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3.2 NATUREZA DA SOLIDARIEDADE

3.2.2 Norma versus Valor

E quanto à idéia de que a solidariedade seria um dever, solidariedade- dever moral ou jurídico, passa a abordar. Faz-se uso das seguintes características acerca dos valores, tratadas em capítulo anterior e referidas para refutar a natureza de fato da solidariedade. Então se vem repetir, o valor é uma possibilidade de escolha, é uma expectativa normativa, serve de guia, de orientação do comportamento dos indivíduos.71 A moral é um tipo de norma.

Quer-se dizer que ela pode estar contida no valor, no entanto, não se confunde com o próprio valor. É característica dos valores serem enunciativos, norteadores para as condutas dos indivíduos.

Entretanto, é Lalande mesmo quem nega ser a solidariedade um dever. Ele observa que a expressão solidariedade-dever anuncia um dever derivado da solidariedade, ou seja, a solidariedade não é um dever, ela origina deveres. E originar deveres não se contrapõe diretamente a ser sua natureza um valor. Se assim não o fosse, estar-se-ia negando sua natureza de valor. Veja o trecho: “Dever desolidariedade significa, portanto, deverrelativoà solidariedade.”72

No entanto, quando se diz que algo enuncia, contém um dever, quer logo se concluir que sua natureza seria normativa, portanto, não seria um valor. Pois as normas exprimem um dever, aparentemente não todas. Para registrar, as normas são de várias espécies: jurídicas, morais, éticas, dentre outras. Quando se tratar de regras de condutas ou regras regulativas, estas se subdividem quanto às suas funções em obrigacionais, proibitivas e permissivas, sendo que fica

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“Valor não se confunde com bem. Pelo contrário, é por causa do valor que surge a idéia de algo como sendo um bem. O valor é primário. O bem é decorrência, é algo que vem em seguida. Bem é conceito mais voltado à idéia de instrumento, de meio, utilizado com vistas à consecução de um objetivo de vida.” (FALCÃO, Raimundo Bezerra. Hermenêutica. 1. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2000, p. 20).

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LALANDE, André, Vocabulário técnico e crítico da filosofia. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 1.051.

evidente que as duas primeiras enunciam deveres, a primeira como um fazer, a segunda como um não-fazer. Mas, não se esgota aí. Existem também, exemplificando, as normas que conferem poderes, denominadas de normas constitutivas. Elas atuam ou autorizando a criação de outras normas (regras de competência) ou definindo termos indeterminados, ou conceituando técnica (normas conceituais)73. O poder conferido ou autorizado encerra deveres e direitos, quer dizer, elas concedem direitos subjetivos a alguns, mas embutidos nos direitos estão seu reverso, os deveres. Portanto, quando concedem direitos a alguns, elas determinam a título de dever pelo menos a observância desses direitos a outros. Então, tanto as regras de conduta como as normas que conferem poderes enunciam deveres. Enquanto as regras permissivas são identificadas também por conferirem poderes, já que permitem, têm como característica maior a conferência de liberdade para se conduzir; assim, são regras também que determinam deveres, como as que conferem poderes, pois cada direito corresponde ao menos a um dever. Porém, diante de tudo isso, ainda se deve frisar: o Direito pertence ao mundo do dever-ser; portanto, os deveres são enunciados, mas há a possibilidade de não serem cumpridos.

Apesar de constatar que as normas enunciam deveres (dever-ser, tanto as jurídicas como as demais), é preciso ter um pouco mais de cautela. Ensina Marcelo Lima Guerra que a norma é uma entidade semântica, quer dizer um conteúdo ‘intensional’, como ele denomina de forma enfática, distinto do seu ato normativo, aquele que aparece subscrito, que, por sua vez, se distingue também do enunciado, que seria o conjunto de palavras determinadas para comunicar aquilo que se pretende. Com isso, explica-se que o que costumeiramente se alude por norma engloba uma série de elementos, dentre

73 Para o professor Arnaldo Vasconcelos, as normas são regras de condutas. Essas outras

funções positivadas no ordenamento jurídico são “normas de sobredireito”. (VASCONCELOS, Arnaldo. Teoria Geral do Direito: Teoria da Norma Jurídica. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 1993). Sobre o assunto, ver também:

KELSEN, Hans. Teoria geral das normas (Allgemeine Theorie der Normen). Trad. e rev. por José Florentino Duarte. Porto Alegre, RS: Sergio Antônio Fabris Editor, 1986, p. 129-133.

