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1 Solução das principais dificuldades enfrentadas no processamento da cooperação jurídica internacional

1.2 Nova configuração da ordem pública nacional

A ordem pública é definida como um conjunto de valorações de caráter político, social, econômico ou moral, próprias de uma comunidade determinada, que definem sua fisionomia em um dado momento histórico também determinado203. Ou ainda, como o conjunto de valores imperativos que se encontram permeados no ordenamento jurídico e que devem preponderar no exercício da jurisdição204.

No processo penal é sempre oportuna a definição de ordem pública formulada por Bento de Faria, que compreende o conjunto de regras legais que, tendo em vista as ideias particulares admitidas em um país determinado, são consideradas como respeitantes aos seus interesses essenciais205.

Esta noção tem por premissa o respeito às diretrizes ou parâmetros, que fundamentam o ordenamento jurídico de cada Estado.

É tratada como sinônimo de convivência ordenada, segura, pacífica e equilibrada, normal e própria dos princípios gerais de ordem expressados pelas eleições de

201 SILVA, Ricardo Perlingeiro Mendes da. Auxilio direto, carta rogatória e homologação de sentença

estrangeira. Revista de Processo, São Paulo: RT, v. 30, n. 128, p. 289, out. 2005.

202 BRAZ, Mario Sergio A. Imunidade de jurisdição e negativa de exequatur a cartas rogatórias passivas.

Revista Forense, v. 100, n. 376, p. 233, nov./dez. 2004.

203 CERVINI, Raúl; TAVARES, Juarez. Princípios de cooperação judicial penal internacional no

protocolo do MERCOSUL.São Paulo: RT, 2000. p. 121.

204 CASELLA, Paulo Borba. A ordem pública e a execução de cartas rogatórias no Brasil. Revista da

Faculdade de Direito da USP, v. 98. p. 568, 2003.

base que disciplinam a dinâmica de um objeto de regulamentação pública e, sobretudo, de tutela preventiva, contextual e sucessiva ou repressiva206.

Representa um anseio social de justiça, assim caracterizado por conta da preservação de valores fundamentais, proporcionando a construção de um ambiente e contexto absolutamente favoráveis ao pleno desenvolvimento humano207. A ordem pública é o estado social que resulta da relação que se estabelece entre os representantes dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, como governantes, e os particulares, como governados, no sentido da realização dos interesses de ambos208.

As leis de ordem pública, por sua vez, são aquelas que, num Estado, estabelecem os princípios cuja manutenção se considera indispensável à organização da vida social, segundo os preceitos de direito209.

Ocorre, todavia, que a variabilidade do conceito de ordem pública no tempo e no espaço acha-se sempre vinculada à noção de interesse público e de proteção à

206 TERRA, Nelson Freire. Segurança, lei e ordem. 1988. 346 f. Tese (Doutorado em Direito

Constitucional) – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo. p. 32. Para o autor, a noção de ordem pública, que é mais fácil ser sentida do que definida, resulta de um conjunto de princípios de ordem superior, políticos, econômicos, morais e algumas vezes religiosos, aos quais uma sociedade considera estreitamente vinculada à existência e conservação da organização social estabelecida. A ordem pública se constitui de princípios jurídicos que, dadas certas ideias particulares admitidas em determinado país, consideram-se ligados a seus interesses essenciais (p. 37). Ver também DEL VECCHIO, Benedetto, Brevi Osservazioni Sull’Ordine Pubblico Normativo. In: SCRITTI DI DIRITTO PUBBLICO E DI DIRITTO SCOLASTICO IN MEMORIA DI SAVERIO DE SIMONE. A cura di Salvatore Mastropasqua. Università Deli Studo Di Cassino, Facoltà di Economia e Commercio, 1990, p. 105-106:

Questo giudizio di congruità postula un equilibrato coordinamento degli interessi individuali e degli interessi collettivi. L’uomo, come individuo e come soggetto della comunità civile, è portatore ed espressione di una giudiricità sua propria che nessuna legge ottriata è autorizzata e disattendere. (...)l’esigenza del senso dell’ordine pubblico e del buon costume, nella stessa misura in cui ordine pubblico e buon costume appartengono alla collettività come tale: in ciò v’è quella “coerenza intrinseca al processo di vita...”, che il diritto è chiamato a costituire ed a garantire”. (...)“con norma imperativa” ci si riferisce alle norme positivamente date, di natura inderogabili (jus ex scripto)”; “con “ordine pubblico” ci si riferisce ai principi generali dell’ordinamento iuridico, deducibili dia dal jus ex scripto sia dal jus ex non scripto; “con “buon costume” ci si riferisce al complesso dell regole etico-sociali costituenti i mores majorum.

