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Saúde e interculturalidade: Os dilemas que envolvem ser e cuidar de pacientes “heteroculturais”

AS ESTRATÉGIAS “BRASUCAS” ENVOLVENDO GÊNERO, SAÚDE E INTERCULTURALIDADE

3.4 Saúde e interculturalidade: Os dilemas que envolvem ser e cuidar de pacientes “heteroculturais”

Como já foi exposto, Denise contou que procurou ajuda psicoterápica em um centro romano de assistência sanitária para imigrantes (por conta dos problemas que desenvolveu e acentuou em decorrência das pressões psicológicas de seu trabalho como

percepção esta que descobre, além das nuances e intimidades da vida doméstica inglesa, o cerne dos conflitos familiares.

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badante), mas não ficou satisfeita com os resultados do tratamento e acredita que isso aconteceu devido às “distâncias culturais” entre imigrantes extracomunitários como ela e os/as médicos/as, enfermeiros/as e outros/as funcionários/as da saúde pública italiana em geral. Segundo Denise, com exceção dos funcionários do Poliambulatório da Caritas162, as pessoas que trabalham em hospitais e ambulatórios especializados em cuidar dos imigrantes (principalmente aquelas que atuam nos setores de ajuda psicoterápica e psicológica) tentam, mas na maior parte dos casos não conseguem “escutar de verdade” mulheres imigrantes como ela, no sentido de que tais pessoas encontram muitas dificuldades para compartilhar as “visões de mundo”, ou seja, os códigos culturais dos imigrantes que procuram assistência sanitária.

Com base na convivência com outras mulheres imigrantes extracomunitárias em geral e brasileiras em particular, foi possível perceber que esta opinião de Denise se assemelha às opiniões de outras mulheres que assim como ela trabalham como badantes, desenvolveram ou acentuaram problemas psicológicos já existentes como stress, depressão, claustrofobia e síndrome do pânico, procuraram ajuda especializada, mas não ficaram satisfeitas com o serviço que lhes foram oferecidos nos ambulatórios e centros de assistência sanitária para imigrantes na cidade de Roma. Denise e outras sete mulheres (quatro romenas e três brasileiras) fizeram referência ao Poliambulatório da Caritas como uma boa exceção, um local onde seus problemas foram não só “escutados”, mas também “entendidos”. Este quadro me pareceu instigante porque assim como neste Poliambulatório, nos outros ambulatórios e centros de assistência que foram citados, existe a presença de “mediadores culturais”, funcionários italianos ou estrangeiros cuja função é atuar como “pontes” entre os pacientes imigrantes e a esferas da saúde. O que haveria de diferente no Poliambulatório da Caritas? Porque a sua mediação cultural era considerada eficiente e as demais não eram?

Para tentar responder a estas perguntas e compreender melhor este problema, realizei pesquisas etnográficas no Poliambulatório da Caritas e em dois centros públicos de saúde para imigrantes163 que oferecem serviços de assistência psicológica e que foram

citados pelas interlocutoras. O Poliambulatório da Caritas oferece serviços médicos

162 Este Poliambulatório se encontra em Via Marsala 97, do lado de Roma Termini, a principal

estação ferroviária do país. Além dos serviços de clínica geral, doze especialidades médicas, entre elas a psicologia e a psiquiatria. A Caritas é o organismo pastoral da CEI (Conferência Episcopal Italiana) responsável pela promoção da caridade, ou seja, trata-se de um organismo diretamente ligado à Igreja Católica Romana. Todas as pessoas que atuam neste local ou que fazem estágios (médicos, mediadores culturais, farmacêuticos, atendentes e recepcionistas) realizam lá trabalhos voluntários.

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gratuitos à população estrangeira imigrante (atendendo inclusive aos irregulares ou indocumentados) e ali havia, durante as minhas pesquisas de campo, doze mediadores culturais164 (cinco para os pacientes chineses e sete para pacientes que tem como língua

nativa ou que são mais familiarizados com outros idiomas como o árabe, o francês, o romeno, o inglês, o castelhano e o português) e por isso, desde o início deste século, se tornou uma referência importante para os imigrantes de diversas nacionalidades que vivem em Roma. Quatro interlocutores brasileiros (dois homens que eram tóxico-dependentes e duas transexuais MTF que trabalham como prostitutas), por exemplo, disseram que só ali nesse Poliambulatório encontraram um lugar acolhedor para cuidar de suas saúdes.

