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2 O PLURALISMO RELIGIOSO COMO PARADIGMA NA HERMENÊUTICA TEOLÓGICA DA REVELAÇÃO

2.5 O LUGAR DAS RELIGIÕES NO PLANO DE SALVAÇÃO DE DEUS

2.5.3 O papel mediador das religiões

Tendo em vista a mediação de Cristo e da Igreja, Geffré fala em mediação derivada das religiões401. “As tradições religiosas são como que quase-sacramento da presença do

mistério da salvação operada em Jesus Cristo. Elas são ao mesmo tempo sinais do dom de Deus e disposições existenciais para o acolhimento deste dom.”402 As religiões do mundo se

inserem não de forma acidental na economia da salvação, embora a Igreja continue a ser sacramento universal da salvação mesmo que as pessoas sejam salvas fora dela. “Deus não está preso às mediações eclesiais, sejam elas da Palavra, do sacramento e do ministério. A graça é oferecida a todas as pessoas segundo caminhos só conhecidos por Deus.”403 A Igreja

400 Id. loc. cit.

401 Cf. Id. Ibid., p. 76. Segundo Geffré, “a superabundância do mistério de Cristo não encontrou sua tradução

adequada no cristianismo histórico que conhecemos, e assim outras tradições religiosas podem misteriosamente encarnar certos valores crísticos. [...] Os valores religiosos das outras religiões podem ajudar-nos dentro do cristianismo a explicitar melhor algumas virtualidades do mistério cristão.” (Id. Crer e interpretar, p. 160). Para Teixeira, entre o cristianismo e as outras religiões há “complementaridade recíproca.” (TEIXEIRA, Faustino. op.

cit., p. 56). É preciso superar uma visão abrangente e totalitária do cristianismo, em favor de uma perspectiva de

transformação e enriquecimento mútuos. A dimensão escatológica da revelação cristã deixa seu conteúdo inteligível permanentemente em aberto, como algo inacabado, à mercê do Deus que era, que é, e que vem.

402 GEFFRÉ, Claude. op. cit., p. 158-159; Cf. Id. De Babel à Pentecostes, p. 76. 403 Id. Crer e interpretar, p. 159; Cf. Id. De Babel à Pentecostes, p. 76-77.

terrestre e quaisquer outras instituições religiosas históricas não possuem o monopólio dos sinais do Reino de Deus. O Espírito Santo age particularmente nas religiões e universalmente no coração dos seres humanos e dos povos.

O diálogo inter-religioso autêntico exige que se leve a sério a singularidade e diferença das outras tradições religiosas. Constitui um equívoco tanto incorporar tais tradições no cristianismo, à maneira de um “implícito cristão”, como nivelá-las por igual. Mesmo afirmando o primado de Jesus Cristo como “figura integral de salvação de Deus”, é teologicamente pertinente afirmar que o processo de salvação continua a acontecer de “maneira independente” nas outras tradições religiosas. [...] Segundo Geffré, o caminho de abertura para o reconhecimento da singularidade das outras tradições religiosas está diretamente relacionado com uma nova compreensão da singularidade de Jesus Cristo, entendida não mais como uma unicidade de “excelência e integração”, mas como uma unicidade singular e relacional. [...] É neste sentido que Geffré sublinha o valor das tradições religiosas da humanidade como “mediações derivadas”. Elas não constituem, portanto, vias paralelas de salvação, mas encontram-se animadas pela potência universal do Logos e pela ação ilimitada do Espírito. Deus manifesta sua presença onde quer que se dê uma genuína experiência religiosa. Neste sentido, a resposta positiva à oferta de salvação acontece na prática efetiva das próprias tradições religiosas: nelas e através delas. [...] Há, portanto, uma comunhão das várias tradições religiosas, ainda que de diferentes modos, no mistério da unidade da salvação.404

Segundo Geffré, é possível ver nas religiões, mediações derivadas de salvação. “Não se pode isolar os não cristãos das tradições religiosas a que pertencem. E apesar de suas imperfeições, as religiões constituem possibilidades existenciais que podem favorecer a abertura ao mistério da salvação.”405 Olhando para a história, não podemos fechar os olhos

para o fato do pluralismo permitido por Deus. A partir de um otimismo teológico, é possível perceber nas religiões “objetivações da vontade universal de salvação de Deus”406 na

multiplicidade das suas manifestações. O desígnio de Deus está presente e atuante nas religiões do mundo, “através de caminhos só conhecidos por Deus”407, suscitando no coração

das pessoas experiências autênticas e irredutíveis do mistério divino, as quais não podem ser simplesmente ignoradas ou injustamente assimiladas.

