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2 O TRATAMENTO CONFERIDO AO LUCRO DA

3.2 A TESE DE APLICAÇÃO DE UMA PENA PRIVADA OU

3.2.1 O artigo 210 da Lei de Propriedade Industrial

O legislador brasileiro ao regular os direitos e as obrigações relativos à propriedade industrial, editando a Lei nº 9.279 de 14 de maio de 1996, assegurou ao prejudicado o direito de ressarcimento pelos eventuais danos sofridos (art. 209)352, bem como consagrou, como

349 MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à pessoa humana: uma leitura civil-constitucional dos danos morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 193-264. 350 A figura da pena privada, inclusive, chegou a ser prevista no projeto do Código de Defesa do Consumidor, sendo vetada pelo Presidente da República. O artigo 16, originalmente dedicado ao tema, previa: “Se comprovada a alta periculosidade do produto ou serviço que provocou o dano, ou grave imprudência, negligência ou imperícia do fornecedor, será devida multa civil de até um milhão de vezes o Bônus do Tesouro Nacional -BTN, ou índice equivalente que venha a substituí-lo, na ação proposta por qualquer dos legitimados à defesa do consumidor em juízo, a critério do juiz, de acordo com a gravidade e a proporção do dano, bem como a situação econômica do responsável”.

351 Expressão retirada de KONDER, Carlos Nelson., 2017, p. 237.

352 Art. 209, LPI. Fica ressalvado ao prejudicado o direito de haver perdas e danos em ressarcimento de prejuízos causados por atos de violação de direitos

critérios de lucros cessantes, três possibilidades: benefícios que o prejudicado teria auferido se a violação não tivesse ocorrido; benefícios que foram auferidos pelo autor da violação do direito; e remuneração que o autor da violação teria pago ao titular do direito violado pela concessão de uma licença que lhe permitisse legalmente explorar o bem; devendo ser concedido aquele mais favorável ao prejudicado (art. 210).

A solução da Lei de Propriedade Industrial (LPI), embora no mesmo sentido da Diretiva 2004/48/CE e das legislações dos demais países estudados353, confunde os princípios da teoria geral da

responsabilidade civil com os do instituto do enriquecimento sem causa, ao consagrar as vantagens patrimoniais aferidas pelo lesante no âmbito dos lucros cessantes (inc. II e III do art. 210) e, por isso, a doutrina nacional vem criticando a colocação legislativa.

Gisela Guedes, por exemplo, entende que a função dos lucros cessantes no âmbito do instituto da responsabilidade civil é “flagrantemente reparatória não sendo, portanto, recomendável introduzir na aferição desta faceta do dano patrimonial critérios que sequer são afeitos à responsabilidade civil, sob pena de a reparação dos lucros cessantes se transformar numa verdadeira caixa de Pandora”354.

Um dos primeiros critérios de catalogação dos prejuízos, cujas raízes residem no direito romanista, foi a classificação em danos emergentes e lucros cessantes. Os primeiros abrangendo os prejuízos

de propriedade industrial e atos de concorrência desleal não previstos nesta Lei, tendentes a prejudicar a reputação ou os negócios alheios, a criar confusão entre estabelecimentos comerciais, industriais ou prestadores de serviço, ou entre os produtos e serviços postos no comércio. § 1º Poderá o juiz, nos autos da própria ação, para evitar dano irreparável ou de difícil reparação, determinar liminarmente a sustação da violação ou de ato que a enseje, antes da citação do réu, mediante, caso julgue necessário, caução em dinheiro ou garantia fidejussória. § 2º Nos casos de reprodução ou de imitação flagrante de marca registrada, o juiz poderá determinar a apreensão de todas as mercadorias, produtos, objetos, embalagens, etiquetas e outros que contenham a marca falsificada ou imitada.

353 A crítica estende-se aos demais ordenamentos estudados.

354 GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz, 2011, p. 223 (grifos no original). As críticas também são realizadas por LINS, Thiago, 2016, p. 25 e ss; SAVI, Sérgio, 2012, p. 84 e ss; Savi, inclusive, disserta que a solução para o problema do lucro da intervenção no âmbito da responsabilidade civil deve ser rejeitada, o ordenamento jurídico deve impor ao interventor a obrigação de restituir ao invés de indenizar (SAVI, Sérgio, 2012, p. 89).

decorrentes do desfalque imediato sofrido pelo lesado, e o segundo àquilo que deixará de ingressar no seu patrimônio em decorrência do dano355.

Pontes de Miranda356 ensina que “o dano pode consistir em

diminuição do patrimônio no momento do fato que o causou, ou em impedimento de elevação do patrimônio; ali, o dano é emergente, damnum emergens; aqui, lucro cessante, lucrum cessans”.

A determinação dos lucros cessantes para efeitos de sua completa reparação, como a diminuição potencial do patrimônio da vítima em decorrência do evento danoso, mostra-se, como ensina Sanseverino357,

complexa. O julgador brasileiro tem na razoabilidade, a partir da análise da demanda, o critério de mensuração desses danos, mas a doutrina é específica ao consagrar que não basta a simples possibilidade de uma vantagem econômica, algo meramente hipotético, necessitando que tenha por base uma situação fática concreta.