207 FUMAGALLI, Luigi Fumagalli. Considerazioni sulla unità del conceito di ordine pubblico. In: AGO, R.;

GIULIANO, M.; ZICCARDI, P. (Diretori). Comunizazioni e Studi. Universitá di Milano, Istituto di Diritto Internazionale e Straniero. Milano: Giuffrè, 1985. p. 607. O autor define a ordem pública: Così

questo è stato definto como “le condizioni minime cui è subordinata l’esistenza dell’ordinamento giuridico e la conservzione della comunità stataleretta dall’ordinamento”, nozione in cui si annullano, per astrazione, i vari “tipit” di ordine pubblico, senza peraltro esculedere la possibilità di diversi atteggiamenti da parte delle svariate norme che a tale concetto fanno riferimento. Infatti rale carattere può essere riscontrato sai nelle norme amministrative di pubblica sicurezza (ordine pubblico ammnistrative), sia nelle norme penali (ordine pubblico penale), poiché entrambe le categorie sono volte ad assicurate l’ordinato e pacifico svolgersi delle attività umane, prevenendo e punendo quelle considerate particolarmente criminogene; e tale carattere può essere riscontrato anche nel diritto straniero o della autonomia privata di quei princìpi cui egli stesso s è ispirato nella posizione del suo ordinamento. L’ordinamento si difende dagli “attentati” alla sua coerenza, portati da attività umane materiali o da “produzione” normative esterne(p. 597/598)

208 OLIVEIRA FILHO, J. de, Do conceito da ordem pública. Faculdade de Direito de São Paulo. Curso de

Doutorado. Direito Internacional Privado, 1934 p. 54-56.

209 Ibid., p. 8. Segundo o autor, a expressão ordem pública, porém, tomou consistência política, depois do

período revolucionário da França, quando a Assembléia Constituinte “criou a guarda nacional com o fim especial de garantir os direitos do povo, a estabilidade de sua liberdade”, mantendo a ordem pública, isto é, a obediência às leis, o respeito às pessoas e à propriedade, bases fundamentais, sem as quais não se poderia conceber a existência de um Estado.

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segurança, à propriedade, à saúde pública, aos bons costumes, ao bem-estar coletivo e individual, assim como à estabilidade das instituições. A proteção a esses bens assenta-se em dois elementos: a ausência de perturbação e a disposição harmoniosa das relações sociais210.

No Direito Constitucional, a ordem pública coincide com o conjunto de

princípios fundamentais de um ordenamento211. No âmbito do Direito Internacional, a

cláusula de ordem pública sempre representou a autodefesa do ordenamento jurídico soberano e a sua função de tutelar os princípios que lhe conferiram a individualidade num dado momento histórico, e cuja eventual abdicação implicava a sua não existência. Sua função determinava o conteúdo normativo dos princípios fundamentais invocados na proteção contra a agressão externa212.

Contudo, não é razoável que a cláusula da ordem pública esteja reduzida a um elenco de princípios altamente abstratos213, porquanto o que se pretende proteger são as disposições irrevogáveis somente214.

O ponto central da discussão impõe separar dentre as normas internas aquelas que de fato são passíveis de sanções, por estarem incluídas na categoria de normas de ordem pública e que acabam por condicionar os atos de instrução estrangeiros215.

O Código de Direito Internacional Privado (Código de Bustamante) refere-se à ordem pública em várias passagens, com destaque para o artigo 4o, que declara as normas constitucionais como de ordem pública216.

