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1. O adimplemento substancial no Direito Brasileiro

1.2. O adimplemento substancial no Código Civil de

O Código Civil de 1916, também conhecido como Código de Beviláqua, foi influenciado pelos Códigos Civis da França, Alemanha e Suíça. Neste vetusto código civil voltado mais ao individualismo do indivíduo, como sujeito de direitos, sob o fundamento da liberdade individual, o legislador pátrio não incorporou o aspecto social da relação obrigacional calcado no princípio da autonomia privada.

O espírito deste diploma civil prioriza conceitos individualistas como o princípio da vontade humana como expressão da liberdade vista dentro da relação jurídica intersubjetiva. “Daí por que o contrato, no Código de Beviláqua, será, antes de mais, uma categoria metafórica: a liberdade humana é primordialmente a liberdade de dispor sobre suas relações econômicas, isto é, de dispor, contratualmente, sobre os bens. Na pré-compreensão dessa idéia estavam duas diversas – mas conexas – perspectivas: a) a da relação jurídica intersubjetiva como aquela existente entre abstratos sujeitos de direitos, previamente definidos como ‘iguais’; e, b) a da existência de um alto grau de determinação dos sujeitos envolvidos105”.

Com essa concepção liberalista, a relação obrigacional desenvolveu-se por meio de parâmetros rígidos e formalistas do princípio do pacta sunt servanda, no qual qualquer desvio de descumprimento da prestação devida ensejava a resolução do contrato, protegendo a parte adimplente que ficava com o livre arbítrio de exercer o direito potestativo resolutório,

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MARTINS-COSTA, Judith. O adimplemento e o inadimplemento das obrigações no novo Código Civil e o

cumulada com a possibilidade de pleitear as perdas e danos pelo inadimplemento gerado. E a tutela à parte inadimplente diante das variações do inadimplemento como se aplicava? Existia de fato?

Neste diapasão, vislumbramos na doutrina nacional a menção desta Teoria por meio de várias nomenclaturas, sendo no começo até um pouco difícil a compreensão em razão dos diferentes vocábulos utilizados, na medida em que alguns juristas referiam-se a esta Teoria ora por adimplemento ruim106, ora por insatisfatório107, ora por cumprimento imperfeito108 e ora por inadimplemento insignificante109, mesclando algumas características destes conceitos e gerando por vezes algumas dúvidas a respeito do concreto regime jurídico do adimplemento substancial. Por sua vez observamos que as diferentes nomenclaturas justificam-se talvez em razão do fato da Teoria ser oriunda do direito americano, escrito na língua inglesa, ensejando, assim, distintas traduções sob o mesmo instituto jurídico.

Com base no parágrafo único do artigo 1092 do revogado Código Civil de 1916110, não existia margem para se conferir qualquer tutela ao inadimplente diante da ausência de gravidade no inadimplemento gerado em relação à inexecução de parte mínima da obrigação, o que configura o adimplemento substancial, na medida em que a legislação em vigor não trazia os elementos necessários à caracterização do inadimplemento que ensejava a resolução do contrato.

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Araken de Assis ao estudar a Teoria do Adimplemento Substancial, na página 129 do seu livro “Resolução do

contrato por inadimplemento” aborda esta denominando-a de inadimplemento ruim ao exarar a seguinte

definição “o adimplemento ruim pode versar sobre uma parte modesta ou diminuta e ou infinitesimal da prestação. O direito inglês cunhou, a respeito, a doutrina da ‘substancial performance’”.

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O próprio Araken de Assis, no referido livro, mais adiante na página 134 já denomina o adimplemento substancial como adimplemento insatisfatório ao abordar o descumprimento de parte mínima da obrigação.

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Ruy Rosado de Aguiar Júnior, no seu livro Extinção dos contratos por incumprimento do devedor, na página 130, ao comentar o artigo 1455 do Código Civil Italiano – o qual é o fundamento do adimplemento substancial – classifica-o como cumprimento imperfeito, podendo gerar controvérsias com o instituto cumprimento defeituoso, se os conceitos de ambos não forem bem distinguidos e delimitados.

