• Nenhum resultado encontrado

3 O PÃO E A FESTA: A INVENÇÃO DA TRADIÇÃO

4.5 O NOVO LUGAR DA FESTA ALEMÃ

Os artigos que compõem o Dossiê para Registro da Festa Alemã ressaltam a força da tradição revisitada nas músicas, nas festas, nas roupas e por todo evento. Em 15 de junho de 1995, o jornal Tribuna de Minas exibe uma reportagem intitulada “JF desperta para a força de uma cultura adormecida113”. A matéria traz fotos da Festa Alemã, chamando a atenção para os pontos fortes do evento, expressos na culinária – tortas, pães, músicas e na apresentação de grupos folclóricos. Mas, vale enfatizar a inconsistência encontrada em todo o processo que cerca a montagem do Dossiê. A questão observada aqui não se refere somente aos conteúdos dos documentos ou aos argumentos desenvolvidos, mas também ao estado de conservação do material. As matérias de jornal, como peças ilustrativas importantes, estão em condições precárias, dificultando a consulta e a avaliação.

113 Dossiê para Registro da Festa Alemã. Processo nº 007039, PJF, FUNALFA, DIPAC. 2010, fl. 47.

Na percepção defendida neste estudo, a se tomar pela qualidade do corpo documental, tal Dossiê não preencheria os critérios institucionais necessários para seu encaminhamento; no entanto, ele foi encaminhado para a Prefeitura de Juiz de Fora. Os dados expostos anteriormente descortinam uma faceta da patrimonialização que é explicitada por Françoise Choay (2006): o patrimônio pode se transformar em um instrumento voltado aos interesses econômicos que dizem respeito à comercialização de um produto114, e não para atender ao seu valor intrínseco. Nas palavras da autora, os produtos do patrimônio podem ser “[...] fabricados, empacotados e distribuídos para serem consumidos [...]” (Ibid., p. 211).

Nessa perspectiva, mesmo que o Dossiê para Registro da Festa Alemã ainda esteja em processo de avaliação, e, embora a documentação esteja em mal estado, pode-se deduzir que, caso haja sua aprovação pelo Poder Público, esse fato representará uma mudança no que se refere aos usos do evento como bem imaterial de Juiz de Fora. A autora assevera que as relações as quais envolvem o patrimônio podem ser redefinidas a partir de uma reapropriação de seus usos e valores em interesses, que podem se deslocar de instâncias culturais para econômicas ou outras.

Seguindo o mesmo enfoque, a autora observa o papel dos indivíduos que participam da agenda de produtos culturais, chamados agentes de desenvolvimento, a saber, animadores culturais, engenheiros, comunicadores, produtores e mediadores culturais. Esses profissionais trabalham no sentido de agenciar os espaços e os bens culturais, fomentando a promoção de eventos com a intenção de torná-los cada vez mais populares e lucrativos, tanto para o setor público quanto para o setor privado (CHOAY, 2006).

Outra razão para se usufruir da contribuição da obra da autora francesa, A alegoria do patrimônio, diz respeito à questão das relações de poder que permeiam as ações de tombamento e registro. A autora acena para as disputas que acontecem nos bastidores do patrimônio, dos usos que dele fazem as políticas patrimoniais, que, continuamente, revelam interesses conflitantes. São observadas, ainda, as intenções que fogem aos princípios da preservação

114 O tópico 4 tem por objetivo analisar a Festa Alemã enquanto produto, construído como um atrativo turístico a ser oferecido à Prefeitura local.

cultural propriamente dita. A autora refere-se ao fato de que, atualmente, os requerentes de registro de bens patrimoniais podem estar comprometidos ou vinculados a órgãos que julgam e decidem o valor do bem, podendo, consequentemente, obter algum ganho com a aprovação do pedido.

Toda essa percepção revela que interesses particulares podem estar submersos na ação de registro ou tombamento do bem, sobretudo no caso da Festa Alemã, quando são consideradas as limitações técnicas do processo que a justifica. Mais uma vez, não é o caso de realizar, nesta pesquisa, uma análise sobre o mérito ou não do registro e do reconhecimento da Festa Alemã como bem imaterial da cidade. No entanto, julga-se ser necessário um parecer estritamente técnico dos processos e de seus desdobramentos, para que as decisões quanto às ações cabíveis se pautem em critérios autênticos.