A crítica desenvolvida por Nelson Konder, diante da opção do legislador brasileiro em consagrar na apuração dos lucros cessantes as vantagens patrimoniais que o agente auferiu é justamente nesse sentido. Nas palavras do doutrinador civilista, trata-se de “uma confusão conceitual, já que não há como afirmar que tenha sido a ação do interventor que tenha impedido o titular de direito de ganhar algo que seria razoável reputar que ele ganharia358”.

Nesse sentido, Menezes Leitão359, ao analisar o direito de

propriedade industrial no direito português, posiciona-se:

A concepção de que a não obtenção da remuneração corrente do mercado constituiria um lucro cessante do titular do direito industrial representa uma ficção conceptual, já que, não tendo sido celebrado qualquer contrato, o titular não deixou de adquirir nenhuma remuneração em consequência da lesão, não tendo assim sofrido danos. Só o enriquecimento sem causa constitui,

355 SANSEVERINO, Paulo de Tarso Vieira, 2010, p. 183.

356 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti, Tomo XXII, 1958, p 213. A diretriz encontra-se consagrada no artigo 402 do CC/2002: “Salvo as exceções expressamente previstas em lei, as perdas e danos devidas ao credor abrangem, além do que ele efetivamente perdeu, o que razoavelmente deixou de lucrar”. 357 SANSEVERINO, Paulo de Tarso Vieira, 2010, pp. 185-186.

358 KONDER, Carlos Nelson, 2017, p. 237.

por isso, uma fundamentação adequada em consequência desta solução [...].

Michelon Jr. disserta que os lucros cessantes são aqueles proveitos que não são obtidos pelo lesado e que, presumivelmente, o seriam se não houvesse ocorrido o evento danoso. Esse conceito jamais abarcou os lucros da intervenção e, portanto, o que ocorre na LPI não é efetivamente um direito à indenização pelos lucros cessantes, mas um impropriamente denominado direito à restituição da condictio por intervenção nos direitos de propriedade industrial. Não há assim o que se falar em equivalência entre o lucro obtido por quem utiliza ilicitamente um direito (lucros da intervenção) e o lucro que o titular deste teria obtido se não ocorresse à intervenção (lucros cessantes)360.

A justificativa legislativa, conforme aponta Gisela Guedes, na escolha do lucro da intervenção como parâmetro para aferição dos seus próprios lucros cessantes é a dificuldade quase insuperável que o titular do direito teria para provar, uma vez violada a patente, o modelo de utilidade e até mesmo a marca, a extensão dos seus lucros cessantes361.

Todavia, ainda que a responsabilidade civil se aproxime do enriquecimento sem causa, diante do elo comum dos institutos - a busca por regular as relações e manutenir o equilíbrio das esferas jurídicas dos envolvidos -, as fronteiras dessas duas figuras estão delimitadas pela função que cada uma exerce no ordenamento jurídico.

A justificativa apresentada não se mostra suficiente para romper as diferenças existentes nas raízes de cada instituto, o legislador nacional deveria ter construído no âmbito do enriquecimento sem causa as possibilidades de restituição das vantagens econômicas auferidas pelo

360 MICHELON JR., Claudio, 2007, pp. 201-202. Registra-se que o autor entende que os incisos I e III do artigo 210 podem ser entendidos como espécies do que tradicionalmente é entendimento por lucros cessantes no direito brasileiro. No entanto, aqui defendesse que os incisos II e III, do citado artigo, não podem ser enquadrados como lucros cessantes, dado que a expressão lucro da intervenção abarca tanto os valores de marcado quanto os demais lucros auferidos, diante da teoria da destinação jurídica dos bens. Kroetz também corrobora ao afirmar “Os benefícios auferidos pelo autor da violação do direito (inciso II) e a remuneração pela licença de exploração do bem hipoteticamente devida ao titular do direito violado (inciso III) são hipóteses em que se descrevem aportes indevidos incorporados ao patrimônio do infrator do direito de propriedade e como tal devem ser restituídos com fulcro na sistemática do enriquecimento sem causa.” (KROETZ, Maria Candida do Amaral, 2005, p. 168).

interventor, dado que o instituto já era defendido pela doutrina na época, sendo necessária, ao ver desta pesquisa, inclusive, uma mudança legislativa. Não só a restituição do lucro da intervenção, mas também dos valores de mercado, deveriam estar consagradas em um artigo especifico, compondo o direito restituitório.

Apesar de tecnicamente equivocado e das críticas doutrinárias362,

endossadas neste trabalho, a jurisprudência nacional vem aplicando, nessas últimas duas décadas, as disposições legislativas sem maiores reflexões363.