ATIENZA, Manuel & MANERO, Juan Ruiz. Las piezas del Derecho: Teoría de los enunciados jurídicos. Barcelona: Editorial Ariel, 1995, p. 47-90.

CONTE, Amedeo G. Filosofia del Linguaggio Normativo. Torino, Italia: G. Giappichelli Editore, 1995, p. 267-311.

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eles a própria norma. Porém, o professor não se limita a isso. Esclarece também que muitas coisas diferentes podem-se manifestar com semelhança. O que irá distingui-las umas das outras será o verdadeiro propósito a que se direcionam, a que se prestam. Assim, um dever pode ser enunciado por uma norma e por outras entidades semânticas também. Contudo, apesar de enunciarem, pode ainda não ser esse o objetivo a que se prestam. Trazem-se as palavras do professor nesses excertos.

[...] normas, asserções, perguntas, pedidos e outros tipos de conteúdos intensionais, diferenciam-se entre si, em primeiro lugar, quanto à força ilocucionária, isto é, quanto às diferentes intenções com que algo é representado, quanto aos diferentes modos de conceber o componente representacional. Tanto é assim que cada um dos conteúdos mencionados pode ter o mesmo componente representacional e, mesmo assim, permanecem categorias bem distintas.

...Assim, analisando os elementos das forças ilocucionárias de alguns dos clássicos exemplos de normas, não é possível distingui-las, com grande rigor, de outros conteúdos intensionais como ordens, pedidos, súplicas, ameaças e promessas. Todos esse conteúdos intensionais estão reunidos por uma semelhança de família de suas respectivas forças ilocucionárias: todos eles o componente representacional consiste em uma conduta concebida como um modelo a ser seguido...

A concepção semântica de norma acima delineada permite estabelecer a distinção entre norma, ato normativo e enunciado normativo. A norma é um mero conteúdo intensional ou entidade semântica, caracterizado por uma força ilocucionária própria [...]74

De tudo se extrai que um dever não precisa ser enunciado exclusivamente por normas. Levando-se em consideração que a solidariedade, enquanto entendida como uma entidade semântica, estaria enunciando um dever, questiona-se: a solidariedade tem como objetivo primordial de sua natureza enunciar um dever? Ou o faz em outras circunstâncias?

Consta-se do que se pode analisar da solidariedade que ela originariamente inspira um modelo de convivência, que induz condutas humanas

74GUERRA, Marcelo Lima. Norma: uma entidade semântica. In: MACEDO, Dimas (org.). Filosofia

e constituição: estudos em homenagem a Raimundo Bezerra Falcão. Rio de Janeiro: Letra Legal, 2004, p. 84-85.

a complementarem as de outras pessoas, quando essas condutas visam à manutenção de uma comunidade, mas pode também induzir as pessoas a tolher condutas de outras pessoas, quando, por exemplo, essas condutas puderem significar a dissolução da comunidade. Então, a solidariedade pode ser entendida mais como um aconselhamento, como um ideal a ser perseguido e não como uma imposição, ou como a previsão de deveres de auto-ajuda, por exemplo. O importante não é se a solidariedade contém deveres quando assumida como estrutura de convivência, mas se o objetivo é atribuir deveres, ou seja, se os deveres são seu ‘conteúdo intensional’. Observa-se que é a dispor um dever que a solidariedade se predispõe.

