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5 RESGATAR PARA ETERNIZAR

5.1 OS DESAFIOS DO PATRIMÔNIO

Na obra intitulada Memória da urbe: bens tombados (PJF/FUNALFA/DIPAC, 2004), o prefácio é assinado pelo então prefeito da cidade, Tarcísio Delgado. O livro enumera os imóveis e monumentos, as suas características, a sua localização na cidade, bem como os bens imateriais registrados. Nele, são contabilizados mais de 150 imóveis, monumentos e manifestações culturais tombados e apenas um registrado, entre o final do século XX e o início do século XXI. Encontra-se, em destaque, nessa obra, o primeiro registro de bem imaterial de Juiz de Fora, datado de 17 de agosto de 2004. Trata-se, como já mencionado, do som do “Apito do Meio Dia”, cuja sonoridade remete à memória de um apito de fábrica – lembrança perene da característica fabril da cidade, que a levou ao título de Manchester Mineira. Diariamente, há mais de 70 anos, o som do apito pode ser ouvido marcando a hora na cidade.

O livro pode ser interpretado como uma resposta do Poder Público diante dos embates que circundavam as questões patrimoniais em Juiz de Fora. Publicado pela Fundação Cultural Alfredo Ferreira Lage (FUNALFA), o livro é organizado de forma a catalogar os bens tombados e registrados na cidade a partir da criação da Lei Municipal n° 10.777/04124, de 15 de julho de 2004, em substituição à anterior – Lei Municipal n° 7.282/88. O objetivo da publicação é explicitado em sua apresentação: atender às demandas geradas pelo município quanto à preservação de seu patrimônio cultural125.

124 Lei Municipal nº 10.777/041, de 15 de julho de 2004, substitui a Lei Municipal nº 7.282/88. Essa substituição veio atender à nova legislação, criando mecanismos mais eficientes à proteção dos bens culturais, entre elas: a renovação automática da taxa do IPTU para imóveis tombados, regulamentação de normas de proteção ao entorno dos bens protegidos, instituição do Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Cultural (COMPPAC) e a criação de novas regras de preservação da memória, abarcando o registro do bem imaterial: aquele que é intangível e que compreende as formas de expressão, os saberes, as celebrações e os fazeres.

125 Ressalta-se que, na década de 1970, já havia na cidade uma movimentação popular para a preservação de imóveis que seriam demolidos sem nenhum amparo ou cuidado. A exemplo disso, cita-se o antigo prédio do Colégio Stella Matutina, que, depois de desativado, ficou conhecido como Capela Galeria de Arte. Nesse local, eram realizados shows, exposições, peças de teatro, além de outras expressões culturais.

Vale lembrar que nessa obra, por ter sido publicada em 2004, apenas o “Apito do Meio Dia” está relacionado como bem imaterial da cidade, embora, além dele, existam hoje mais de seis expressões culturais declaradas de valor imaterial, a saber: “Banda Daki” – importante evento do carnaval de Juiz de Fora, que envolve milhares de foliões, registrada em 2004; “Batuque Afro- Brasileiro Nelson Silva” – grupo que promove a cultura afro-brasileira, realizando encontros musicais e de reflexão, registrado em 2007; o concurso “Miss Brasil Gay” – registrado em 2007; o “Festival Internacional de Música Colonial Brasileira e Música Antiga” – registrado em 2009; e, por fim, o “Pão Alemão” – registrado em 2010126.

Mas a história da preservação dos bens culturais de Juiz de Fora tem início com um grande levantamento, objetivando, primeiramente, elencar o valor arquitetônico dos imóveis da cidade. Com esse fim, o arquiteto Luiz Alberto do Prado Passaglia (1982) escreveu o livro intitulado Preservação do Patrimônio Histórico de Juiz de Fora: medidas iniciais, prefaciado por Francisco Antônio de Mello Reis, então prefeito da cidade127. O autor ressalta que a pesquisa realizada tinha como finalidade reconhecer o valor histórico- cultural do patrimônio do município, demarcando cada obra da cidade pela “época, estilo e camada social” (Ibid., p. 20). A preocupação inicial, segundo o arquiteto, era oferecer subsídios para a prefeitura começar a pensar em seu patrimônio; outra inquietação, todavia, estava implícita nesse movimento: Juiz de Fora havia crescido muito durante a segunda metade do século XX, o que culminou na necessidade de se promover um planejamento urbano.