No passado, dizia-se que é apesar de sua pertença a esta ou aquela religião que as pessoas podem ser salvas, e pensava-se que a religião como obra humana era antes um obstáculo ao encontro com Deus. [...] Parece legítimo afirmar que toda religião, mesmo rudimentar, oferece uma abertura a uma alteridade, uma abertura que traz um acréscimo de humanidade e favorece uma abertura ao outro, e que vai ao encontro do que nós confessamos em Jesus Cristo, como verdade da relação com Deus e de nossa relação com os outros.408

O Espírito Santo age misteriosamente no coração de cada pessoa que busca uma experiência religiosa autêntica. Assim entendido, “é na prática de suas próprias tradições religiosas que os membros das outras religiões respondem positivamente à oferta de salvação

404 TEIXEIRA, Faustino. op. cit., p. 57-58. 405 GEFFRÉ, Claude. Crer e interpretar, p. 156. 406 Id. loc. cit.

407 Id. Ibid., p. 157. 408 Id. Ibid., p. 158.

de Deus.”409 Consciente das ambiguidades presentes nas religiões do mundo, mas, a partir de

um discernimento crítico, percebendo-as como possíveis mediações salvíficas, Dupuis afirma que muitas pessoas serão salvas, não apesar de pertencerem a determinada tradição religiosa, mas ordinariamente nela e através dela. “Toda forma religiosa que favorece a descentralização do homem em prol de um maior do que si mesmo e em prol do outro constitui um germe em relação com o mistério da salvação.”410 A pessoa autenticamente religiosa passa pela

experiência da desapropriação, da “disponibilidade radical em relação ao outro”411, o que pode

coincidir com a graça da justificação. Podemos elencar alguns elementos que favorecem a busca do verdadeiro Deus, na ordem do conhecimento (escrituras sagradas), na ordem do culto (ritos, sacrifícios, práticas ascéticas) e na ordem ética (esquecimento de si, justiça, compaixão, serviço fraterno, hospitalidade). Tudo isso colabora na disseminação de valores que edificam o Reino de Deus.

A comunhão com o Deus uno e trino é a meta última para a qual tendem, na providência divina, os seres humanos, através dos vários itinerários religiosos de que são devotos. [...] “Vários rios que correm para o mesmo oceano”μ esta e outras expressões parecidas serviram muitas vezes de slogan para uma teologia pluralista das religiões. [...] Assim como vários rios correm para o mesmo oceano, do mesmo modo as diversas religiões se dirigem para o mesmo mistério divino. Os caminhos são diferentes, mas o fim último é comum a todas elas. [...] Quanto a nós, a locução “vários caminhos para uma meta comum” é usada na convicção de que a meta última querida por Deus para toda vida humana é a união pessoal com ele como se revelou em Jesus Cristo. Apesar disso, as várias tradições religiosas representam diversos caminhos que conduzem, embora de maneiras diferentes, a essa meta comum.412

A plenitude do Reino de Deus está presente potencialmente no interior da dinâmica histórica. A cristianidade e a santidade dos valores do Reino não ficam comprometidas pela secularidade inerente à natureza de sua manifestação intra-mundana. Toda a humanidade, cristãos ou não cristãos, está sob o influxo divino, e por isso mesmo, “os membros das outras religiões, que respondem ao apelo de Deus em função das luzes de sua consciência, são membros do Reino de Deus já presente como realidade histórica.”413 A construção do Reino

de Deus é uma tarefa ampla e engloba a todos aqueles que estão em conformidade com o desígnio divino para a humanidade. “Pode-se, portanto, fazer parte do Reino de Deus sem fazer parte da Igreja e sem passar pela sua mediação”414, mesmo que a Igreja seja sacramento

do Reino. Todos aqueles que trabalham sinceramente pela paz, pela justiça, pela liberdade e pela fraternidade, contribuem para o advento misterioso da realidade do Reino de Deus na

409 Id. De Babel à Pentecostes, p. 77. 410 Id. Ibid., p. 78.

411 Id. Crer e interpretar, p. 161. 412 DUPUIS, Jacques. op. cit., p. 432.

413 GEFFRÉ, Claude. De Babel à Pentecostes, p. 79. 414 Id. loc. cit.

história. Na medida em que os membros das diversas religiões se entenderem como parceiros na edificação do Reino divino, compreenderão que “a missão implica um diálogo em que cada um dá e recebe ao mesmo tempo,”415 ocorrendo mútuo enriquecimento entre os interlocutores.