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4.1 Famílias e filhos Left Behind: Remessas, dinâmicas do

empoderamento/desempoderamento e os dilemas da maternidade à distância

Conheci Valéria em janeiro de 2011. Na igreja Santa Maria della Luce em Trastevere (SMLT) em 13/02/2011, nós tivemos a oportunidade de dialogar com calma. Ela contou que chegou a Roma pela primeira vez em 1994 a convite de uma amiga da cidade de São Paulo que havia lhe dito que era possível uma mulher como ela enriquecer “cuidando de velhos” na Itália. Logo após começar a trabalhar, Valéria percebeu que apesar da remuneração não ser a que esperava, nunca tinha ganhado tanto e nem iria ganhar aquela quantia no Brasil e por isso, decidiu ficar na Itália e só voltou ao Brasil em 2001. Valéria nasceu no estado de Goiás em 1962 e depois de perceber que não conseguiria nenhum emprego no Brasil que lhe pagasse ao menos metade do que ganhava na Itália, ela optou por regressar a Roma em 2003 e mora na capital italiana desde aquele ano. Desde que retornou, Valéria trabalha como badante para M., um senhor de 78 anos que ela conheceu através do contato de uma amiga brasileira que lhe ajudou em sua primeira temporada italiana174. Além de ser casada com um italiano, esta amiga, segundo Valéria, “vive bem em Roma”, conhece “meio mundo de gente na cidade” e costuma arrumar vagas como colfs, badantes e babás para outras imigrantes latino-americanas em troca de receber os dois primeiros salários dessas suas “ajudadas”.

Até 2008, Valéria trabalhava de maneira “part-time” para M. e recebia 650 euros ao mês, mas desde que este senhor ficou viúvo naquele ano, os dois filhos dele (que vivem na Alemanha) pediram para Valéria morar com ele (no intuito de não deixá-lo sozinho em casa) e ela aceitou. Valéria comentou que a principal razão para ter tomado esta atitude “que vai contra a corrente” (já que atualmente a maioria das badantes estrangeiras faz o caminho inverso, ou seja, tentam deixar de trabalhar “24 horas ao dia”

174 Até 2006, Valéria trabalhava de maneira irregular para este senhor. Sua situação laboral foi

regularizada após ela ter se formado no curso de formação para badantes que é oferecido pela igreja SMLT. Valéria comentou que após exibir este diploma, os filhos e a então esposa deste senhor decidiram “assinar a sua carteira”. Com este contrato de trabalho, Valéria pôde deixar de morar em uma coabitação e alugar um quarto só pra ela na periferia de Roma, onde ficou até 2008, quando passou a morar com o senhor de quem cuida até hoje.

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e procuram atuar de maneira part-time) foi financeira; pois agora, morando com M. e ficando a disposição dele durante todo o dia, a sua remuneração aumentou para 900 euros ao mês e com essa quantia, ela comentou que consegue “viver direitinho na Itália”, ajudar alguns parentes no Brasil e principalmente “colocar todo mês uma grana na poupança” para no futuro realizar o seu grande sonho: voltar ao Brasil com dinheiro suficiente para “comprar uma casinha” e nunca mais ter que “morar de favor na casa de ninguém”. Comentando sobre as dificuldades que teve na sua trajetória como imigrante, Valéria fez um desabafo:

Eu sempre fui muito, muito humilhada por gente da minha família, cê não faz ideia. Eu passei a maior parte da vida na casa de uma irmã ou de uma tia que eu tenho lá e os filhos dela, os maridos dela tudo soltava graçinha direto pra mim, porque eu não me casei, porque não tive filho, porque eu não tinha vida própria, vivia em torno dos outros. O pior é que eu não podia dizer nem um ai. [...] É por isso que eu digo pra todo mundo que me pergunta: aqui é uma merda, tem dia que eu acordo e não consigo nem me olhar no espelho, sabe por quê? Por que eu me sinto suja. Pra mim ter que cuidar daquele homem como se ele fosse meu marido, meu filho, a porra toda é quase que uma prostituição. Eu me sinto vendendo meu suor e minha alma. O que me salva é vir aqui, falar com o pessoal, rezar pra minha Nossa Senhora de Aparecida e saber que tô juntando dinheiro que eu nunca ia juntar dignamente lá no Brasil. Por que cê sabe, né, fazendo a conversão eu só ia ganhar lá o tanto que ganho aqui se eu vendesse pó, porque nem rodar a bolsinha seu que quisesse eu podia. Foi por isso que eu voltei pra cá em 2003, é um carma que eu tinha que vir terminar de pagar.