Seguindo a proposta de Angel Martínez Hernáez (2010) que acentua a importância de refletir sobre os diferentes modelos políticos de promoção da saúde para avaliar o grau de participação social e interculturalidade nos contextos sanitários, foi possível perceber que nos dois citados centros de saúde para imigrantes caracterizados como ineficientes pelas citadas interlocutoras, havia práticas nos serviços de assistência sanitária em geral e psicológica em particular que parecem ser inspiradas pelo que este autor chama de ‘modelo de competência cultural’. Isso porque alguns riscos e deficiências que a prática deste modelo propicia segundo Martínez Hernáez, foram por mim observados no cotidiano de tais centros de saúde. Por exemplo, “a ênfase nas

habilidades dos provedores de saúde em detrimento da análise do sistema sanitário e do cenário social mais amplo”, a tendência de compreender a identidade étnica do paciente “como uma informação da mesma ordem que o diagnóstico”, “a escassa

atenção prestada às condições materiais associadas com a diversidade cultural”, “a

atribuição da [noção de] ‘cultura’ aos que pertencem às minorias étnicas”, “a

excessiva protocolização dos procedimentos” e “a criação de estereótipos culturais

e/ou étnicos que não dão conta da diversidade interna existente em toda cultura” são fatores apontados por Martínez Hernáez (2010: 76-77) e que foram percebidos nestes citados centros.

As observações realizadas durante cinco dias e as conversas informais que tive com três pacientes e dois médicos de ambos os centros de Roma me fornecem subsídios para supor que as acolhidas nas recepções destes centros, as tentativas de mediação cultural pelos funcionários (todos italianos), as relações entre médicos e pacientes e os

164 Destes, sete eram italianos (quatro homens e três mulheres), três eram pessoas de origem

estrangeira e naturalizadas italianas e as outras duas eram jovens descendentes de imigrantes, mas que possuem a cidadania italiana porque tinham o pai ou a mãe italiana.

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diagnósticos e consequentes medicalizações foram, majoritariamente, práticas marcadas pelos citados fatores deste ‘modelo de competência cultural’ proposto por Martínez Hernáez. Um aspecto interessante é que em conversais informais, uma médica e um funcionário destes centros se referiram aos imigrantes como pacientes “heteroculturais”. Quando questionada sobre a utilização deste termo, esta médica disse que era para “amenizar os preconceitos”, já que nos últimos tempos, “imigrante” ou “extracomunitário” tinham se tornaram palavras plenas de sentidos negativos na Itália.

Segundo F., uma paciente romena nascida em 1974 e que conheci em um destes centros, atualmente a Itália vive uma verdadeira “zingarofobia” (fobia dos ciganos) e muitos italianos, equivocadamente, acham que todas as pessoas oriundas da Romênia como ela são zingari (ciganas) e por isso, as discriminam sem exceção. Para ela, que tem necessidade de um mediador cultural para se consultar com os médicos porque ainda não fala fluentemente italiano, as pessoas daquele centro confundem “mediar” (culturalmente) com somente “traduzir” (linguisticamente as palavras) e, além disso, não percebem que a mediação cultural é importante e deve continuar, mas tal processo deveria ser visto como um “primeiro passo” de “uma coisa mais ampla” que inclui uma maior consciência sobre a diversidade dos romenos, das dificuldades que eles encontram para conseguir um trabalho, uma moradia digna e para educar seus filhos; crianças que mesmo tendo nascido na Itália, não são vistas e nem aceitas como cidadãs italianas pela maior parte da população do país.

A brasileira Lúcia nasceu no estado de São Paulo em 1960 e desde 1996, trabalha como badante em Roma. Ela disse que procurou ajuda psicológica, primeiro em um destes dois centros e depois no Poliambulatório da Caritas, para cuidar dos problemas de stress, depressão e síndrome do pânico que desenvolveu, nas suas palavras, por causa do trabalho de cuidar de um idoso romano “muito problemático”. Segundo Lúcia, os médicos e mediadores culturais do Poliambulatório da Caritas são “mais eficientes” porque eles com frequência participam de atividades sociais que envolvem os “extracomunitários” fora dos espaços de saúde, conhecem melhor a realidade dos imigrantes e por isso, possuem uma visão mais ampla sobre o fenômeno migratório – fator que lhes permite dialogar com os imigrantes como ela “em pé de igualdade” (de forma igualitária, simétrica). Lúcia acredita que devido a estes fatores, mulheres e “trans” brasileiras, que comumente sofrem pela forte associação à prostituição, podem ali encontrar atendimento médico sem receios de serem discriminadas ou não entendidas.

