao invés de ter o domínio de um saber, o homem seria disciplinado para possuir gestos rápidos e seguros para a execução de tarefas padronizadas, o que conduziria à alienação, considerando este trabalho desqualificado. Ao longo de seu livro desen- volve uma crítica ao taylorismo em relação à ascensão do automatismo, pois acredi- tava que o fato do automatismo reagrupar as tarefas que haviam sido fragmentadas com o taylorismo, não elevaria a condição do trabalho, pois este estaria destinado a atividades desprovidas de intelectualidade e técnica, e como as tarefas continuariam

sendo repetitivas, então a automatização resulta novamente na divisão do trabalho. Esta postura se refere aos primórdios da automação e Friedmann verá no seu pleno desenvolvimento a possibilidade do “novo artesanato”. Nas suas palavras,

Em sínteses, um estudio de los nuevos modelos, el mejoramiento de los pro- cedimentos de fabricación, la creacion de maquinaria nueva, la reparación de la maquinaria em servicio, la determinacion de los procedimentos de trabajo, nada desto puede hacerse em serie: luego estas atividades son otras tantas ocaiones que exigen habilidade. (FRIEDMANN,1956, p.261).

Dentro do enfoque taylorista de separação entre execução e concepção, Frie- dmann pensa que a qualificação é algo retirado do trabalhador e apropriado pela em- presa, fazendo do homem um apêndice da máquina (TARTUCE, 2002). Embora não definida explicitamente, para Friedmann, a qualificação está relacionada principal- mente à complexidade da tarefa e à posse de saberes exigidos para desenvolvê-la, é definida pelo saber fazer adquirido no trabalho e na aprendizagem sistemática, ou seja, pela qualidade do trabalho e pelo tempo de formação necessário para realizá-lo. Relaciona-se com as rotinas de trabalho, relativas a um posto ou cargo, vinculando- se, portanto, à dimensão prática e específica sob o trabalho. De acordo com Tartuce (2002, p. 18): “o problema da qualificação profissional é introduzido a partir do mo- mento em que há uma separação entre formação e trabalho, separação esta que pode ser melhor visualizada mediante o exemplo do artesanato, onde a aprendizagem dava-se no próprio local de trabalho”. Para Friedmann (1956),

La máquina degrada al obrero, lo convierte em um autómata. Los conocimi- entos profesionales y la habilidad son inútiles para quien está encargado sólo de repetir indefinidamente los mismos movimientos elementales. La máquina es la destructora impacable de los antigos ofícios. (p. 249)

O autor considerava o trabalho artesanal a forma mais completa de trabalho qualificado, pois o artesão era livre para organizar seu trabalho no que se refere ao planejamento, início, técnica e tempo. Ao trabalhar, ele conhecia e desenvolvia suas habilidades. Sobre o taylorismo, segundo o autor, os conhecimentos e o saber fazer não se relacionavam mais com a matéria, aos produtos, habilidades e a experiência na profissão como no trabalho artesanal, mas somente com o funcionamento da má- quina e ao posto de trabalho. Assim, para Friedmann, a automatização, o desenvolvi- mento tecnológico, e o modo de produção taylorista contribuem para a construção da

noção de qualificação. Para ele, o avanço tecnológico era uma realidade inevitável, e levaria a uma desqualificação do trabalhador. Porém, ao avaliar estas questões, seria preciso também considerar o contexto histórico e social em que estão inseridas. Para Friedmann (1956, p. 242) “No se debem olvidar em ningún momento las determinaci-

ones económicas y financeiras si se quiere juzgar las posibilidades prácticas del mo- vimiento en el régimen actual de la indústria”. E complementa:

Luego, el maquinismo industrial no puede ser estudiado ni juzgado sino colo- cado en um medio histórico, en una estructura social. (...) Diferente según el régimen económico de producción donde se inserta, lo es también dentro del sistema capitalista, según el ángulo desde el cuaI se la examina y aplica. (FRIEDMANN, 1956, p.502)

A partir deste momento, pode-se entender que, para Friedmann, a definição de qualificação não é sistemática, mas uma construção social que engloba diversas rea- lidades. Apesar de tender, em vários momentos, para uma concepção mais ampla da qualificação, o autor concentra sua reflexão na apropriação do saber do trabalhador pela máquina e/ou pela organização capitalista e toma a qualificação nela mesma, como uma "coisa" que pode ser mensurada pelo grau e pela frequência de atividade intelectual que o trabalho exige para ser executado (ALALUF 1986, apud TARTUCE, 2004). Friedman percebe que a valorização da atividade fabril se dava apenas em alguns postos de trabalho, permanecendo uma grande maioria ocupada em atribui- ções pouco ou não qualificadas. A polarização das qualificações requeridas surge en- tão como resposta ao avanço do maquinismo e a degradação do trabalho que, se- gundo Hirata (1989),

(...) resulta de uma forma particular de divisão do trabalho, que se caracteriza por uma modificação da repartição social da “inteligência” da produção. Uma parte dessa “inteligência” é “incorporada” às máquinas e a outra parte é dis- tribuída entre um grande número de trabalhadores, graças à atividade de um número restrito de pessoas encarregadas da tarefa (impossível) de pensar previamente a totalidade do processo de trabalho, descobrindo e possuindo o domínio do conjunto dos parâmetros. (p. 74)

Tartuce (2004) afirma que Friedmann acaba, assim, por considerar como ne- cessárias à execução de um trabalho tanto a qualificação do trabalho, conteúdo do trabalho, quanto a qualificação do trabalhador, saber e "saber-fazer”. Porém, com o passar dos anos, o aumento da automação no sistema fabril incluiu na qualificação novos conteúdos relacionados à rapidez, atenção e responsabilidade, pois as novas

máquinas exigiriam menos habilidades manuais e mais atenção à sua operação au- tomatizada.