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2 O PLURALISMO RELIGIOSO COMO PARADIGMA NA HERMENÊUTICA TEOLÓGICA DA REVELAÇÃO

2.4 A TEOLOGIA DAS RELIGIÕES APÓS A NOSTRA AETATE

2.4.1 Para uma teologia do pluralismo religioso

Na era da tolerância e do respeito pela liberdade de consciência, é possível ter uma visão mais positiva da possibilidade de salvação nas outras religiões, superando a concepção teológica da ignorância invencível ou não culpável dos não cristãos que não conhecem a doutrina sobre Deus e sobre Jesus Cristo. É possível ver nas religiões, respostas concretas aos questionamentos existenciais que emergem no coração das pessoas de todos os tempos, nas mais variadas culturas. Segundo a Nostra Aetate, as religiões se esforçam “por responder, de vários modos, à inquietação do coração humano, propondo caminhos, isto é, doutrinas e preceitos de vida, como também ritos sagrados” (NA 2). As religiões dos diversos povos do planeta são uma expressão da sensibilidade humana para as questões da vida e da transcendência365.

A Igreja católica não rejeita nada que seja verdadeiro e santo nestas religiões. Considera com sincero respeito esses modos de agir e viver, esses preceitos e doutrinas, que, embora em muitos pontos difiram do que ela mesma crê e propõe, não raro refletem um raio daquela Verdade que ilumina todos os homens. [...] A Igreja exorta os seus filhos a que, com prudência e caridade, por meio do diálogo e da colaboração com os membros das outras religiões, e sempre dando testemunho da fé e da vida cristã, reconheçam, conservem e façam progredir os bens espirituais, morais e os valores socioculturais que nelas se encontram (NA 2).

A declaração Nostra Aetate do Concílio Vaticano II propõe uma ética do diálogo entre as diversas religiões a partir da doutrina patrística das sementes do Verbo, apesar de ainda não ter formulado sistematicamente uma teologia das religiões. Há alguns anos, vários teólogos

363 GOMES, Tiago de Fraga. A eclesiologia conciliar na América Latina, p. 15-16. 364 GEFFRÉ, Claude. op. cit., p. 43.

365 De acordo com Dupuis, “a declaração Nostra Aetate coloca o encontro da Igreja com as religiões mundiais

dentro do contexto mais amplo da origem e do destino comum de todas as pessoas em Deus e da tentativa, comum a todas as tradições religiosas, de dar uma resposta às questões últimas que atormentam o espírito humano. [...] O juízo doutrinal do Concílio sobre as religiões [...] soa positivo, seu teor ainda é de certo modo vago.” (DUPUIS, Jacques. op. cit., p. 231).

pretendem ultrapassar uma teologia da salvação dos infiéis em virtude do “desafio colocado à fé cristã pela pluralidade das tradições religiosas consideradas na sua positividade histórica.”366 A tendência mais comum no fazer teológico atual é explorar a questão do

pluralismo religioso e o seu significado efetivo dentro da economia da salvação.

Antes do Concílio Vaticano II, a teologia das religiões em vigor era a chamada

teologia do acabamento, que considerava as outras religiões como preparações evangélicas do

cristianismo, entendido como a única religião revelada detentora da verdade plena. Fazendo uma analogia com a dialética hegeliana, havia uma ideia de um cristianismo concebido como religião absoluta. De acordo com essa visão, os não cristãos seriam ordenados a uma participação de fato no povo de Deus. Karl Rahner, nos anos 1960, desenvolve a teoria dos

cristãos anônimos, seguindo a mesma lógica da teologia do acabamento, refletindo sobre a

orientação existencial do ser humano ao absoluto sobrenatural, tendo compreendida na fé explícita em Cristo, uma possibilidade de cumprimento implícito e anônimo que se concretiza na vida correta e na prática religiosa sincera dos homens e mulheres de boa vontade, os quais são sinais relativos da plenitude da graça salvífica. De acordo com essa concepção, as religiões são “uma forma de opção anônima por Cristo, condicionada pela pré-ordenação fundamental de todo homem ao absoluto.”367 Seguindo essa linha de raciocínio, a missão da

Igreja consiste em explicitar o que está implícito, a fim de alcançar a integralidade da verdade. A tese dos cristãos anônimos foi objeto de inúmeras críticas da parte de teólogos tão diferentes como Hans Küng e o futuro Bento XVI. Acusavam-no de proceder a partir de uma visão abstrata e otimista demais das religiões. [...] É de se perguntar se Rahner não sacrifica demais o privilégio único da revelação judeu-cristã como revelação histórica, na sua diferença com o que ele considera como a revelação

transcendental, a saber, a comunicação da graça que Deus faz a todo ser humano.

Essas críticas têm seu peso e são retomadas por numerosos teólogos que denunciam naturalmente um secreto imperialismo, como se todos os membros das religiões do mundo, que levam uma vida correta segundo os imperativos de sua própria tradição religiosa, fossem já cristãos sem o saber. É uma censura que tem sido frequentemente expressa, especialmente por teólogos indianos. Mas é bom observar que Rahner não fez mais do que levar às suas últimas consequências o que já está inscrito na própria lógica da teologia do acabamento. [...] O que não é levado suficientemente a sério é a alteridade das outras religiões na sua diferença irredutível.368

Nos últimos anos, no interior do catolicismo, a corrente teológica dominante tem desenvolvido um cristocentrismo constitutivo cujo paradigma fundamental repousa em um pluralismo inclusivo, buscando superar os resquícios de uma teologia do acabamento, para reconhecer os valores genuínos presentes nas outras tradições religiosas. A pesar de o Concílio Vaticano II ter pronunciado um juízo positivo a respeito dos valores salutares

366 GEFFRÉ, Claude. op. cit., p. 45. 367 Id. Ibid., p. 47.

presentes nas religiões não cristãs, não chegou a considerá-las propriamente como vias de salvação em um contexto religioso pluralista. “É justamente a tarefa de uma teologia de orientação hermenêutica, que parte da nova experiência histórica da Igreja, buscar reinterpretar nossa visão do plano de salvação de Deus.”369 Teólogos tais como Edward

Schillebeeckx e Jacques Dupuis, se questionaram seriamente sobre o enigma do pluralismo religioso dentro do desígnio de Deus, se de fato o mesmo não pode ser visto como um pluralismo de princípio ou de direito. Essa é uma questão de grande fecundidade teológica que pretende ampliar o nosso conceito linear de história da salvação, para buscar uma economia histórico-ontológica do mistério, cujo ponto de partida é o mistério de Cristo concebido como a plenitude dos tempos.