Ainda assim, poder-se-ia dizer que as normas não têm função exclusiva de enunciar deveres; então, a negativa quanto a ser uma norma ainda não poderia ser formulada. As normas apresentam diversos conteúdos. Em verdade, conforme os estudos levantados por Ruiz e Atienza, que reformulam o clássico Hart, só seriam reconhecidas como normas aquelas que praticam o ato da prescrição, o que só engloba as funções de estipular uma obrigação, uma proibição ou uma permissão, a que eles denominam de regras regulativas. Pois o ato da prescrição é que viria caracterizar as normas deônticas, segundo os campos da semântica, sintática ou pragmática. Já quanto à função de conferência de poderes que, dentre outras normas, vem tipificar os princípios, que se denominam de normas constitutivas enquanto a doutrina hartiana denomina de normas de mandatos ou primárias. Quer-se dizer que também as normas são objeto de estudo; quando se aprofunda o estudo de tudo que comumente se chama de norma, somente uma parte talvez fosse norma no apego à linguagem. E dentre elas, o que não prescreve deveres seriam apenas as regras de conduta permissivas. Segundo esse entendimento, a solidariedade então não pode ser reconhecida na sua essência como uma norma, uma vez que não vem prescrever conduta; então, não têm natureza deôntica. Nesse ponto de vista, sua natureza é axiológica; logo, se confirma a tese de ser um valor.

Mais uma vez, tende-se a concluir que a solidariedade é um valor, agora, após contrastar com a hipótese de a solidariedade ser uma norma segundo a tipificação semântica. Ressaltar as normas, quer sejam as jurídicas

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quer não, como já ficou estipulado, pode ou não estipular deveres, mas não seriam normas no sentido semântico; seriam atos normativos. Já quanto à possibilidade de a solidariedade ser um ato normativo, isso não se exclui, pois os atos normativos, o que costumeiramente se denomina norma, na realidade são fruto de convenção. Por isso, a afirmativa de que as normas, no caso os atos normativos, podem adotar conteúdos diversos de acordo com o que se transpõe aos seus enunciados, pois, por exemplo, as normas jurídicas que vêm compor um Ordenamento Jurídico acabam representando uma diversidade de anseios da sociedade, sejam jurídicos, políticos, religiosos, enfim tudo tem sido ‘transformado’ em ‘norma’, que para ser mais preciso, repete-se, é ato normativo. Mas também não se deve esquecer que, às vezes, as normas enunciam o dever de se observarem criteriosamente certos valores e, como iremos perceber, ainda no estudo das doutrinas e teorias que se caracterizam pela solidariedade, que a solidariedade não deixou de ser parte de uma norma. No entanto, quando isso ocorreu, o que se passou a chamar de solidariedade já compunha características novas, adicionais. Então, uma coisa é a solidariedade originária, que é um valor; outra coisa é sua agregação a uma norma que também se permitiu denominar por solidariedade.

Quer-se confirmar a caracterização da natureza da solidariedade como um valor com a seguinte definição:

Valores são um sistema de convicções e crenças que em uma sociedade dada definem os fins, metas ou objetivos a serem alcançados pela comunidade como um todo [...] Fixam os critérios do que é desejável, preferível, os valores servem de guia e orientação do comportamento dos indivíduos.75

A solidariedade é fator determinante de um modelo de vivência, a vivência em conjunto, o associativismo, o mutualismo, o coletivismo. Determina que o indivíduo se comporte em prol da existência do grupo, bem como sua inserção nele.

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ROCHA, José de Albuquerque. Hermenêutica constitucional e Judiciário. Revista ibero-

americana de direito constitucional econômico (Jurisdição constitucional no mundo globalizado). Ano I - nº I. Fortaleza – Abril de 2002, , p. 113.

Tendo em vista que a solidariedade define o comportamento social do indivíduo, é um guia na sociedade, pode-se entender que solidariedade é um valor. Aliás, os valores em geral, conforme se extrai da definição de valor acima exposta, são preceitos sociais. Então, melhor seria dizer que os valores, quando tomam força suficiente para influenciar uma sociedade, eles são valores sociais, como se constatou com a classificação dos valores quanto à abrangência, e que, generalizando, sem que seja tão preciso quanto à classificação, seriam tanto os ditos universais e os nacionais incluídos no termo valores sociais. Nesse aspecto, afirma-se: a solidariedade é um valor social.