Enfatiza-se que, para dar início aos trabalhos de inventariar os bens da cidade, foram definidos alguns critérios e referências que pudessem embasar os julgamentos de valor que seriam apresentados. Primeiramente, os bens deveriam apresentar importância histórica, artística ou ambiental. Em segundo lugar, caso algum imóvel oferecesse qualquer risco estrutural, em função das más condições de conservação, a ação do Poder Público deveria ser

126 Portal PJF. Conselho Municipal de Patrimônio. Disponível em: <http://www.pjf.mg.gov.br/conselhos/turismo/>. Acesso em: 15 jul. 2014.

127 Mello Reis começou sua carreira política em 1971, como vereador. Entre 1977 e 1983, foi prefeito de Juiz de Fora. Criou o Instituto de Pesquisa e Planejamento (IPPLAN).

considerada imediata e emergencial. Para a ação de levantamento do inventário, a cidade foi dividida em cinco setores: Parque Mariano Procópio, Praça Antônio Carlos, Praça João Penido, Parque Halfeld e Alto dos Passos. De maneira geral, a valorização desses setores levava em conta a história local com relação à atividade cafeeira, industrialização e urbanização.

A procura por dados anteriores, que revelassem alguma ação relativa à preservação do patrimônio da cidade, fez com que o grupo formado por profissionais do Instituto de Pesquisa e Planejamento (IPPLAN)e da Comissão Técnica e Cultural se deparasse com a primeira iniciativa de preservação do patrimônio cultural: a ação do professor Lindolfo Gomes128, que, em 1939, teria recorrido ao Instituto do Patrimônio Histórico Artístico Nacional (SPHAN), sediado no Rio de Janeiro, para tombar a “Fazenda Velha do Juiz de Fora129”. É possível reconhecer, já naquele contexto, que a iniciativa de Lindolfo Gomes acenava para a preocupação da comunidade com a preservação do patrimônio de Juiz de Fora, visto que, por meio de suas crônicas denominadas “Visões de um Repórter”, publicadas pelo jornal O Pharol, o autor reclamava do descaso das autoridades diante da demolição da fazenda (PASSAGLIA, 1982, p. 177).

Destaca-se que a primeira área classificada para fins patrimoniais no levantamento de Passaglia (1982) foi o Setor Mariano Procópio, sendo esse o setor que mais interessa ao presente estudo, pois a Festa Alemã nasceu no bairro Borboleta, antiga Colônia Agrícola fundada por Mariano Procópio, visando a produzir alimentos para o mercado interno. As referências utilizadas no levantamento e na composição do inventário tiveram por finalidade descrever algumas ideias que orientaram as ações de reivindicação e preservação do patrimônio na cidade. O tombamento era justificado por muitos através de expressões como a que dá título a este capítulo – “Resgatar para

128 Escritor, poeta e cronista, foi membro da Academia Mineira de Letras e organizou o primeiro ano do “Almanaque de Juiz de Fora”. Para mais detalhes, ver: Álbum do Município de Juiz de Fora, organizado por Oscar Vidal Barbosa Lage e Albino Esteves. 3. ed. Juiz de Fora: FUNALFA, 2008.

129 No livro de Luiz Alberto do Prado Passaglia, encontra-se anexo o artigo de Lindolfo Gomes, publicado no Diário Mercantil, de 03/07/1946. Nesse artigo, o autor explica, com uma narrativa memorialística, a importância da Fazenda do Juiz de Fora. Localizada, à época, na rua Garibaldi Campinho, a fazenda atraía os moradores da cidade, que visitavam o juiz de fora, residente no Rio de Janeiro. Lindolfo Gomes destaca no artigo que, embora o local tivesse se tornado residência de “desgraçados”, ele não desistiria de lutar pelo seu reconhecimento como patrimônio cultural da cidade.

eternizar”, baseada na homenagem à memória e ao empreendedorismo alemão.

A intenção deste estudo, ao apresentar essas considerações, é perceber como esse ideário foi transmitido à sociedade juiz-forana em formato de memória, reelaborada com base em concepções de importância histórica. Quando se salienta a replicação dessas abordagens sobre a história da cidade por setores que possuem algum tipo de influência local, também se faz uma reflexão sobre o discurso eleito para escorar o Registro do Pão Alemão e da Festa Alemã.

É possível perceber que as políticas de patrimonialização, de tombamento e de registro, que norteiam as ações do Poder Público Municipal, mesmo amparadas em técnicas estabelecidas nas esferas estadual e federal, deixam-se influenciar pela história oficial produzida na cidade, em um determinado momento, e que, em certa medida, determina o que deve ser preservado. Esse é o caso dos Dossiês do Pão Alemão e da Festa Alemã130. Passaglia (1982) e a estratégia de organização realizada pelo extinto IPPLAN, que dividia a cidade de Juiz de Fora em quatro grandes setores históricos, três espaços de maior interesse – todos localizados no setor Parque Mariano Procópio – podem ser destacados para a compreensão dos fundamentos que alicerçaram a composição dos Dossiês: a Estação de Mariano Procópio; o Parque e o Museu Mariano Procópio; e o Palacete Frederico Ferreira Lage.

