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2 O PLURALISMO RELIGIOSO COMO PARADIGMA NA HERMENÊUTICA TEOLÓGICA DA REVELAÇÃO

2.3 A RESPONSABILIDADE DA TEOLOGIA CRISTÃ NA ERA DO PLURALISMO RELIGIOSO

2.3.2 Novas abordagens da universalidade do cristianismo

Para Geffré, é a partir da irrupção divina manifestada na particularidade histórica de Jesus de Nazaré que a mensagem cristã remonta ao seu caráter essencialmente dialogal e não imperialista. Enquanto religião histórica, o cristianismo se insere em um status contingente e não necessário ou absoluto. Por isso, é preciso revisar a doutrina da teologia do cumprimento de maneira não totalitária, tomando um tom mais quenótico. Três pistas teológicas nos ajudam a elaborar uma teologia mais responsável: 1) A não catolicidade da Igreja na sua dimensão histórica; 2) O cristianismo como religião da encarnação, da historicidade, da relatividade, tendo apenas o Reino de Deus como absoluto; 3) A dimensão quenótica do cristianismo.

A Igreja, na sua dimensão história, não consegue integrar ou substituir as riquezas irredutíveis e autênticas das outras tradições religiosas do mundo. Começando pelo cisma originário entre a Igreja e Israel, passando pelos grandes cismas eclesiais do Oriente e do Ocidente e todas as divisões subsequentes, podemos perceber o quanto é inconcebível imaginar uma absorção de toda essa pluralidade cultural e religiosa em uma uniformidade católico-romana. Para Geffré, “cada figura religiosa guarda qualquer coisa de irredutível na medida em que pode ser suscitada pelo próprio Espírito de Deus.”356 Seria inaceitável a

pretensão de um nivelamento religioso da multiforme manifestação dos carismas divinos na diversidade das tradições religiosas da humanidade.

O cristianismo é a religião da encarnação. Sua essência não consiste em uma doutrina metafísica. Seu aspecto fundamentalmente histórico constitui a sua natureza dialogal. É imprescindível considerar que é a pessoa concreta de Jesus que manifesta de forma muito situada o Logos universal, o Verbo divino, a Palavra que se tornou carne, o Absoluto relativizado no tempo e na história. “Cristo é exatamente o elemento concreto graças ao qual os homens têm acesso ao Absoluto.”357 Isso põe o cristianismo ao lado das outras religiões no

que diz respeito à relatividade das manifestações religiosas que apontam para o absoluto

356 Id. Ibid., p. 38. 357 Id. Ibid., p. 39.

divino. E olhando desde uma perspectiva escatológica, não há como considerar o cristianismo a não ser ao lado das outras religiões à espera e sob o julgamento da revelação final. “Nem os cristianismos históricos, nem as Igrejas que os homens vêem são absolutos. Só é absoluta a revelação final que coincide com a vinda do Reino de Deus.”358 Isso leva a tomar uma nova

atitude: a de não procurar converter os membros de outras religiões à religião cristã, mas convocá-las à expectativa da revelação derradeira. “A missão deveria ser menos polarizada sobre a mudança de religião e mais sobre o testemunho do Reino de Deus.”359 O Reino de Deus ultrapassa as fronteiras das religiões e deve ser o horizonte de cada uma delas.

A dimensão quenótica é consubstancial ao cristianismo. “A cruz tem um valor simbólico universal. É o símbolo de uma universalidade sempre ligada ao sacrifício de uma particularidade.”360 A morte particular do Crucificado faz nascer a figura universal do

Ressuscitado. E é na ausência do corpo do fundador que o cristianismo percebe uma falta original, uma kênosis (esvaziamento) de toda pretensão totalizadora e imperialista. A consciência dessa indigência fundamental faz do cristianismo uma religião do diálogo com o outro, para ser sinal daquilo que lhe falta, e para buscar na alteridade irredutível do diferente, o auxílio necessário à edificação de sua identidade enquanto religião peregrina em busca da plenitude escatológica do Reino de Deus. No entanto, é preciso articular dialeticamente a universalidade da mensagem cristã com a pluralidade das tradições religiosas e culturais, mantendo a singularidade característica do cristianismo na diversidade das religiões do mundo. É possível se relacionar sem perder a identidade, isso garante mais maturidade aos valores de cada tradição religiosa. O confronto sadio com o outro ajuda a crescer, e faz vir à tona as belezas de cada um dos interlocutores envolvidos no diálogo.

Atualmente tem-se muito mais consciência da relatividade histórica do cristianismo e de como é insustentável e inverificável historicamente a sua pretensão à universalidade totalizante. Faz mais de vinte séculos que o cristianismo tem sido predominantemente configurado pela sua ocidentalidade, sua teologia é radicalmente eurocêntrica, e sua filosofia se afinou muito ao helenismo. “Na era de um certo policentrismo cultural no interior da Igreja, uma teologia responsável deve procurar ultrapassar o face a face com Atenas e com Jerusalém para levar em conta um tertium quid, a saber, o outro não ocidental que não é nem judeu, nem grego.”361 Assim como a dualidade judeu-grego foi superada pela pregação do

Evangelho, precisamos hoje ultrapassar as barreiras entre ocidental e não ocidental, realizando

358 Id. loc. cit. 359 Id. loc. cit. 360 Id. Ibid., p. 39-40. 361 Id. Ibid., p. 41.

uma verdadeira inculturação oriental. Mas para isso, é preciso superar a visão de um cristianismo essencial que precisaria ser preservado em sua pureza imaculada ao se revestir das diversas culturas. O cristianismo é a religião da encarnação, e como tal, transforma a partir de dentro as culturas com as quais tem contato, assim como é por elas transformado, havendo um mútuo superávit de sentido nessa transmutação religiosa e cultural362.

No contexto multicultural em que está inserido, o cristianismo descobre a sua vocação universal e policêntrica. Mesmo que o mundo contemporâneo esteja fazendo concomitantemente a experiência da globalização e dos nacionalismos, é responsabilidade comum do cristianismo e das diversas tradições religiosas e culturais buscarem a unidade planetária do espírito humano, combinando globalidade e subsidiariedade, numa intercomunicação das diversas teologias, para favorecer a irrupção de uma nova teologia inter-religiosa que possa se caracterizar pela sua mundialização, sem cair nos perigos do indiferentismo ou da unilateralidade fanática. O diálogo entre as diversas tradições religiosas pode ser positivo não só para as religiões em si, mas também para a sociedade. Diante das ambiguidades da globalização, o diálogo inter-religioso pode ser um fator determinante que contribui para a humanização dos efeitos perversos da cultura globalizada, evitando toda uniformidade consumista, materialista e hedonista.