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Passagem do modelo dogmático para o modelo hermenêutico

1.2 A TEOLOGIA COMO CIÊNCIA HERMENÊUTICA

1.2.2 Passagem do modelo dogmático para o modelo hermenêutico

Segundo Geffré, a hermenêutica não é apenas uma nova disciplina dentro da ciência teológica. “É toda a teologia dogmática que tende a se compreender como hermenêutica da

174 RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa: tomo 1. Trad. Constança Marcondes Cesar. Campinas: Papirus, 1994.

Id. Tempo e narrativa: tomo 2. Trad. Marina Appenzeller. Campinas: Papirus, 1995. Id. Tempo e narrativa:

tomo 3. Trad. Roberto Leal Ferreira. Campinas: Papirus, 1997.

175 GEFFRÉ, Claude. op. cit., p. 58. 176 Id. Ibid., p. 60.

Palavra de Deus.”178 No entanto, os termos “dogmática” e “hermenêutica” tornaram-se

sinônimo de duas tendências opostas, ou se poderia dizer, dois paradigmas teológicos. O paradigma dogmático pejorativamente equivale à pretensão de apresentar de maneira autoritária as verdades da fé, sem preocupação com a verificação crítica. Já o paradigma hermenêutico evoca o movimento de pensamento teológico que põe em uma relação viva o passado e o presente, expondo-se ao risco de uma nova interpretação do cristianismo para hoje, levando “a uma concepção não-autoritária da autoridade, a uma concepção não- tradicional da tradição e a uma noção plural da verdade cristã.”179 A teologia hermenêutica nos

ajuda a valorizar a verdade cristã em sua originalidade e atualidade.

A teologia como fenômeno de escritura é sempre reescritura a partir de escrituras anteriores, cuja tarefa consiste em comunicar com eficácia a linguagem já constituída da revelação em cada época histórica. “Não podemos contentar-nos com repeti-la passivamente. Ela deve ser, sem cessar, reatualizada de maneira viva, em função de situação histórica nova e em diálogo com os recursos inéditos de dada cultura.”180 A teologia conheceu desde sua

origem vários modelos de escritura, como por exemplo a alegoria patrística, o modelo científico-aristotélico medieval, o comentário bíblico da Reforma e o modelo dogmático de Trento ao Vaticano II. O modelo dogmático clássico da manualística181 se caracterizava por

um movimento em três tempos: 1) Enunciado de uma tese de fé; 2) A explicação contendo decisões oficiais do magistério; 3) A prova com a citação da Escritura, dos Padres e de alguns teólogos. O ensinamento magisterial selecionava e excluía as opiniões contrárias. Nesse sentido, “a teologia dogmática se definia como um comentário fiel do dogma, isto é, do que a Igreja sempre compreendera e ensinara; e a Escritura entrava apenas a título de prova do que já estava estabelecido.”182 Nesse sistema teológico autoritário, a autoridade do magistério

substituía a autoridade da Escritura. No modelo dogmático de teologia a instituição hierárquica tem um importante papel na produção da verdade.

A questão é saber se a função da teologia consiste somente em reproduzir, legitimando-o, o ensinamento oficial da instância hierárquica como instância da ortodoxia ou se ela tem também, por vocação, uma função crítica e mesmo profética

178 Id. Como fazer teologia hoje, p. 63. 179 Id. Ibid., p. 63-64.

180 Id. Ibid., p. 65.

181 “A teologia dos manuais não era suficientemente sensível ao movimento da história, ao caráter interpessoal

da revelação e da fé. Sua atenção centrava-se mais no lado objetivo da revelação do que na própria ação reveladora. Preocupava-se mais com a doutrina a ser conservada do que com o tesouro que devemos fazer frutificar. A liberdade de investigação era severamente controlada pelo Santo Ofício. É característico, a este propósito, o debate que envolveu a ‘nova teologia’, debate que se desenvolveu em meio a suspeitas, denúncias, suspensões do ensino.” (LATOURELLE, René; FISICHELLA, Rino. Dicionário de teologia fundamental, p. 835).

em relação àqueles que detêm o poder de definir e interpretar. Em outros termos, o perigo para uma teologia segundo o modelo “dogmático” é que a relação com a verdade da mensagem seja determinada pela relação com a instituição hierárquica. Nesse caso a teologia corre o risco de se degradar em ideologia a serviço do poder dominante na Igreja. Como acontece em toda sociedade religiosa, a autoridade hierárquica muitas vezes é tentada a pedir à teologia que reproduza o discurso que legitima o monopólio que ela detém como única intérprete autêntica, rejeitando como marginais ou desviantes os discursos inovadores.183