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Araken de Assis, na obra citada, ainda encontra mais uma denominação (inadimplemento insignificante) na página 129, ao se referir ao inadimplemento de “scarza importancia” – sem importância – ou seja, o adimplemento substancial, ao observar os ensinamentos de Arturo Dalmartello no livro Risoluzione del

contratto. O Desembargador do Tribunal de Justiça de Pernambuco, Jones Figueiredo Alves, também refere-se

ao adimplemento substancial como inadimplemento insignificante in A Teoria do adimplemento substancial (“substancial performance”) do negócio jurídico como elemento impediente do direito de resolução do contrato, p. 407.

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“Artigo 1092. Nos contratos bilaterais, nenhum dos contraentes, antes de cumprida a sua obrigação, pode exigir o implemento da do outro. (...) Parágrafo único. A parte lesada pelo inadimplemento pode requerer a rescisão do contrato com perdas e danos”.

Diante dessa omissão, o posicionamento que prevalecia na maior parte da vigência do referido código era a de prestigiar a resolução, sem mensurar o prejuízo substancial ou às vezes inexpressivo decorrente da inexecução, fechando assim qualquer possibilidade de adequação do contrato diante do desequilíbrio maior ou menor, respectivamente, formado. Neste cenário, a parte inadimplente ficava descoberta de qualquer proteção jurídica, caso não conseguisse cumprir parte ínfima da obrigação prometida.

Na estruturação do inadimplemento colacionada no dispositivo mencionado, o artigo 955111 do mesmo diploma civil trouxe à baila da discussão o construto da mora, estabelecendo que a mora do solvens se efetiva quando não houver a realização da prestação, por parte do devedor, no tempo, lugar e forma convencionados; por outro lado a mora do accipiens ocorre quando o credor que o não quiser receber no tempo, lugar e forma convencionados.

Por essa definição legal da mora, Pontes de Miranda asseverou que a insatisfação dos interesses do credor no inadimplemento defeituoso advém do não cumprimento do devedor da obrigação “no tempo, lugar e forma convencionados112”.

Se aplicarmos essa definição para o instituto do adimplemento substancial que se difere do inadimplemento defeituoso, conforme se demonstrará no capítulo 5.5.1. do presente trabalho, poderemos extrair na idéia do renomado jurista que o credor apenas terá insatisfação legítima passível de reclamações no âmbito da quebra do vínculo contratual por meio da resolução se a obrigação não for integralmente cumprida no “tempo, lugar e forma convencionados”, dependendo da natureza da obrigação proposta ou da especialidade do contrato celebrado.

Por exemplo, se há a celebração de um contrato para o cumprimento de uma prova de corrida dentro de um determinado período, a qual apenas computará pontos ao corredor se o mesmo realizar a prova inteira dentro de 2 horas, nada adiantará ele cumprir 99% do percurso em 1 hora e 58 minutos se efetivamente não cruzar a linha de chegada. Neste caso, o adimplemento

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“Artigo 955. Considera-se em mora o devedor que não efetuar o pagamento, e o credor que o não quiser receber no tempo, lugar e forma convencionados”.

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substancial não se aplica, pois o cumprimento integral da prova era condição essencial para contagem de pontos.

Com base no exemplo acima, observa-se que o adimplemento, fim da obrigação, deverá revestir-se de certas qualificações, sob pena de não ser aceito, como dispõe o artigo 1056 do Código Civil de 1916: não cumprindo a obrigação ou deixando de cumprí-la pelo modo e no tempo devidos, responde a devedor por perdas e danos.

Clóvis Beviláqua ao comentar esse dispostivo legal pontua que “ se a inexecução é completa, mais extensa há de ser a responsabilidade; se a execução é, apenas, imperfeita, deve a responsabilidade ser proporcional ao que falta para completar a execução113”.

De fato, via de regra, o devedor deverá efetuar a prestação devida pelo modo, pela forma e na época estipulados, sob pena de responder por perdas e danos perante o credor. As perdas e danos são devidos se a critério do interesse individual do credor, dentro do princípio da razoabilidade e da boa-fé objetiva, a prestação se tornar inútil, ganhando assim legitimidade para enjeitá-la com base no parágrafo único do artigo 956 do Código Civil114.

Sob essa ótica liberal do interesse do credor tutelada pela legislação anciã, que poderia comprometer todo o programa contratual se utilizada de maneira egoística ao permitir a parte adimplente, mesmo diante da satisfação de seu maior interesse, recusasse a receber a prestação executada pelo devedor, e decidir pela resolução do contrato. No entanto, pelo critério da mensuração da inutilidade conjugado com o fundamento pautado no princípio da boa-fé objetiva, a atenuação da exigência da execução da obrigação nos moldes do tempo, lugar e modo ajustados no contrato pode ser relativizada, se o devedor executar a essencialidade da obrigação, atingindo os interesses do credor.

