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CAPÍTULO IV ASPECTOS PSICOSSOCIAIS, FÉ, EXPERIÊNCIA RELIGIOSA

4.1 O câncer da mama: interpelações da identidade feminina

Na visão de Cantinelli et. al. (2006) em sua revisão da literatura em relação aos fatores psiquiátricos envolvendo o câncer de mama, a mama é a metonímia do feminino, sendo que o seu acometimento leva a uma série de questões: o seu posicionamento como mulher, atraente e feminina, ou a mãe que amamenta.

Em seu trabalho sobre os aspectos psicossociais do exame de mama, Ellery realça a importância da mama para as mulheres, ao afirmar:

A mama é um elemento essencial da feminilidade e sua perda ou mutilação parcial causa diversos efeitos psicológicos na mulher, os quais afetam a percepção da sexualidade e sua imagem corporal. Além das questões ligadas a percepção da sexualidade ou a imagem corporal, há aspectos conflitantes, relacionados à vida familiar e profissional. Por exemplo, a estrutura estigmatizante da sociedade e da família contribui para que a mulher que passou ou passa pela experiência com um câncer perceba diminuídas sua função de mãe e de trabalhadora O afastamento da vida profissional e a restrição das atividades domésticas podem ajudar a desenvolver sentimentos de inutilidade e menos valia, que interferem, sobremaneira, na inserção social da mulher e na sua auto-estima. Todos esses fatores associados concorrem para desencadear ou acentuar co-morbidades, como a depressão. (ELLERY, 2004, p.20)

Para Arantes e Mamede (2000, p.53), o seio é tido como objeto central de desejo e satisfação; a aquisição de uma doença localizada nesse objeto destrói grandes possibilidades de simbolização da mulher enquanto ser feminino. Ao ser ameaçada pela perda deste órgão, a mulher sente que sua identidade feminina está

sendo questionada, bem como a sua capacidade para amamentação e sua sensualidade.

E, na visão da artista e escritora. Amy E.Fraser:

Os seios se referem ou às duas mamas que ocorrem no peito dos seres humanos e outros primatas, especialmente marcantes após o desenvolvimento puberal. Os seios são o aspecto mais variável e protuberante da anatomia feminina. Embora sua função primordial seja reprodutiva, nutrir o nenê com leite, sua proeminência e vulnerabilidade são o que os tornam o principal emblema de distinção sexual. Os seios comandam a atenção, independentemente da intenção da mulher de comandá-los. Na cultura ocidental, “peitar” algo significa enfrentar algo com ousadia.[..]. Os seios são o local de beleza culturalmente definida, poder feminino, desejo masculino, e de identificação de gênero e de sexo. (FRASER, s/d, tradução nossa)9

E vale lembrar a idéia de Boff (1988, p.82), segundo a qual as mulheres que enfrentam o trabalho, a vida e os problemas do dia-a-dia com vigor e perseverança, são chamadas de “peitudas”. Em compensação, as mulheres que não conseguem atingir seus objetivos e reagem de forma invejosa e mesquinha, são chamadas “despeitadas”.

Em seu artigo Sentimentos e experiências na vida das mulheres com câncer de mama, Vieira et. al. (2005) concluem que mulheres com câncer de mama sentem modificações corporais ainda que não passem pelo processo de mastectomia, pois identificam algo estranho dentro de seu corpo. Com a possível retirada de uma ou ambas as mamas, as questões se agravam, porque há uma confrontação real no lugar do que antes era somente simbólico. Independentemente da faixa etária em que se encontra, lidar com alterações corporais, principalmente porque são relacionadas ao seio, é algo muito difícil para a mulher.

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The breast is either of the two mammae occurring on the chest of human beings and other primates, especially notable on the female after pubertal development. They are the most pronounced and variable aspect of female anatomy. Although the breasts' primary function is reproductive, to nourish the offspring with milk, it is their prominence and vulnerability that make them the chief badge of gender. The breasts command attention, independent of a woman's intention to command it. In Western culture, to 'breast' something means to meet or oppose boldly, one must contend with or advance against it. Breasts lead the way, they are bold and obvious and there is no place for them to hide. The subject's breasts are the location of culturally defined beauty, female power, masculine desire, as well as gender and sexual identification.

Graudenz (1981, apud GRACIOLI et. al. 2003, p.145) retoma a importante percepção de que “quando este símbolo corpóreo, intensamente carregado de narcisismo é mutilado, a auto-imagem pode danificar a mulher e estar presentes sentimentos de desamparo, de repulsão e de angústia”.

