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O Pão Alemão: o reconhecimento de um registro

5 RESGATAR PARA ETERNIZAR

5.3 SOBRE A CONSTRUÇÃO DOS DOSSIÊS, BENEFÍCIOS E

5.3.1 O Pão Alemão: o reconhecimento de um registro

O Dossiê do Pão Alemão146 foi enviado ao Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Cultural, em 19 de fevereiro de 2010. Assinam o documento o historiador Nilo de Araújo Campos, responsável pela Divisão de Memória da FUNALFA, Dirceu Scoralick, descendente de imigrantes alemães e sua esposa, Célia Scoralick. Na justificativa do requerimento, os proponentes realizam um histórico sobre o processo da imigração alemã para a cidade apoiados nas obras de Wilson Lima Bastos (1991) e José Luiz Stehling (1979), em que informam a importância do pão como sendo uma receita típica alemã, que transcendeu o tempo e o espaço por meio da preservação da memória dos descendentes expressa nos cadernos de receitas herdadas das famílias de imigrantes.

Assinalamos que alguns dos depoimentos que amparam o requerimento já foram citados no Capítulo 3 do presente estudo, e nos revelam as transformações ocorridas na receita original, que foram preservadas nos cadernos de receitas e nas memórias das senhoras do bairro cuja ascendência alemã fez com que guardassem a lembrança das mães e avós fazendo o pão e utilizando, ainda, como fermento, o lúpulos vendido nas cervejarias sob forma de garrafadas.

A palavra “homenagem” é utilizada pelos requerentes dos Dossiês como sendo o objetivo do requerimento. Interessa, nesta análise, questionar e relativizar as bases e os fundamentos nos quais o Dossiê de Registro do Pão Alemão se respalda para requerer sua aceitação como bem imaterial da cidade. Reforçando a proposta do estudo – a de enxergar as intenções implícitas nos discursos dos protagonistas –, salienta-se que a função de uma prática social baseada em uma construção de memória quase sempre visa a

torná-la instrumento eficaz de socialização e de ampliação dos espaços sociais. Essa é a convicção aqui partilhada e com a qual se pretende construir a presente análise.

É de fundamental importância perceber que o pedido de registro é um veículo para aquisição e fortalecimento da identidade pretendida por um grupo, sendo também decisivo perceber, nesse ato, a possibilidade de integração social em outros campos, como, por exemplo, no setor de turismo de eventos na cidade. Como ressalta Choay (2006), em seu livro Alegoria do patrimônio, é necessário atentar para todas as questões envolvidas no acolhimento de um bem enquanto patrimônio cultural. Como acertadamente observa a autora, o objetivo de requerer o reconhecimento de determinado bem pode guardar interesses particulares, uma vez que, com a proteção dada pelo Poder Público, esse bem passa a se constituir em uma fonte de incentivos, de verbas, de isenção de impostos para sua comercialização e de visibilidade. Os sujeitos envolvidos nesse processo valorizam uma memória recortada, ou seja, eles fazem uma seleção das informações que poderiam ser realocadas em outra temporalidade, para, assim, fortalecerem a identidade do grupo.

Em alguns momentos das análises dos dois Dossiês – Registro do Pão Alemão e Registro da Festa Alemã – esses discursos se mesclam, pois ambos possuem uma base histórica comum. Essa interseção se refere às origens, aos formatos e ao período no qual os pedidos se dão – o ano de 2010 – e, por fim, também no que diz respeito a essas ações propriamente ditas. Em 6 de maio de 2010, foi publicado no Diário Oficial do Município de Juiz de Fora, na seção Atos do Governo do Poder Executivo, o Decreto nº 10.232, que dispõe sobre o registro do bem de natureza imaterial, no caso específico o “saber fazer” o pão alemão. A inscrição no Livro de Registro foi autorizada pelo então prefeito, Custódio Mattos, em consonância com o previsto na Constituição Federal: o valor histórico e cultural do “pão”, a origem da receita, vinculada à imigração dos colonos alemães, as tradições mantidas pelos imigrantes no Brasil e em Juiz de Fora, bem como as adaptações feitas na receita que, no entanto, não

alteraram o produto e as características originais. Por fim, é descrita a importância da continuidade dessa tradição, que sobrevive até hoje147.

O Termo de Conclusão do Dossiê cita o livro Juiz de Fora: a Companhia União e Indústria e os alemães, de autoria de Stehling (1979). Essa formatação não difere das outras partes que compõem o Dossiê. Ocorre que a história tradicional é revisitada em todo percurso de construção do documento – da Introdução ao Parecer Final dado pelo Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Cultural. Trata-se, portanto, de reafirmar as inúmeras características que levaram o Conselho Municipal a reconhecer a validade do pedido de registro.

A finalização do processo de registro pelo COMPPAC versa sobre a tradição de um “saber fazer” culinário autêntico das regiões colonizadas pelos imigrantes alemães e sobre as histórias da imigração. Entre as várias argumentações que validam o registro do Pão Alemão, também estão elencadas outras práticas pertinentes à ação de patrimonialização, as quais versam a respeito dos atributos dos imigrantes em questão: as celebrações religiosas, os conhecimentos nas áreas de marcenaria, funilaria, ferraria, selaria, e, por fim, os valores morais.