Assim, na vigência do Código Civil de 1916 o único substrato existente na construção da Teoria do adimplemento substancial para ajustar a exata gravidade da inutilidade da

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Código Civil dos Estados Unidos do Brasil Comentado. vol. IV. p. 209.

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“Art. 956. (...) Parágrafo único. Se a prestação, por causa da mora, se tornar inútil ao credor, este poderá enjeitá-la, e exigir a satisfação das perdas e danos”.

prestação, bem como ao interesse do credor era o princípio da boa-fé objetiva, como já destacado por Clóvis do Couto e Silva115, que iria conjugar e adequar as disposições contidas nos artigos 955, 956, parágrafo único, 1056 e 1092, parágrafo único do referido diploma civil.

Pontes de Miranda resume o problema ao admitir o remédio resolutivo tanto que cancelado o interesse do credor “em torná-lo bom” ou a “confiança no adimplemento posterior”; sendo exatamente estes parâmetros um dos valores tutelados pelo referido princípio. Ele também empregava o artigo 955 do diploma civil antigo como fundamento para o reconhecimento do inadimplemento incompleto pelo ordenamento jurídico pátrio naquela época116.

Embora no Código Civil de Clóvis Beviláqua não existisse artigo expresso contemplando o adimplemento substancial, a jurisprudência pátria, por meio da interpretação analógica e com fundamento nos princípios do direito obrigacional, especialmente o princípio da boa-fé objetiva, conseguiu absorver, ainda que de forma minoritária, a Teoria do adimplemento substancial. Por exemplo, o acórdão proferido em 12 de abril de 1988, pela 5ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, na apelação cível nº 588012666, pelo Desembargador Relator Ruy Rosado de Aguiar Jr.: “Contrato. Resolução. Adimplemento substancial. O comprador que pagou todas as prestações de contrato de longa duração, menos a última, cumpriu substancialmente o contrato, não podendo ser demandado por resolução. Ação de rescisão julgada improcedente e procedente a indenizatória.”.

O Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul exerceu papel pioneiro, como na maioria dos casos, no posicionamento dos julgados inovadores referentes ao tema “adimplemento substancial”, cujo movimento também foi fruto do trabalho desenvolvido por Eloy José da Rocha, Pedro Soares Muíloz, Paulo Boeckel Velloso, Athos Gusmão Carneiro, etc...

Como outra ilustração, podemos citar o voto vencido do Ministro Ruy Rosado de Aguiar Jr. no julgamento do Recurso Especial nº 226283, quando ele já estava na 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, publicado no Diário da Justiça em 27.08.2001. Esse processo tinha por

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Op. Cit. p. 5.

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objeto da venda de um apartamento, cujo contrato não foi adimplido integralmente, na medida em que a compradora, diante da ausência de realização de obras pela construtora-vendedora, deixou de pagar parte relativamente pequena em relação ao preço integral, que representava menos de 15% (quinze por cento) do valor total do preço. O referido Ministro, na fase recursal, ao julgar a sentença improcedente na ação de resolução do contrato, reformou essa decisão judicial para prestigiar o fato de que o contrato não pode ser resolvido, se o inadimplemento for de leve gravidade, dando provimento ao Recurso Especial da vendedora, ressaltando a possibilidade da construtora realizar a cobrança do seu crédito remanescente.

Com esse voto, houve o reconhecimento da Teoria do adimplemento substancial, cujas palavras do Ministro Ruy Rosado de Aguiar merecem ser transcritas: “A resolução do contrato por inadimplemento do devedor somente pode ser reconhecida se demonstrada e aceita a falta considerável do pagamento devido. Do contrário, a regra é a de que se preserve o contrato, permitindo ao credor ainda insatisfeito a propositura da ação de cobrança do que lhe for devido. É por isso que na legislação estrangeira, no tratado de comércio internacional e também na mais recente doutrina nacional, tem sido admitido que o adimplemento substancial pelo devedor impede a extinção do contrato”. (REsp 226283/RJ, STJ, 4ª T., Voto Vencido, Min. Ruy Rosado de Aguiar, DJ 27.08.2001).