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Minhas pesquisas com os imigrantes brasileiros dentro e fora dos hospitais, ambulatórios e centros sanitários romanos e minhas próprias experiências de sociabilidade com outros grupos de imigrantes no território italiano indicam que vários problemas influenciam diretamente na esfera da saúde entre estas pessoas: a pobreza, as situações jurídicas (muitos não procuram assistência médica devido ao fato de que estão irregulares), as dificuldades de comunicação e a exposição a fatores de risco como o fato de ter que viver em habitações precárias, abarrotadas de pessoas e onde é comum a proliferação de doenças como tuberculose e hepatite; habitações estas que muitas vezes se encontram em áreas urbanas degradadas e nas quais existem menos serviços públicos e onde são mais altos os índices de violência e criminalidade. Maurizio Marceca, Salvatore Geraci Ardigo y Martino (2006) comentam que no contexto da imigração na Itália, algumas características étnico- raciais e culturais comuns em muitos grupos de imigrantes muitas vezes promovem processos sociais que discriminam diretamente estes grupos de pessoas e por isso, se transformam em fatores que dificultam o acesso delas aos serviços de saúde em relação à média geral da população italiana.

Segundo as observações que realizei na recepção do Poliambulatório da Caritas de Roma de janeiro a março de 2011, entre os imigrantes que buscam ajuda naquele local, existem problemas de saúde que variam de acordo com o sexo, a idade, o país de origem e a situação econômica – por exemplo, uma alta demanda de pedidos de aborto entre mulheres jovens (especialmente da China, da Nigéria e da Romênia)165, problemas relacionados ao

alcoolismo e à dependência química entre homens pobres e idosos oriundos do leste europeu, stress, depressão e síndrome do pânico entre mulheres das mais diversas nacionalidades que trabalham como badantes, problemas estomacais e respiratórios entre jovens africanos, bengaleses e chineses e problemas neurológicos entre homens e mulheres com mais de 60 anos (em particular o mal de Alzheimer e de Parkinson), entre outros problemas.

165 Aqui é importante destacar que este Poliambulatório não realiza nenhum procedimento cirúrgico,

mas no caso das mulheres que querem abortar, é necessário antes a apresentação de um atestado médico que confirme que a gravidez está dentro do limite aceito pela legislação para que o aborto seja feito legalmente (até os primeiros 90 dias de gestação) e que encaminhe a paciente para a realização do procedimento em algum hospital da cidade – os ginecologistas e clínicos gerais do Poliambulatório podem fornecer este certificado, baseados nos exames clínicos que realizam e nos exames apresentados pela paciente. O aborto ou “l’interruzione volontaria di gravidanza – IVG” (interrupção voluntária da gravidez) é legalizada na Itália desde 1978, quando a lei 194 da constituição do país promulgada em 22 de maio daquele ano permite que qualquer mulher tenha a possibilidade de realizar este procedimento nos hospitais públicos do país caso isso seja da sua vontade e desde que sejam obedecidas as condições acima mencionadas. Antes dessa lei de 1978, a prática do aborto era considerada um crime na Itália e muitas mulheres que não queriam dar continuidade às suas gestações realizavam tal procedimento de forma

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Durante este período de pesquisas, encontrei 19 pessoas nascidas no Brasil naquele local: 17 mulheres, um homem e uma transexual MTF. As rápidas conversas que pude ter com estas pessoas foram suficientes para perceber que as quatro principais razões que as tinham levado para aquele local: acompanhamento ginecológico (sete mulheres), problemas respiratórios (duas mulheres e um homem), problemas psicológicos (três mulheres, todas que trabalham ou que já tinham trabalhado como badantes), preparação para algum tipo de procedimento cirúrgico (cinco mulheres e uma transexual MTF). Um aspecto importante é que falando sobre o atendimento que presta aos imigrantes de uma forma geral, um médico (clínico geral) que dá plantão um dia na semana neste Poliambulatório, me disse em uma conversa informal que a maioria dos casos de stress, depressão, síndrome do pânico, problemas estomacais e enfermidades respiratórias não são doenças que estes imigrantes já tinham em seus países de origem, mas que adquiriram na Itália devido às precárias condições sociais nas quais vivem e trabalham.

