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2 O PLURALISMO RELIGIOSO COMO PARADIGMA NA HERMENÊUTICA TEOLÓGICA DA REVELAÇÃO

2.6 O FUTURO DO ECUMENISMO INTER-RELIGIOSO

2.6.1 O paradoxo da encarnação

O cristianismo histórico, incapaz de tematizar a totalidade das riquezas históricas advindas das religiões da humanidade, precisa retornar ao núcleo duro de sua identidade ontológica para descobrir aí o fundamento de uma postura dialógica diante da alteridade enriquecedora das outras tradições religiosas. Para dialogar com as outras religiões, não é necessário abdicar da genuinidade da encarnação, afirmando ser esta uma metáfora (John Hick), ou afrouxar o vínculo entre o Jesus da história e o Cristo da fé (Raymond Panikkar). O Jesus histórico é mais do que a figura contingente de um Cristo transcendente, ele é o mediador único e universal, a possibilidade de uma comunhão teândrica. Tillich afirma que “para fundamentar o caráter dialogal do cristianismo, é preferível [...] voltar ao centro mesmo da fé cristã, a saber, ao próprio mistério da encarnação, no seu sentido mais realista e não mítico.”423 A encarnação é o acontecimento por excelência do qual emerge o paradoxo

fundamental do cristianismo que remete à unidade entre a eternidade e a essencialidade divina e a contingência histórica e temporal humana e cósmica. Esse paradoxo, característico do cristianismo, não decorre de uma concepção irracional ou de uma contradição lógica, mas remete a um acontecimento que transcende radicalmente as expectativas e as possibilidades humanas.

422 Id. Ibid., p. 88. 423 Id. Ibid., p. 92.

A teologia cristã repousa sobre a tensão entre a realidade absolutamente concreta do Jesus histórico e a universalidade absoluta do Cristo ressuscitado. Ao contrário da teologia ariana que despoja Cristo de sua absoluta universalidade, considerando-o menos do que Deus, e de sua total concretude, concebendo-o mais do que um homem, engendrando um meio- Deus, a teologia cristã parte do paradoxo fundamental que considera que Jesus é o Cristo. Tillich vai entender aí, na pessoa de Jesus Cristo, uma grande síntese antropológica e religiosa, pois “numa vida pessoal (a de Jesus) a essência do homem aparece sob as condições de existência (quer dizer, sob o signo da finitude, da alienação e da ambiguidade), sem ser vencida por elas.”424 Para Tillich, em Cristo há a convergência de uma antropofania e de uma

teofania conjugadas na emergência de um Ser Novo, cujo mérito consiste em salvar a humanidade de sua alienação e renovar o cosmos. O Ser Novo em Jesus como Cristo é “a norma material de toda a teologia sistemática.”425 Tillich parte de uma teologia paulina

cósmica e escatológica, conforme vemos em 2Cor 5,17, em continuidade com a doutrina patrística tradicional do Logos universal e das sementes do Verbo espalhadas em toda a criação, para principiar a elaboração de uma teologia cristã das religiões. O cristianismo, enquanto religião particular está implícito nas outras religiões, porém, é a explicitação de uma manifestação singular do Logos universal.

Cogitar que a filiação divina de Jesus é apenas uma metáfora, comprometeria a identidade de Jesus como o Cristo e transformaria a cristologia em uma jesuologia. A união hipostática do Verbo é condição de possibilidade para a veracidade e a eficácia do sacrifício pascal em todo seu alcance cósmico e antropológico e em toda a sua amplitude teológica. Além disso, “Cristo só é Cristo na medida em que sacrifica sua existência histórica como existência d’Aquele que é simplesmente Jesus.”426 A historicidade jesuânica é premissa

indispensável para a efetividade do mistério pascal do Cristo, e a glorificação do Cristo ressuscitado confere sentido à existência temporal do nazareno. Negar uma das dimensões constitutivas da identidade de Jesus Cristo por conveniência, não é exatamente o caminho mais indicado para que ocorra um verdadeiro diálogo com as outras tradições religiosas. Para dialogar é precisar retornar ao essencial da fé, ao que é característico do cristianismo, para que isso seja compartilhado com as outras cosmovisões culturais e religiosas.

A doutrina de Cristo como Ser Novo que encarna a unidade do absolutamente concreto com o absolutamente universal só assume sua significação última à luz de uma teologia da cruz. E ela fornece o fundamento para suprimir o caráter de absoluto do cristianismo como religião histórica. No diálogo com as outras religiões,

424 Id. Ibid., p. 95. 425 Id. Ibid., p. 96. 426 Id. Ibid., p. 97.

é preciso renunciar a conferir ao cristianismo uma unicidade de excelência e de integração e reivindicar apenas uma unicidade singular e relativa. A cruz é a condição da glória, a renúncia a uma particularidade é a condição de uma universalidade concreta. De acordo com a intuição de Tillich, pode-se dizer que Cristo é ao mesmo tempo “Jesus” e a “negação de Jesus”. Quer dizer que Jesus como homem particular se sacrificou a si mesmo como Cristo. E na ressurreição há, de alguma forma, a restituição de Jesus a Cristo. Cristo ressuscitado libera a pessoa de Jesus de um particularismo que o teria feito propriedade particular de um grupo particular.427

Operando uma analogia com o paradoxo cristológico e com a simbologia da cruz, o cristianismo pode tomar consciência de sua condição paradoxal como religião e de seu fundamento sobre uma ausência original que lhe coloca sob o signo de uma falta. A morte de Jesus na cruz é condição para a ressurreição. O túmulo vazio é condição para o advento do corpo da Igreja e das Escrituras. A kênosis de Cristo conduz o cristianismo a uma postura quenótica, levando-o a perceber a humildade de seu estatuto identitário e a sua vocação original ao diálogo sincero com o outro, com o estrangeiro, com o diferente428. Para Tillich, é

a partir do paradoxo cristológico e não de um teocentrismo abstrato, que o diálogo ecumênico pode tirar grande proveito. “É justamente professando Jesus como Cristo que temos alguma chance de assegurar o caráter dialogal e não totalitário do cristianismo.”429 Nesse sentido,

Duquoc afirma que, ao se revelar em Jesus, Deus não torna absoluta uma particularidade, mas ao contrário, Ele declara que nenhuma particularidade histórica é absoluta e que, em virtude dessa relatividade, Deus pode ser encontrado na nossa história real.430 Contra toda espécie de

docetismo, o paradoxo da encarnação faz-nos entender que a manifestação de Deus na contingência humana é o grande movimento dialógico divino-humano que nos convoca a empreender o movimento do diálogo ecumênico a nível planetário.