Como a jurisprudência representa a forma mais próxima dos anseios e necessidades sociais, e tendo em vista que a aplicação rigorosa da resolução contratual começou a criar distúrbios entre a satisfação e os interesses dos contratantes, especialmente do inadimplente, o desenvolvimento da Teoria do adimplemento substancial começou a aparecer nos julgados proferidos pelos Tribunais, ocasionando a transmutação de uma concepção individualista da autonomia da vontade para o início da autonomia privada calcada na eqüidade.

Com essa superação do liberalismo da vontade humana – que se observou ser prejudicial se não existir limites de equilíbrio – o Código Civil de 1916 passou a não responder mais os anseios sociais do seu tempo, indicando a necessidade da sua reformulação. Isso não significou que referido diploma era tecnicamente insuficiente, muito pelo contrário, conforme assevera Renan Lotufo: “... o Prof. Reale, propôs exatamente uma forma básica de revisão do Código Civil, porque o nosso Código Civil de Clóvis Beviláqua é considerado um

monumento legislativo por todo o mundo. É importante que se diga que o maior tratado de Direito Civil da Alemanha, o de Enneccerus, Kipp e Wolf, faz menção expressa à excepcional qualidade do Código Civil Brasileiro, em termos de juridicidade: considera um monumento legislativo pela sua estruturação. E é baseado ainda em outro pensador de origem filosófica que o Prof. Reale propõe a reforma dizendo que ‘a reforma tem que atender às inovações que ocorrem no tempo, tem-se que aperfeiçoar uma obra que é muito boa, mas que em grande parte ficou envelhecida nos conceitos de que partiu, não na sua estrutura eminentemente técnica’117”.

Destarte, o advento do novo diploma civil representou um aprimoramento do nosso ordenamento jurídico, na esfera do Direito Civil e Comercial, posto que o novo Código Civil contemplou matérias referentes ao último ramo da Ciência do Direito, o qual manteve toda a boa estrutura técnica do anterior, mas trouxe inovações em conceitos a fim de atender melhor aos anseios da sociedade contemporânea.

E sob esse objetivo do Código Civil vigente, constataremos a seguir quais as regras referentes ao inadimplemento, e se por ventura houve espaço para a previsão expressa do adimplemento substancial, ou se este será obtido por meio de uma interpretação dos dispositivos aplicáveis à espécie, bem como dos novos princípios incorporados ao referido diploma legal – anteriormente existentes na jurisprudência – e cláusulas gerais que recheiam o sistema aberto adotado pelo Código Civil de 2002.

1.3. O adimplemento substancial no Código Civil de 2002

Com o advento do novo diploma civil, ora em vigor, embora não houve grandes mudanças estruturais nos capítulos destinados às obrigações, operou-se uma verdadeira revolução na estrutura do Direito obrigacional, na medida em que se incorporou no ordenamento jurídico a estrutura da obrigação, como anteriormente já apresentada por Clóvis do Couto e Silva, ou seja, considerada como processo e dentro dos princípios basilares da boa-fé. Essa visão

117 Da oportunidade do Projeto de Código Civil (Projeto de Lei n. 118, de 1984), Tribuna 22 – Centro

também é acompanhada pelo jurista português Mário Júlio de Almeida Costa118 e por Judith Martins Costa.

A Teoria do adimplemento substancial apenas a partir da vigência do Código Civil de 2002 ingressa na legislação no direito brasileiro, por meio da conjugação de dispositivos legais, encontrando positivado o princípio da boa-fé objetiva (CC, art. 422) seu fundamento ao limitar o exercício de direito de resolução.

Com base nesta nova estrutura do Código Civil de 2002, Judith Martins Costa define o adimplemento como “.... o cumprimento da prestação concretamente devida, presente a realização dos deveres derivados de boa-fé que se fizeram instrumentalmente necessários para o atendimento satisfatório do escopo da relação, em acordo ao seu fim e às suas circunstâncias concretas119”.

A conceitação deste construto ganha relevo por meio da introdução do princípio da boa-fé na codificação, no capítulo destinado aos contratos, como requisito de validade de conclusão e de execução, ao ser disposto expressamente na norma positivada do artigo 422 do Código Civil atual, trazendo consigo o delineamento da Teoria do adimplemento substancial como exigência e fundamento do princípio consagrado em cláusula geral aberta na relação contratual. É pela observância de tal princípio, que esta teoria solidifica-se, especialmente fortificando-se como instrumento inibitório da resolução do contrato, ainda com base na tese construída por Clóvis do Couto e Silva.