Diferente de Roma, em Barcelona não existiam, durante as pesquisas de campo que fiz lá, centros de saúde (hospitais ou ambulatórios) específicos para a população imigrante e todos/as imigrantes brasileiros/as com os quais conversei sobre a esfera da saúde na capital catalã, disseram que quando precisaram, não tiveram dificuldades ou problemas para ser atendido nos hospitais públicos de saúde. Todas estas pessoas estavam empadronadas ou com sua situação migratória regularizada (dupla nacionalidade, visto temporário de trabalho, visto de residência permanente, etc.) no território espanhol e por essa razão, quando precisaram, tiveram acesso aos serviços públicos de saúde. Vale salientar que alguns/mas interlocutores/as comentaram que quando estavam apenas empadronados/as (mas ainda sem algum tipo de visto de residência), relutavam e só procuraram por assistência médica em hospitais de Barcelona e Santa Coloma quando se encontraram em “situações limite” (dores crônicas, gravidez, acidentes de trabalho, etc.), já que temiam serem “descobertos” como “sin papeles” pelas autoridades policiais e, consequentemente, correrem risco de prisão e/ou deportação166.

ilegal em clinicas clandestinas e/ou em locais improvisados e inadequados (o que acarretava sérias consequências e por isso constituía um grave problema de saúde pública).

166 Diversos estudos apontam para uma certa onipresença do “medo” entre os imigrantes apenas

empadronados e sin papeles no território espanhol. Fatores como a exploração laboral, doenças agravadas pela falta de tratamento médico, maiores taxas de suicídio e mortalidade infantil, o “medo da polícia” e a relutância em assumir uma “vida pública” – indo sem receio a lugares como hospitais, participando de associações imigrantes, etc. – são comumente mais encontrados dentre os imigrantes apenas

empadronados, do que entre aqueles que conseguiram os “papéis” para regularizar sua situação migratória (Fuentes y Callejo, 2011; Cavalcanti, 2004; Parella, 2003, 2004, 2009). Sobre a dinâmica construção da noção de “medo” entre imigrantes recém-chegados ao território espanhol em relação às autoridades policiais, ver Daniel Etcheverry (2010, 2011).

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Estes interlocutores comentaram dois pontos: 1) que a saúde na Catalunha era quase que perfeita, já que apenas os tratamentos médicos de algumas especialidades, como a Odontologia e a Fisioterapia, eram cobrados e que atualmente, por conta dos recortes na verba pública destinada à saúde, toda a população – nacionais e imigrantes – só não é obrigada a pagar pelos serviços emergenciais (acidentes graves, estados clínicos com riscos eminentes de morte, etc.) – e 2) que os médicos catalães, majoritariamente, são muito “frios” e que por isso, sempre que possível, preferem se tratar no Brasil. Um interlocutor brasileiro que conhece bem a realidade da área da saúde na cidade de Barcelona e com quem pude conviver durante as pesquisas de campo na Catalunha foi Rafael Oliveira Caiafa. Rafael nasceu em 1980, na cidade de Belo Horizonte e veio para Barcelona junto com sua esposa, a jornalista brasileira Maria Badet, cuja trajetória de vida foi apresentada no segundo capítulo. Este interlocutor é médico radiologista e já veio para Barcelona com seu diploma. Após trabalhar durante alguns meses no serviço de pronto atendimento móvel da Prefeitura de Barcelona, Rafael foi aprovado em um processo seletivo e desde 2011 trabalha no Hospital Clinic, um centro médico privado que é o mais renomado da capital catalã.