Segundo Geffré, o modelo dogmático de escritura teológica cedeu lugar para o modelo

hermenêutico, o qual leva a sério a historicidade de toda a verdade184, atualizando para hoje o

sentido da mensagem cristã. Os traços mais característicos da teologia segundo o modelo hermenêutico são: 1) A teologia é reescritura; 2) A teologia é fidelidade criativa; 3) A teologia busca a significação atual da Palavra de Deus; 4) A teologia busca uma nova inteligência da fé. “O ponto de partida da teologia como hermenêutica não é um conjunto de proposições imutáveis de fé, mas a pluralidade das escrituras compreendidas dentro do campo hermenêutico aberto pelo evento Jesus Cristo.”185 A Escritura, enquanto testemunho colocado

por escrito, é um ato de interpretação que suscitou novas escrituras como atos de interpretação que testemunham, sob a inspiração do Espírito, a experiência cristã fundamental em um novo contexto histórico. “A teologia como hermenêutica é, pois, sempre fenômeno de reescritura a partir de escrituras anteriores.”186 A teologia é um novo ato de interpretação do

evento Cristo baseado em uma correlação crítica entre a experiência cristã fundamental tradicional e a experiência humana atual.

O intellectus fidei da teologia enquanto hermenêutica não é ato da razão especulativa no sentido clássico do pensamento metafísico. Ele pode ser identificado com um “compreender histórico”, sendo aí a compreensão do passado inseparável de interpretação de si e de atualização criativa voltada para o futuro. A escritura teológica, segundo o modelo “hermenêutico”, é anamnese, no sentido em que é sempre precedida pelo evento fundador, mas é também profecia, no sentido em que só pode atualizar o evento fundador como evento contemporâneo, produzindo um novo texto e novas figuras históricas. Assim, a teologia, como dimensão constitutiva da tradição, é necessariamente fidelidade criativa. [...] A teologia segundo o modelo hermenêutico [...] procura manifestar a significação sempre atual da Palavra de Deus [...] em função das novas experiências históricas da Igreja e do homem de hoje. [...] Ela trata sempre com “objetos textuais”, procurando decifrar seu sentido para hoje e procedendo, a partir deles, a uma nova escritura.187

A teologia enquanto hermenêutica, partindo da Escritura e da tradição, procura uma

nova inteligência da mensagem cristã. Embora a Escritura seja a norma normans non normata

em relação às novas escrituras posteriores suscitadas no âmbito eclesial, a Escritura e o dogma

183 Id. Ibid., p. 67.

184 “Todo conhecimento da verdade inscreve-se na história. Essa historicidade pode ser compreendida em sentido

positivo, como qualidade de abertura e de inacabamento e, portanto, como tarefa atribuída à razão humana de aprofundar constantemente sua percepção da verdade.” (LACOSTE, Jean-Yves. op. cit., p. 572).

185 GEFFRÉ, Claude. op. cit., p. 68. 186 Id. loc. cit.

são testemunhas da plenitude escatológica da Palavra de Deus. A teologia segundo o modelo dogmático edificava um sistema no qual a autoridade do magistério era praticamente maior que a da Escritura. A reinterpretação dos enunciados dogmáticos a partir de um conhecimento mais aprofundado do contexto histórico que foi ocasião de sua formulação, tendo em vista a leitura atual da Escritura em consonância com os resultados da exegese moderna, fez desmoronar o muro de contenção que encerrava a teologia em um modelo dogmático como um sistema fechado, autoritário e auto-suficiente.

Após o Concílio Vaticano II, a teologia aceitou dialogar com um mundo caracterizado por uma pluralidade de opções, de valores e de ideologias. Há uma consciência mais aprofundada da relatividade da civilização ocidental e do próprio cristianismo como religião histórica. A teologia atual leva em consideração um pluralismo insuperável, compreendendo que nenhum sistema pode pretender abarcar a totalidade da experiência humana. “A teologia de tipo hermenêutico é necessariamente plural, porque quer ser inseparavelmente hermenêutica da Palavra de Deus e hermenêutica da experiência histórica dos homens.”188 A

circularidade entre a interpretação dos textos fundadores do cristianismo e a experiência cristã atual, faz emergir uma nova interpretação da mensagem cristã. O pluralismo teológico e confessional, como expressão da catolicidade eclesial, convida a teologia a repensar o estatuto

da verdade cristã, doravante não mais compreendida como um saber metafísico pronto e

acabado que unicamente deve ser transmitido, desconhecendo a historicidade radical de toda verdade, inclusive da verdade revelada. A verdade compreendida como metafísica anula toda diferença e alteridade, pensando a tradição não como uma produção sempre nova, mas como a reprodução de um passado morto. A verdade teológica é plenamente histórica, pois interpreta o sentido de sua genealogia a partir da experiência hodierna. As origens são ditas a partir do presente, através de uma interpretação criativa e de uma prática concreta.