Valéria comentou que se sente privilegiada por não ter filhos, pois outras colegas suas, badantes brasileiras, sofrem ainda mais que ela por terem que trabalhar na Itália enquanto seus filhos ficaram no Brasil. Como vimos anteriormente, Denise disse que sente frustrada por ter que cuidar de crianças e avós de outras pessoas na Itália enquanto seus próprios avós e filhos no Brasil precisam de atenção e são cuidados por outras pessoas. No caso específico dela, um dado a ser acrescentado é que o dinheiro que Denise enviava regularmente à sua mãe para que ela cuidasse de dois dos seus três filhos175 – um casal de gêmeos nascido em 1999 – era em parte utilizado para pagar M., uma empregada doméstica que além de limpar e arrumar a casa da mãe de Denise no Rio de Janeiro diariamente, “dava uma olhada” e cuidava das refeições destes dois

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filhos de Denise, pois sua mãe (avó destas crianças) trabalha como costureira fora de casa. Denise comentou que apesar de às vezes sentir ciúmes de M., reconhece que ela gosta dos seus filhos e cuida bem deles, tanto que eles falam de M. como se ela já fizesse parte da família. Esse quadro parece revelar uma das facetas da problemática da maternidade à distância que é desenvolvida por muitas mulheres imigrantes na atualidade: a maternidade transnacional compartilhada (De Tona, 2011: 109-110).

A respeito de fenômenos como este, que envolve interconexões transnacionais de cuidado e de afeto que ligam as vidas de mulheres imigrantes a partir da Europa com seus respectivos países de origem, Wendy Pojmann (2011) sugere que eles geram uma transferência de afeto e de sentimentos Norte-Sul/Leste-Oeste que não entra no cálculo dos salários e dos orçamentos domésticos, mas que produzem consequências de caráter econômico e emocional que podem, em casos como o da realidade de estrangeiras no território italiano, colaborar na perpetuação de comportamentos que envolvem a exploração (ou ao menos ajudam na manutenção de papéis tradicionais de gênero) de mulheres por outras mulheres. Este ponto fica explícito nas contradições apresentadas por Pojmann em seu capítulo “Mothering across Boundaries” que integra a já citada coletânea organizada por Loretta Baldassar e Donna Gabaccia.

Segundo Pojmann, durante a década de 1970, muitas mulheres italianas adotaram uma consciência feminista e ingressaram no mercado de trabalho fora de casa, o problema é que elas fizeram isso à custa de uma nova fonte de trabalho doméstico – mulheres imigrantes (inicialmente filipinas e cabo-verdianas em sua maioria) o que fez com que este segmento fosse desde aquela época até os dias atuais, a principal fonte de emprego para trabalhadoras estrangeiras na Itália. Dessa forma, Jacqueline Andall e Victoria Chell (apud Pojmann, 2011) argumentam que a dependência sobre o trabalho doméstico imigrante simplesmente transferiu o encargo das tarefas domésticas para uma classe menos privilegiada de mulheres e por isso, o trabalho fora de casa destas mulheres italianas falhou em não superar os papéis tradicionais de gênero que permaneceram dentro dos lares.

Wendy Pojmann (2011) lembra que no início deste processo, mulheres do sul da Itália foram contratadas por diversas famílias do centro e do norte do país para “substituir” as mulheres que começaram a trabalhar fora de casa, mas paulatinamente o

175 Um destes três filhos de Denise é uma mulher adulta que mora com seu namorado, fora da casa