Para Rafael Caiafa, a crise econômica e das políticas de bem-estar social de cunho universalista na Catalunha acentuaram bastante os problemas que já faziam parte dos grupos imigrantes – como as dificuldades em estabelecer diálogos com os profissionais da saúde catalães –, com o agravante de que, estas recentes mudanças socioeconômicas e políticas, vêm se refletindo nas subjetividades dos membros destes citados grupos e, com isso, alterando as formas como eles se percebem como pessoas e cidadãos e como se articulam e se mobilizam no intuito de “sobreviver” a estas mudanças sobre as quais possuem pouco controle ou poder de intervenção. O trabalho de Serena Brigidi (2009) sobre políticas de saúde mental e migração latina nas cidades de Barcelona e Gênova corroboram algumas destas opiniões sobre os cenários da saúde na capital catalã e que foram apontadas por Rafael Caiafa. Os interlocutores de Brigidi foram pacientes imigrantes oriundos da América do Sul e profissionais da saúde (médicos, enfermeiros e assistentes sociais que trabalham em hospitais)

Segundo Giovanni Pizza (2005), certos aspectos da teoria de Antonio Gramsci podem fornecer interessantes subsídios para refletirmos sobre a decadência dos regimes de

welfare state de cunho universalista no Sul da Europa e isso ocorre porque tal teoria fornece subsídios para explorar três questões em particular: hegemonia, agência e “transformações da pessoa”. Pizza defende que em Gramsci, existe uma atenção dramática e reflexiva em

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relação a três dimensões relevantes: 1) a experiência corporal do sofrimento, 2) os processos de incorporação (entendidos como a dinâmica de interiorização de critérios socioculturais “de fora” e uma consequente construção de “novas” subjetividades pelos indivíduos) e, simultaneamente, 3) uma “observação comprometida” – que Pizza adjetiva de etnográfica – da microfísica das relações sociais, da hegemonia do Estado e da agência individual e coletiva. Assim, este autor entende que a crítica gramsciana ajuda a antropologia médica contemporânea a enfatizar os aspectos políticos dos processos de incorporação/interiorização que circunscrevem ambientes médico-hospitalares no intuito de questionar a dicotomia saúde-enfermidade e conceber tais processos como sendo, eminentemente, sociopolíticos. Nesse sentido, Pizza reforça que é necessário um esforço maior por parte dos acadêmicos e pesquisadores para tentar concretizar ações que integrem uma metodologia crítica, reflexiva e “auto-objetivante” no próprio campo científico- acadêmico da antropologia médica, já que tal esforço seria imprescindível para refletir adequadamente sobre a agência dos indivíduos-pacientes envolvidos nestes campos de pesquisa.

Em seu texto sobre estratégias que são desenvolvidas por imigrantes para enfrentar os crescentes problemas que acometem os serviços sanitários europeus (em particular dos países do Mediterrâneo), Tullio Seppilli (2006) comenta que para avaliar tais estratégias, devemos levar em conta o fator da “competência cultural”, entendida por ele como a natureza dos processos que integram cada específico horizonte de referência que circunscrevem as relações interculturais, isto é, as atitudes e posturas dos grupos imigrantes e dos cidadãos anfitriões dos países nos quais estes imigrantes vão se estabelecer.

Para Seppilli, países como Itália e Espanha – que receberam grandes fluxos de imigrantes internacionais no final do Século XX e no início do XXI – vêm apresentando inúmeras dificuldades para lidar em termos sanitários com estas populações estrangeiras e um destes principais entraves se configura no fato de que, em tais países, estão criando modelos protocolizados para tratar grupos “étnicos” (imigrantes) que acabam gerando “processos de (in)competência cultural”, já que muitos profissionais de saúde não são devidamente conscientes, no cotidiano dos seus trabalhos em hospitais e ambulatórios, que eles também são sujeitos “culturais” e, portanto, agem a partir dos seus respectivos e dinâmicos horizontes de significados; horizontes estes que em muitos casos, não se abrem ao efetivo diálogo com alguns “outros” (sujeitos culturais) e, consequentemente, à possibilidade de conhecê-los para além dos estereótipos.

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Essa ideia de Seppilli descreve bem a realidade que percebi em alguns centros de saúde romanos e onde, como já comentei, alguns médicos chamam os pacientes estrangeiros de “heteroculturais”. Esta específica classificação, teoricamente usada para “amenizar” os preconceitos em relação ao “ser estrangeiro” na Itália, parece que configura uma atitude que, em termos semânticos, institucionaliza relações hierárquicas e extremamente verticalizadas como as que ocorrem entre médicos e pacientes estrangeiros em diversos hospitais e ambulatórios da capital italiana.

Os problemas de diálogo e mediação intercultural na esfera da saúde aos quais Seppilli se refere acima também ocorrem, de maneiras diferenciadas, no interior de muitos lares italianos devido ao complexo trabalho de cuidado que é feito por mulheres imigrantes;