A teologia, enquanto escritura hermenêutica, busca superar a postura violenta do discurso totalizador da verdade, procurando “criar novas interpretações do cristianismo e favorecer práticas cristãs significantes”189 para responder aos apelos emergentes das situações,

conforme os tempos e os lugares, evitando a tentação de hipostasiar formas contingentes e de conferir o selo de eterno a figuras históricas específicas. “O mundo se define pela contingência, o homem pela falta. [...] O deus do projeto especulativo não seria então mais que a projeção da megalomania do desejo do homem, que não consente em sua finitude.”190

188 Id. Ibid., p. 72. 189 Id. Ibid., p. 78. 190 Id. Ibid., p. 79.

Há uma cumplicidade entre o desejo do pensamento metafísico absoluto e a tendência dogmatista da fé cristã, que culmina com a pretensão patológica do catolicismo à infalibilidade191, como uma necessidade arcaica de certeza. A intolerância em relação ao

pluralismo é sinal de insegurança diante de qualquer coisa que ameace ruir o sistema fechado das verdades dogmáticas imutáveis. “A teologia entendida como hermenêutica respeita mais a originalidade da verdade que nos foi confiada na revelação cristã.”192 A teologia só é fiel ao

seu estatuto epistemológico quando se compreende como “um caminho sempre inacabado para uma verdade mais plena”193, pois se refere à realidade do mistério de Deus a partir de

significantes inadequados.

A teologia como hermenêutica não renuncia a uma lógica rigorosa das verdades de fé, mas tem consciência do limite constitutivo de sua linguagem em relação a um ideal de sistematização conceitual. [...] A teologia tem como ponto de partida, contudo, uma objetividade histórica: os eventos fundadores do cristianismo. Por isso, um dos critérios de verificação do trabalho teológico consiste justamente em confrontar as novas expressões da fé com a linguagem inicial da revelação referente a esses eventos fundadores e com as diversas linguagens interpretativas que se encontram na tradição. A teologia enquanto nova escritura, na base de confrontação incessante entre escrituras anteriores, é dirigida pela natureza da verdade pela qual ela é responsável. [...] O objeto do conhecimento teológico não é um conjunto de verdades conceituais, mas um mistério, o ato mesmo pelo qual Deus se deu a conhecer aos homens. Dessa verdade divina em ato de automanifestação, Jesus é a testemunha insuperável. O testemunho de Jesus se traduziu em enunciados de fé; sobre eles trabalha o teólogo.194

Apesar de que a linguagem teológica seja especulativa, ela se refere a um engajamento depende do testemunho, pois não diz respeito a verdades verificáveis. A verdade teológica é mediada, testemunhada, interpretada, confessada e celebrada, tem uma dimensão doxológica, embora se concretize em uma práxis, pois não cessa de advir ao coração do mundo, tendendo a se encarnar em novas figuras históricas e em atitudes significantes para a Igreja e para a sociedade. A teologia só atinge a verdade dos enunciados de fé pela via da história e da interpretação. Há múltiplas possibilidades de interpretação, sendo impossível sacralizar uma verdade absoluta em um texto. Na linha de Habermas, o progresso na verdade se faz mediante o mútuo reconhecimento dos vários sujeitos que testemunham uma verdade que é em si inacessível. Sendo assim, “a verdade é o resultado de processo intersubjetivo de consenso”195,

através da argumentação, sem violência. “Somos convidados a repensar como poderá ser uma

191 “O carisma da infalibilidade, segundo a doutrina católica romana, é concedido à Igreja: compete igualmente

ao corpo episcopal quando exerce o magistério supremo conjuntamente com o sucessor de Pedro (LG 12,25). A doutrina católica da infalibilidade sublinha que as verdades reveladas permanecem inalteradas na proclamação da Igreja. Essa qualidade fica porém subordinada a condições históricas dadas e à natureza analógica de todos os enunciados teológicos. Por isso é que mesmo as decisões doutrinais infalíveis não podem exprimir toda a verdade do objeto sobrenatural da fé.” (LACOSTE, Jean-Yves. op. cit., p. 894).

192 GEFFRÉ, Claude. op. cit., p. 80. 193 Id. loc. cit.

194 Id. Ibid., p. 81-82. 195 Id. Ibid., p. 86.

unidade plural da verdade cristã que não comprometa a unanimidade na fé.”196 O campo

hermenêutico, o espaço da verdade, para o teólogo é a comunidade eclesial, lugar da unidade multiforme da fé no tempo e no espaço.