Veja, Duguit diz ser a solidariedade uma interdependência social, e a identifica como norma social, uma vez que ele concebe ser impossível viver-se em sociedade sem a solidariedade, ou seja, a solidariedade atua como uma lei, é um regramento a ser adotado e aplicado entre os membros de uma sociedade. Nessa concepção a solidariedade não é mais somente um valor, mas assume conotação diversa: é um dever a ser observado constantemente por todos os membros de uma comunidade, de forma que não é apenas uma influência, e sim um dever, uma obrigação, uma norma social, até então moral.

Importante frisar que os valores nortearão muitas “entidades semânticas”. As normas são um dos exemplos. Quando isso ocorre está-se valorizando. “Quando se identifica um valor presente no ser, está se valorando e quando se imprime um valor a um valor está se valorizando.”76 Pois, se bem

analisar-se a força ilocucionária que ainda está por ser definida por Marcelo Lima Guerra, ver-se-á que é a mesma que será definida por um valor único que virá a definir as normas. Provavelmente, existindo alguma sutileza que distinga as espécies. E valor solidariedade é o valor que será detectado em muitos outros entes ou entidades.

Então, há de se perceber que a solidariedade pode tanto ser um valor como também pode ser uma norma, pois o valor é inspiração para a norma, é o

76LIMA, Francisco Meton Marques de. O resgate dos valores na interpretação constitucional: para

uma hermenêuntica reabilitadora do homem como «ser-moralmente-melhor». Fortaleza: ABC Editora, 2001, p. 30-31.

Assim define Mário Ferreira dos Santos: “Outrossim cumpre distinguir os conceitos de valorar e de valorizar. Valorar é captar um valor, é perceber, tomar conhecimento; valorizar é dar um valor a um valor, a algo, por ser este algo portador de um valor ou por receber a contribuição de um

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ponto de partida. Esse é o primeiro passo para se obter a solidariedade norma jurídica, enquanto princípio da solidariedade adotado na CF/88, art. 3º, I.

Assim, quando Léon Duguit diz ser a solidariedade uma norma social, deixa implícito que o valor solidariedade lá está contido, ou seja, o valor está valorizando a entidade norma. Com isso deve-se atentar para qualquer valorização, deve-se buscar aplicar ao máximo o valor que na entidade constar. Assim, os valores passam a incorporar as entidades.

Portanto, de tudo se conclui, mais uma vez, que a solidariedade originariamente é um valor, porém ela pode ser objeto de uma norma. E quando Duguit se refere como sendo uma norma social, ele se refere a uma norma social que impõe a obrigatoriedade da aplicação da solidariedade valor. Então, a solidariedade ora se apresenta exclusivamente como valor, ora como norma, a qual se origina do valor, mas ambas as formas de apresentação são importantíssimas ao mundo jurídico.

Resta agora visualizar a atuação da solidariedade na vida social, para que se tenha compreensão de características, efeitos, fundamentos, bem como quais outros valores que relacionados à solidariedade possibilitariam uma aplicação com maiores benefícios sociais.

4 SOLIDARIEDADE: SUA CARACTERIZAÇÃO

E SUA REPERCUSSÃO NO ESTADO E NO

MUNDO JURÍDICO

Como se vem demonstrando, o valor solidariedade consagra a vida do homem em sociedade. No entanto, afirmar isso não é o mesmo que dizer que a vida em sociedade se deu por causa desse valor. Não, esse valor se justifica pelo interesse do homem em se manter em sociedade. Estudando as razões que levam o homem a viver em sociedade, facilita compreender-se as razões que o levam a manter a sociedade, portanto as razões que o levam a eleger a solidariedade como valor.