Contudo, somente as normas constitucionais referentes à organização política do Estado, aos seus fundamentos, incluído o padrão normativo universal dos direitos humanos, constituem normas de ordem pública. Na hipótese da cooperação jurídica internacional para o fim de produzir provas, não integram as normas de ordem pública as disposições internas que não refletem diretamente o padrão normativo universal dos

210 TERRA, Nelson Freire. Segurança, lei e ordem. 1988. 346 f. Tese (Doutorado em Direito

Constitucional) – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo. p. 35.

211 Idem. p. 33.

212 VALENTINI, Cristiana. L’acquisizione della prova tra limiti territoriali e cooperazione com autorità

straniere. Padova: CEDAM, 1998. p.199.

213 Ibid., p. 204-205. 214 Ibid., p. 207. 215 Ibid., p. 208.

216 SOUZA, Solange Mendes de. Cooperação jurídica penal no Mercosul: novas possibilidades. Rio de

Janeiro: Renovar, 2001. p. 74. A autora define a ordem pública como a imutabilidade de um valor político, moral ou legal, ainda que mediante norma nacional, internacional, seja esta clássica, de integração ou comunitária.

direitos humanos, havendo violação às normas de ordem pública, se não respeitado o marco de garantias incidente sobre a atividade probatória217.

É importante salientar que os tratados internacionais, que estabelecem a harmonização das legislações nacionais, superam a concepção da ordem pública nacional enquanto alcançam a necessária equivalência ou homogeneidade de procedimentos218.

Assim, não pode ser considerada violação à ordem pública nacional, a simples diversidade dos sistemas probatórios, ou ainda, a possibilidade que alguns sistemas reconhecem ao Ministério Público de acessar diretamente os dados bancários e fiscais, desde que validada a medida judicialmente.

Da mesma forma, não pode ser considerado atentatório à ordem pública nacional o pedido de assistência que tenha caráter executório. Nesse sentido, Carmen Tibúrcio conclui que o Protocolo de Las Lenãs e o Protocolo de Ouro Preto alteraram a posição do Direito Brasileiro nesse sentido219. Na realidade, mesmo que não houvesse tratado internacional dispondo sobre a possibilidade do atendimento do pedido com caráter executório, o fundamento da admissão consiste na existência de uma relação de interdependência entre as ordens públicas nacionais e a ordem pública internacional na promoção e proteção dos direitos humanos.

1.3 Conclusão

Todas as considerações expostas têm como objetivo evitar o recurso desnecessário e arbitrário à proteção da soberania e da ordem pública nacional, como fundamento para a recusa à assistência jurídica internacional, devendo o intérprete considerar o contexto da nova ordem mundial e a posição que cada Estado se encontra. A legitimidade da recusa com base nesse fundamento pressupõe tal contextualização.

217 MCCLEAN, David. International judicial assistance. Oxford: Clarendon Press, 1992, p. 94-95.

“Incompatible’ with internal law does not mean simply ‘different’ from such law, but that there must be

some constitutional or statutory prohibition.”

218 RUBIO, Carlos Ramos. Comisiones Rogatorias para la obtención de pruebas. Problemas de validez de las

pruebas obtenidas en el extranjero: análisis de la jurisprudencia del Tribunal Supremo Español. Estudios

Jurídicos, Madrid: Ministerio Fiscal, n. 3, p. 364, 2003.

219 TIBURCIO, Carmen. As cartas rogatórias executórias no Direito Brasileiro no âmbito do

MERCOSUL. São Paulo: RT, 2001. (Série Processo de Execução e Assuntos Afins, v. 2, p. 107). No

mesmo sentido, Nadia de Araújo, Carlos Alberto de Salles e Ricardo Ramalho Almeida (Medidas de cooperação interjurisdicional no MERCOSUL. Revista de Processo, São Paulo: RT, v. 30, n. 123, p. 88- 89, mai. 2005.).

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Ao mesmo tempo em que o padrão normativo universal dos direitos humanos acarretou uma nova delimitação da soberania e da ordem pública nacional, induziu a um esforço cada vez mais intenso do valor solidariedade no relacionamento entre os Estados e com as organizações internacionais. Criou-se um ambiente em condições de aumentar a qualidade e a intensidade no referido relacionamento, ou seja, de maior confiança.

2 Confiança mútua como princípio orientador da cooperação entre os

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