As decisões do Superior Tribunal de Justiça, em essência, seguem no sentido de que a pirataria ou a contrafação são, por si só, a prova do dano patrimonial, como se infere do voto da Ministra Relatora Nancy Andrighi, em uma demanda envolvendo a contrafação da marca da empresa Louis Vuitton Distribuição Ltda:

Dúvida não há, na Doutrina e na Jurisprudência (REsp nº. 30.582/SP, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, Quarta Turma, DJ 14/08/1995), de que os danos materiais apenas são devidos se efetivamente comprovados no curso da ação de conhecimento. A questão que aqui se coloca é outra, e está relacionada à identificação, nos casos de contrafação de marca, dos elementos suficientes à comprovação da existência de danos materiais. A tese, até hoje sustentada por este Tribunal, é a de que os danos materiais, em tais

362 Rosenvald que é adepto à instituição de penas privadas para os casos de restituição dos lucros por intervenção reconhece, ao analisar o artigo 210, que “em sede indenizatória, os ganhos do lesante com o ilícito são considerados irrelevantes, a pretensão de reparação de danos volta os olhos exclusivamente para a vítima, em uma tentativa de trazê-la ao estado anterior ao ilícito. Nada obstante, o dispositivo legal em questão, ao possibilitar o cálculo dos “lucros cessantes” pelos ganhos efetivamente auferidos pelo autor da violação de direito, instituiu método de quantificação restitutória disfarçada de quantum indenizatório. Tentativa louvável de contenção de comportamentos, mas tecnicamente inadequada.” (ROSENVALD, Nelson; KUPERMAN, Bernard Korman. Restituição de ganhos ilícitos: há espaço no Brasil para o disgorgement? In: Revista Fórum de Direito Civil. RFDC. Belo Horizonte, ano 6, n. 14, p. 11- 31, jan./abr. 2017, p. 22).

363 A pesquisa restou realizada a partir das decisões do Superior Tribunal de Justiça, utilizando os termos “marca” e “dano”; “lucros cessantes” e “propriedade industrial”; e “lucros cessantes” e “propriedade industrial”.

hipóteses, estão condicionados à prova de comercialização do produto falsificado, porquanto tal comercialização, ainda que de poucas unidades, constitui o elemento hábil a gerar dano patrimonial ao titular da marca. [...] O dispositivo autoriza a reparação material se houver ato de violação de direito de propriedade industrial, o que, no presente processo, constitui fato devidamente comprovado com a apreensão de bolsas falsificadas. Nesses termos considerados, a indenização por danos materiais não possui como fundamento a 'comercialização do produto falsificado', mas a 'vulgarização do produto e a depreciação da reputação comercial do titular da marca', levadas a cabo pela prática de falsificação. De fato, aquele que estaria disposto a comprar, por uma soma considerável, produto exclusivo, elaborado pelo titular da marca em atenção a diversos padrões de qualidade, durabilidade e segurança, não mais o faria se tal produto fosse vulgarizado por meio de uma falsificação generalizada. Conclui-se, assim, que a falsificação, por si só, provoca substancial redução no faturamento a ser obtido com a venda do produto distinguido pela marca registrada, o que autoriza a reparação por danos materiais364. Outrossim, o Superior Tribunal de Justiça, em regra, reconhece que, uma vez ocorrendo o uso indevido de um dos direitos de propriedade industrial, resta caracterizada a existência do dano patrimonial, na modalidade de lucros cessantes, que será apurado no âmbito de liquidação de sentença, observados os termos do art. 210 da LPI365.

364 BRASIL, STJ. Terceira Turma. REsp. 466.761/RJ, Rela. Min. Nancy Andrighi. Brasília, 03 de maio de 2003. No mesmo sentido: BRASIL, STJ. Quarta Turma. REsp 101.059/RJ, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar. Brasília, 7 de abril de 1997; BRASIL, STJ. Quarta Turma. REsp 101.118/PR, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira. Brasília, 11 de setembro de 2000; BRASIL, STJ. Quarta Turma. REsp 125.694/RJ, Rel. Min. Aldir Passarinho Junior. Brasília, 25 de outubro de 2005; BRASIL, STJ. Quarta Turma. AgRg no REsp 1097702/RS, Rel. Min. Aldir Passarinho Junior. Brasília, 03 de agosto de 2010; e BRASIL, STJ. Terceira Turma. REsp 1635556/SP, Rel. Min. Nancy Andrighi. Brasília, 10 de novembro de 2016.

365 BRASIL, STJ. Quarta Turma. REsp 1327773/MG, Rel. Min. Luis Felipe Salomão. Brasília, 28 de novembro de 2017.

Apesar de muito questionável, o legislador brasileiro considerou como melhor saída para devolução das vantagens patrimoniais auferidas pelo interventor, englobando os valores de mercado e o lucro da intervenção, o instituto da responsabilidade civil, em sede de proteção ao direito de propriedade industrial. Evidentemente, a norma é peculiar à violação desses direitos, devendo ser aplicada nos exatos termos previstos e não ser estendida para os demais casos de intervenção nos direitos subjetivos ou bens jurídicos alheios. Afinal, o conhecido terceiro método de cálculo “não é forma adequada de tratamento dogmático das intervenções sobre bem imateriais366”.

3.3 A CORRETA ABORDAGEM DO LUCRO DA INTERVENÇÃO