Vale destacar que o Dossiê para registro do Pão Alemão, enquanto bem de natureza cultural imaterial de Juiz de Fora, é todo ele muito bem desenvolvido, contrariamente à apresentação do Dossiê da Deutsches Fest, que apresenta inúmeros problemas relativos aos documentos comprobatórios da relevância da tradição do evento para a comunidade. Os artigos de jornais e reportagens encontram-se apagados, dificultando a análise do documento; entretanto, é possível perceber que os discursos enredados em ambos os Dossiês são formatados de modo a validarem a importância da memória requerida.

Cabe evidenciar, nesta pesquisa, as seguintes reflexões tecidas por Bourdieu (1989, p. 14) quanto ao discurso que evidencia o fortalecimento da identidade de um determinado grupo: “[...] o poder de constituir o dado pela enunciação, de fazer ver e fazer crer, de confirmar, ou de transformar a visão

147 Dossiê da Festa Alemã. Processo n° 007.039, PJF/FUNALFA/DIPAC, 2010, fl. 67. Atos do Governo. Publicado em 10/07/2010. Prefeitura de Juiz de Fora.

de mundo [...]” explicita a complexidade que envolve a configuração de uma identidade a ser apresentada e legitimada, no sentido de determinar novos usos de uma mesma tradição. Sendo assim, a validação do pedido de registro do bem pelo Poder Público passa a ser o passaporte para a aquisição do capital desejado, que seria alcançado por meio da integração e ampliação das fronteiras de atuação dos protagonistas elencados pela pesquisa.

Pode parecer contradição abordar o registro do Pão Alemão e da Festa Alemã como forma de empoderamento e não apenas de reconhecimento da identidade dos sujeitos envolvidos na ação de registro, mas não é. Esse registro, bem como sua consequente aprovação pela sociedade juiz-forana, comunicada pelos jornais da cidade, foi uma condição prévia para a aquisição de outros capitais sociais.

A ascendência foi crucial no processo de elaboração do documento. Os elementos constitutivos da narrativa, visando à obtenção da salvaguarda de ambos, esclarecem a razão política concebida no discurso dos requerentes. O efeito da tradição se sobressai nas entrelinhas dos depoimentos, das entrevistas, do requerimento e, até mesmo, no Parecer Final. Vale lembrar que não era o caso de simplesmente enfatizar os mitos de origem descritos nas produções literárias de pesquisadores e memorialistas da cidade, nas quais os protagonistas apoiaram sua decisão de solicitar os registros e definir os objetivos que queriam alcançar com essa ação. Antes, tratava-se de incorporar, em seus discursos, novos elementos objetivamente já proclamados por esses autores, como inerentes à origem alemã.

Com o ato de registro, a possibilidade de os descendentes alcançarem a representatividade política almejada junto aos setores econômicos e políticos de Juiz de Fora se ampliava, pois, para além de se tornarem porta-vozes da comunidade, poderiam usufruir dos benefícios e incentivos dispostos na lei que amparava as cidades que apoiavam a preservação de seu patrimônio.

Portanto, o discurso de homenagem aos imigrantes, que permeia todo o requerimento, deve ser relativizado. Tanto o Pão Alemão quanto a Festa Alemã denotam a construção de uma representação cultural pautada em recortes temporais hábeis e informações bem definidas, visando a compor uma identidade forte e coesa: os imigrantes chegaram a Juiz de Fora e se firmaram

como os grandes responsáveis pelo desenvolvimento, pela industrialização e pela consequente expansão econômica da cidade. Além disso, a percepção de uma polifonia no requerimento não desqualifica e nem mesmo altera a unidade pretendida pelo documento. Por conseguinte, a tradição é o alicerce dessa representação, ao mesmo tempo em que entrelaça as ideias daqueles que, enquanto coletivo – instituição ou conselho – participam da ação de registro.

Em princípio, a análise pode parecer contraditória, uma vez que estão envolvidos indivíduos cujas distintas posições sociais poderiam influenciar nos julgamentos, movidos por interesses outros contrários àqueles que norteiam as intenções dos próprios protagonistas. Mas, pode-se concluir que todos estavam motivados por razões particulares, sejam elas políticas, econômicas, culturais, individuais ou coletivas. O ponto fundamental a ser destacado diante de todas as considerações já apresentadas é que o grupo de descendentes dispunha de uma tradição cultural ao seu alcance, ancorada no arcabouço teórico dos historiadores, dos memorialistas e no espaço de apoio e divulgação encontrado nos jornais. Esses elementos estavam todos à disposição dos requerentes, bastando apenas articulá-los e difundi-los na sociedade.

Dessa forma, o próximo capítulo analisa o requerimento de Registro da Festa Alemã. Como já visto anteriormente, as reflexões seguem a mesma linha de análise do Dossiê de Registro do Pão Alemão, sendo que os desdobramentos são diferentes, porquanto, apesar de o requerimento datar de 10 de julho de 2010, o registro não foi expedido até a presente data.