Desse modo, quanto maior a importância que a mulher confere às mamas, tanto maior será o sentimento de perda após a cirurgia. Os tratamentos complementares à mastectomia, como irradiação e quimioterapia, provocam distúrbios na identidade feminina: às vezes, além da perda da mama, torna-se necessária a retirada dos ovários, podendo ocasionar parada ou irregularidade da menstruação, aumento de peso e uma calvície parcial ou mesmo total. Isso sem incluir sentimentos durante o período do diagnóstico, que pode ser bastante traumático para a mulher, ao se defrontar com uma doença que é ameaçadora da vida.

O tratamento médico em si, por sua vez, é reconhecido como física e emocionalmente desgastante, e os sintomas de ansiedade (DRAGESET, LINDSTRON, 2003, p.403), depressão e baixa auto-estima são freqüentemente identificados pelas pacientes (CARROL, 2000; RAMIREZ, RICHARDS, JARRET, FENTIMAN, 1995; ROSSI, SANTOS, 2003; VIANNA, 2004). Venâncio (2004, p.55) destaca a importância do trabalho do psicólogo por conta das angústias ligadas à feminilidade, maternidade e sexualidade, em razão de ser o seio um órgão repleto de simbolismo para a mulher, bem como devido aos abalos significativos que ocorrem com o anúncio desse diagnóstico, seguido pelos tratamentos.

As manifestações de algumas das mulheres voluntárias deste estudo confirmam as afirmativas desses pesquisadores:

“Eu chorava todo dia.... era uma coisa muito ruim... Era uma angústia, uma tristeza que dava, assim....” “Chorei muitas noites.... Tinha noite que eu acordava e chorava, chorava...”

Outras pesquisas, como as de Bergamasco; Ângelo (2001, p.278) e também as de Rossi e Santos (2003, p.35), evidenciam que o sofrimento vivenciado pelas pacientes vai além da presença do nódulo; as dificuldades encontradas no serviço de saúde (burocracia, negligência) são percebidas como um importante problema a ser transposto.

Novamente, corroboram com essas referências dadas por esses autores, os relatos de algumas das mulheres mastectomizadas que participaram desse trabalho

Uma situação que torna tudo muito difícil, que está sendo muito difícil, é o lado financeiro, sabe ? No momento em que você precisa de uma pensão, você não tem. E as pessoas não têm entendimento. Perdi 50% do salário. Então tem muita coisa que não dá para pagar: por exemplo, o número de vezes que temos que vir ao serviço... E você não vê a compreensão das pessoas.

Aí, você olha: a gente que trabalha na área, a gente sabe como é .... Você começa a precisar marcar consulta.... aí não tinha consulta, só tinha pra maio. Aí eu vim aqui, eu pedi encaixe, mas era muita gente, muita gente.... Aí ele (o médico) falava assim: “vai me desculpar, mas vem outro dia”. Outro dia tava pior ainda.... E aí ia passando dia, até que eu consegui uma vaga, uma consulta. Ah!! Eu falo uma vaga, porque tu vê a volta que eu dei?

Enumerando as etapas referentes ao desenvolvimento do câncer da mama, Corbellini (2001,p.42) menciona a passagem por essa enfermidade como abrangendo três etapas que se sobrepõem: a primeira é o recebimento do diagnóstico e o estar com câncer (sentido como algo de natureza negativa); a segunda refere-se à realização de um tratamento longo e agressivo, e a terceira diz respeito à aceitação de um corpo marcado por uma nova imagem, com a necessidade de aceitação e convivência com a mesma.

Mudanças efetivas de vida ocorrem nessa condição. Nascimento-Schulze (1997, p.20), menciona que esse diagnóstico altera uma condição anteriormente estabelecida de atividade para colocar a mulher num lugar de passividade em relação à vida.

Portanto, como se observa a partir dos estudos acima, a mulher acometida por um câncer de mama não tem apenas o seu corpo modificado, mas também a sua imagem corporal e os diferentes aspectos de sua vida social e afetiva.

O fato de essas alterações percebidas serem repentinas ainda tem maiores repercussões. Uez (2006) conclui que a perda da mama produz alterações abruptas na imagem corporal de mulheres idosas que realizam mastectomia sem reconstrução. Para Fernandes (1997, p.43), quando a imagem corporal vai se alterando gradativamente como um processo de envelhecimento, o corpo se

modifica por etapas, sem interferir de maneira tão profunda na personalidade. No caso das pacientes com câncer de mama que retiram parcial ou totalmente a mama, a imagem de mulher é modificada bruscamente, sem tempo adequado para uma adaptação e ainda como conseqüência de uma doença grave. Essa nova situação assemelha-se a de um acidente ou de um roubo, chega e retira repentinamente algo importante e insubstituível - a mama.