O setor mencionado acima merece destaque por ser o que recebeu os imigrantes alemães, não apenas os que vieram em 1858 para trabalhar na Colônia criada por Mariano Procópio Ferreira Lage, mas também os que chegaram em 1856, a serviço das obras da Estrada União e Indústria. Sendo

130 Entre os principais nomes que compõem a lista de autores, cuja abordagem tradicional sobre a história de Juiz de Fora embasaram os pedidos de Registro do Pão Alemão e da Festa Alemã como Bens Imateriais da cidade, estão: Albino Esteves, em seu livro Almanach de Juiz de Fora, publicado em 1914 e reeditado em 2008; Wilson Lima Bastos, que publica a obra intitulada Mariano Procópio Ferreira Lage: sua vida, sua obra, descendência, genealogia, em comemoração ao centenário da inauguração da Estrada União e Indústria, mais precisamente, em 23 de junho de 1961 e reeditato em 1991; Paulino de Oliveira, com História de Juiz de Fora, datado de 1966; Luiz José Stehling, com seu livro Juiz de Fora, a Companhia União e Indústria e os Alemães, em 1979; e Domingos Giroletti, com Industrialização de Juiz de Fora, de 1988. Para maiores detalhes, ver: CARNEIRO, Deivy Ferreira. Conflitos, crimes e resistência: uma análise dos alemães e teuto-descendentes através de processos criminais (Juiz de Fora, 1858/1921). Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2004.

assim, entende-se que a valorização dessa área por parte de Passaglia e pelos técnicos do IPPLAN, para além da importância do acervo do Museu, reconhecido nacionalmente, deve-se ao fato de que o grupo sofreu influência das ideias que predominavam em Juiz de Fora, ou seja, consideravam os imigrantes alemães os promotores do desenvolvimento da cidade. Tal fato pode ser observado por meio das obras que sustentam o levantamento realizado.

A caracterização do setor feita por Passaglia (1982) segue com descrição dos jardins e da casa de Mariano Procópio Ferreira Lage, amparando-se na obra de Luiz José Stehling, publicada em 1979: Juiz de Fora, a Companhia União e Indústria e os alemães. O autor se vale ainda do livro intitulado Mariano Procópio Ferreira Lage: sua vida, sua obra, descendência, genealogia, de Wilson de Lima Bastos (1991), para argumentar sobre a importância desse setor. Apoiado nessa obra, Passaglia enfatiza, novamente, a figura do imigrante alemão, considerado o grande empreendedor da cidade, responsável pela industrialização de Juiz de Fora.

É clara a influência do pensamento e das obras de memorialistas, jornalistas e cronistas juiz-foranos junto à opinião pública local, no momento em que esta passa a se preocupar com o patrimônio da cidade. O próprio Passaglia e a equipe formada para pensar os setores históricos da cidade são exemplos disso. Esses autores endossam, com seus estudos, os requerimentos de Registro da Festa Alemã e do Pão Alemão. Passaglia (1982), por exemplo, refere-se a um trecho de Bastos para descrever a importância de Mariano Procópio:

[...] um dos varões de maior bagagem literária e cultural de seu tempo, em Juiz de Fora, tendo deixado verdadeira mensagem de apreço e veneração às coisas do espírito, consubstanciada pela mensagem na arca de nossas tradições, na joia de nosso patrimônio, que é o museu Mariano Procópio [...] (BASTOS apud PASSAGLIA, 1982, p. 34).

Essa perspectiva de identificação e valorização do patrimônio na cidade não só inspirou a política de preservação patrimonial do município, como também mostra a importância da representação social sobre imigração alemã e a sua contribuição. Certamente, tanto o modo de pensar desses memorialistas

e historiadores locais quanto suas publicações foram gatilhos potentes para a percepção da comunidade de descendentes da imigração alemã a respeito da importância creditada a seus antepassados por parte de alguns intelectuais da cidade, reconhecendo-os como principais atores do desenvolvimento econômico de Juiz de Fora.