Outra inovação que prestigia a depuração do conceito de adimplemento substancial é a apresentação de novo perfil metodológico do inadimplemento, nos seguintes termos: “a nova estrutura do inadimplemento, além de ensejar a apreensão sistemática das várias regras do próprio Título IV, oferece a possibilidade do seu tratamento conjunto com as demais regras e princípios que, em tema de Direito obrigacional, são – ou podem ser, conforme o caso concretamente examinado – correlatos ou afins, assim modulando um ‘sistema aberto de

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Direito das obrigações, p. 61.

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regras e princípios, axiologicamente orientado’120” – a expressão é de Canaris, Claus- Wilhelm121.”

Nessa nova concepção, e dentro de um sistema aberto construído por meio de cláusulas gerais e conceitos legais indeterminados – cujos conceitos serão aprofundamentos no capítulo VI – abandona-se a idéia de individualismo centrado na pessoa individual, para buscar-se a valorização da pessoa, como sujeito de direito, dentro das suas relações sociais, prestigiando inovadora compreensão do adimplemento e do inadimplemento das obrigações, na medida em que agora exige-se a conjugação dos interesses de ambos contratantes, e não apenas cega-se diante da exclusiva satisfação do interesse do credor.

“Com efeito, uma das marcas de nosso tempo é a transversalidade122, que recobre a fisionomia da sociedade civil, refletindo a extraordinária variedade dos grupos e tipos sociais, a pluralidade e os diferentes papéis desempenhados pelos sujeitos no exercício das suas liberdades civis e econômicas. A isto acresce (em razão da afirmação, em várias Constituições, do princípio da dignidade da pessoa humana e do livre desenvolvimento da sua personalidade), a relevância de uma noção da pessoa que se define não apenas por sua abstrata liberdade de firmar vínculos, mas por sua concreta e multidimensional vivência num espaço que é, concomitantemente, privado ou particular e público ou comum...123”.

No reconhecimento dessa multidimencional realidade existente nas relações sociais entre os seres humanos, “... a regulação do Direito das Obrigações vem, agora, plena de conceitos flexíveis, passíveis de concreção judicial, tal como os ‘usos do lugar’, ‘circunstâncias do caso’, ‘natureza da situação’, ‘eqüidade’, ‘desproporção manifesta entre as prestações’, ‘premente necessidade’, ‘boa-fé’, ‘utilidade da prestação’, ‘fins econômicos e sociais’ do direito subjetivo124”.

120

MARTINS-COSTA, Judith. Op. cit., p. 340.

121

Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito. p. 76.

122

A expressão é de Irti, Natalino. Società Civile, p. 16. que significa “a síntese de unidade e de multiplicidade – a extraordinária variedade dos grupos sociais.”

123

MARTINS-COSTA, Judith. Op. cit., p. 333.

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Diante dessa flexibilidade apresentada pelo sistema jurídico atual, o artigo 475 do Código Civil dispõe sobre o direito de resolução em caso de inadimplemento, porém não cita, em seu texto, o modo de descumprimento que cabe tal direito, repetindo a mesma omissão do código civil anterior. No entanto, essa omissão é suprimida com a integração do artigo 394, do parágrafo único do artigo 395 e do artigo 389 do mesmo diploma civil que definem a mora e discorrem sobre a inutilidade da prestação para o credor e a possibilidade deste resolver o contrato com o direito de indenização por perdas e danos, na perda do seu interesse pelo cumprimento da prestação pelo devedor.

A flexibilidade do sistema é construída com fundamento no princípio da boa-fé que edifica o adimplemento substancial, a contrario sensu, dos artigos 394 e 395, parágrafo único do Código Civil, porquanto que o descumprimento mínimo de parte da obrigação é configurado quando a ausência da prestação não violar a substância do contrato e não tornar inútil a prestação à parte adimplente, subsistindo o interesse desta em receber a obrigação executada no tempo, lugar e forma dispostos pela lei ou pelo contrato, ainda que reduzida ou prejudicada, minimamente, alguma parte destes critérios.