Quanto ao papel dos jornais e da comunicação com relação a essa festa como tradição a ser preservada pela cidade, podemos citar o artigo do jornal Tribuna de Minas, a respeito das comemorações dos 138 anos da imigração alemã na cidade. Mais uma vez, percebe-se a constituição de uma narrativa coesa sobre a imigração. De acordo com dados presentes nessa matéria, os primeiros alemães, vindos em 1858, foram responsáveis pelo primeiro surto industrial ocorrido na cidade115.

Outro artigo do mesmo jornal, datado de 26 de setembro de 1996, intitulado “Borboleta cresce através da cultura”, apresenta um novo enfoque sobre o bairro. Os moradores do local fazem uma série de reclamações: acerca da sujeira do córrego que passa no local; sobre a erosão que acomete o Morro do Alemão; questionam o fato de a Igreja ter sido erguida com o dinheiro proveniente da Festa Alemã; queixam-se da enxurrada que desce pelas encostas do Morro do Alemão na estação das chuvas, deixando a entrada do bairro completamente enlameada, prejudicando a circulação. Finalmente, utilizam-se da importância que o bairro representa para a cidade, sendo ali o local de realização da Festa Alemã, para dar consistência às reclamações116.

115 Dossiê da Festa Alemã. Processo nº 007039, PJF/ FUNALFA/DIPAC, 2010, fl. 44. 116 Dossiê da Festa Alemã. Processo nº 007039, PJF/ FUNALFA/DIPAC, 2010, fl. 43.

Desse modo, seguem-se os artigos que versam sobre a comemoração dos 140 anos da imigração alemã em Juiz de Fora, destacando que “A herança alemã corre nas veias”, por meio das danças, da culinária e das roupas. Mas, entre as reportagens, algumas se fazem notar. Na página 34 do referido Dossiê (a data do jornal Tribuna de Minas está totalmente apagada), os moradores mais antigos tentam fazer com que os jovens voltem a praticar a língua de origem, em desuso há muito tempo, e clamam: “Não deixamos morrer as nossas raízes117”.

Ao se fazer uma viagem no tempo, mais precisamente no ano de 1879, o Livro de crônicas do Curato da Glória, no período 1924-1926, faz a seguinte citação:

Aos poucos vai desapparecendo da Igreja da Glória nos actos públicos a língua allemã, de modo que na missa das 7 ¹/2 em que até agora se pregava em allemão, a prática desde 15 de março já se faz em português. Quase ninguém não compreende bastante o Português, e os próprios descendentes de allemães fallão quase só esta língua. Resta só o catecismo em allemão, mas está conservado por um capricho dos velhos allemães [...] breve desaparecerá em conseqüência de grande guerra e a germanophobia118.

Ao se considerar o tema da integração social, a questão pode ser vista em dois momentos diferentes: no primeiro, os imigrantes alemães não se preocuparam em manter a língua de origem em sua comunidade (ao contrário, apropriaram-se dos costumes locais e adaptaram-se a eles); já no segundo momento, quando da criação da Festa Alemã com o imperativo de fortalecer o bairro diante das carências sociais e do descaso do Poder Público, o grupo de descendentes alemães busca fazer com que o estudo da língua natal pelos jovens trouxesse, novamente, o vínculo com suas raízes.

Um ponto de vista interessante e diferente dos expostos até aqui foi publicado no jornal Tribuna de Minas, em um artigo intitulado “Projeto para um novo Borboleta”. Trata-se da proposta de revitalização do bairro, no qual se previa a criação de uma área destinada à preservação da cultura alemã,

117 Dossiê da Festa Alemã. Processo nº 007039, PJF/ FUNALFA/DIPAC, 2010, fl. 34.

118 Arquivo da Província do Rio de Janeiro da Congregação Redentorista: Livro de Crônicas do Curato da Glória. Livro II, fl. 119, 1924-1926.

principalmente da arquitetura. O objetivo era transformar o bairro em um recanto de preservação das tradições germânicas, a fim de torná-lo um atrativo turístico na cidade. Para isso, uma parceria seria firmada entre a Prefeitura e a Universidade Federal de Juiz de Fora. O convênio assinado pela então reitora, Margarida Salomão, seria ratificado durante os festejos da Deutsches Fest; entretanto, o projeto não saiu do papel119.

119 Não é possível checar a data desse artigo devido à má qualidade da cópia. Sabe-se, entretanto, que o Convênio é do início do século XXI, quando Margarida Salomão assume a reitoria da UFJF. Dossiê da Festa Alemã. Processo n° 007039, PJF/ FUNALFA/DIPAC. 2010. fl. 16.