A questão posta neste ponto da pesquisa e que se deseja enfatizar é que o pensamento dos memorialistas e cronistas da cidade também influenciou, fortemente, as escolhas do que representaria o patrimônio na cidade. Dentro dessa perspectiva, enfatizamos que, para alcançarem a representação política diante da comunidade de descendentes alemães, cabia aos descendentes dos imigrantes alemães131 reconhecer esses enfoques, legitimando-os como memórias do passado, imprimindo a elas, novos sentidos que pudessem representá-los. Nesse ponto, o conceito de “representação social”, apresentado por Chartier (1990, p. 59), norteou as análises realizadas sobre ações do grupo de descendentes alemães de Juiz de Fora, na busca por visibilidade nos diversos âmbitos sociais. É nossa tese que, se a historiografia sobre a cidade os reconhecia132, cabia a esses descendentes se apropriarem dessa representação e reforçar a sua propagação. A identidade dos precursores da industrialização e do desenvolvimento de Juiz de Fora representava uma imagem do alemão a ser vinculada ao passado de notoriedade, já descrito em publicações que versam sobre os grandes feitos de seus precursores.

Mas a cidade continuou buscando vencer os desafios que se apresentavam, por exemplo, citamos a pesquisa de Paulo Gawryszewski (2008), Cultura e Educação: uma aliança para a preservação do patrimônio cultural em Juiz de Fora. Esse estudo repercute a importância da educação patrimonial face aos desafios impostos pelo patrimônio. Importa, aqui, destacar o papel da DIPAC/FUNALFA diante das questões que circundam o tombamento e registro dos bens em Juiz de Fora.

131 Ver Quadro 1.

Segundo Gawryszewski (2008), o crescimento e a atuação do papel da DIPAC ocorreram a partir de 1997, com a abertura de 149 processos de tombamentos de imóveis e, nesse contexto, a divisão passa a assumir uma nova postura diante dos proprietários, buscando, ainda, estabelecer um diálogo com o IPPLAN/JF e com a Universidade Federal de Juiz de Fora. A demanda crescia, e o quadro de profissionais precisava ser repensado. Nesse momento, foram reunidos historiadores e arquitetos, a fim de atenderem à crescente demanda das ações de tombamento no município.

Em 2000, em razão de uma reorientação da política local, a DIPAC se aproxima da área de cultura, passando a compor o mesmo espaço destinado à FUNALFA. Aqui, acredita-se estar o primeiro passo a ser pontuado como um sinal de compreensão da cidade de que patrimônio é cultura, demonstrando um amadurecimento de Juiz de Fora no tocante às questões patrimoniais. A Divisão de Patrimônio promoveu ações voltadas para o reconhecimento e a preservação da cidade e, entre os limites impostos por questões administrativas, realizou seu papel no âmbito do patrimônio, ampliando as discussões sobre a temática em palestras, mesas de debates, publicidade, mostra de filmes, ações como a criação do Prêmio Amigo do Patrimônio, entre outros (GAWRYSZEWSKI, 2008).

Mas os desafios ainda são muitos, restando, por conseguinte, uma longa caminhada pela frente para que o Poder Público possa, para além de valorizar o patrimônio da cidade, minimizar as demolições citadas no início dessa seção, pois as mesmas continuam a acontecer, silenciosamente, por todas as regiões de Juiz de Fora. Esse fato mostra a ineficácia das políticas direcionadas para a educação patrimonial, porquanto, é possível perceber que as mesmas não estão alcançando o resultado esperado, quer seja a formação de uma consciência de preservação das tradições e da cultura da cidade impressas em seu patrimônio.

Diante desse quadro, retomamos nossa tese: face à ausência de uma política efetiva que privilegie a história da cidade contida em seu patrimônio cultural, os descendentes da imigração alemã para Juiz de Fora tomaram para si a defesa de seus interesses de manutenção da tradição da comunidade celebrada na Festa Alemã e simbolizada no Pão Alemã. Esses homens

guardam essas memórias e lutam por sua preservação e valorização diante dos inúmeros desafios a que estão sujeitos. Portanto, podemos afirmar que esses protagonistas se tornaram porta-vozes da comunidade de descendentes por meio do alargamento de suas posições dentro da sociedade local, tornando-se referências dessas memórias. No entanto, vale reforçar, novamente, a tese defendida pela pesquisa de que a representação política desejada pelos protagonistas não estaria no propósito de se ocupar um lugar de destaque na política local, mas, antes, de apropriar-se da obras que os reconheciam como propulsores do desenvolvimento da cidade para afirmarem dentro do quadro no qual o patrimônio, aproximando-se da cultura, abria-lhes a oportunidade de se verem inseridos dentro desse novo modelo.

Desse modo, portadores de uma ascendência que os qualificava no contexto em que os responsáveis por direcionar as metas e os rumos da preservação patrimonial em Juiz de Fora aproximavam-se da cultura, os protagonistas das ações de resgate da memória da comunidade alemã da cidade trataram de reelaborar suas tradições, a fim de buscar seu reconhecimento. Os elementos escolhidos para representar essa comunidade estariam representados na Deutsches Fest e no Pão Alemão. Por conseguinte, buscariam registrar essas memórias em forma de patrimônio.