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2. As Tradições na Obra de Miguel Torga

2.3. Paradoxos da visão torguiana

2.3.1. O classicismo e a modernidade

A obra de Torga é um manancial da cultura clássica que o autor admira e domina e cujo gosto talvez tenha começado nas suas aprendizagens no seminário. É ainda essa cultura filosófica e humanista que é marca peculiar do seu discurso e que denuncia não só no vocabulário erudito como também em expressões latinas recorrentes, que lhe podem vir igualmente do seu exercício enquanto médico. O contacto com outras civilizações, nomeadamente o que adquiriu nas viagens que realizou à Itália e à Grécia, pode ter contribuído para essa riqueza interior que uma leitura dos clássicos não dispensa, a par de uma certa inquietação misturada de esplendor e luz:

“E a essa restante terra de ninguém apeteceu sempre a claridade de um sol que fosse divino e pagão conjuntamente, e lutou sempre por ele e anteviveu-lhe como

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pôde a perenidade adivinhada. Até que o Sésamo se abriu. Não apenas Segesta, Agrigento ou Siracusa, reflexos já deslumbradores dessa luz, mas a Grécia real, Atenas palpável! A princípio nem os olhos queriam acreditar. Porque os pés oscilavam a pisar o solo bendito, parecia-lhes também miragem o milagre da aparição. E pediam às mãos que tacteassem os mármores, a saber se eles tinham consistência. A resposta foi um clamor de júbilo, um hino de triunfo. As pedras palpitavam! Então, como um bicho acossado por longa estiagem que chegasse alucinado à nascente, debrucei-me e bebi. E nada, ninguém, nem o tempo, nem a força, poderão despojar-me agora desse instante, que foi o encontro da beleza, da verdade e da paz. Levo a fonte comigo!” (Torga, 1983, 55-56).

Estas viagens fizeram-no sentir-se pertencente à matriz greco-latina, porquanto lhe transmitiam o equilíbrio perfeito e a luz primitiva e original que constituem a fonte da sabedoria que, no Sexto Dia d’A Criação do Mundo, ele regista ter trazido consigo. E é nessa fonte que bebe Homero, que considera o educador da Grécia, o arquiteto de paradigmas e modelos, que o inspiram e o inquietam. Orpheu Rebelde é um deles e é por isso que revela muitas vezes angústia quando pondera a sua pequenez perante a grandeza dessa civilização:

“Orfeu Rebelde

Orfeu rebelde, canto como sou: Canto como um possesso

Que na casca do tempo, a canivete, Gravasse a fúria de cada momento; Canto, a ver se o meu canto compromete A eternidade do meu sofrimento.

Outros, felizes, sejam os rouxinóis... Eu ergo a voz assim, num desafio: Que o céu e a terra, pedras conjugadas Do moinho cruel que me tritura, Saibam que há gritos como há nortadas, Violências famintas de ternura.

Bicho instintivo que adivinha a morte No corpo dum poeta que a recusa, Canto como quem usa

Os versos em legítima defesa. Canto, sem perguntar à Musa Se o canto

É de terror ou de beleza.”

45 Mudez é a revelação dessa angústia e da sua impotência perante a Ilíada:

“Mudez

Que desgraça, meu Deus!

Tenho a Ilíada aberta à minha frente, Tenho a memória cheia de poemas, Tenho os versos que fiz,

E todo o santo dia me rasguei À procura não sei

De que palavra, síntese ou imagem! Desço dentro de mim, olho a paisagem, Analiso o que sou, penso o que vejo, E sempre o mesmo trágico desejo De dar outra expressão ao que foi dito! Sempre a mesma vontade de gritar, Embora de antemão a duvidar Da exactidão e força desse grito. Mudo, mesmo se falo, e mudo ainda Na voz dos outros, todo eu me afogo Neste mar de silêncio, íntima noite Sem madrugada.

Silêncio de criança que ficasse Toda a vida criança

E nunca conseguisse semelhança Entre o pavor e pranto que chorasse.” (Torga, 1985, 195)

A imagem do poeta decorre também da influência do mito de Sísifo, um poeta a quem cabe a função interminável porque considera que a sua visão fica longe dos ideais e porque a sua constante obsessão pelo absoluto se assume como expressão do inalcançável. O poeta, para Torga, é um Ulisses, um Orpheu, pelo poder que representam e pela ideia de inacessibilidade e evasão:

“Maceração

Pisa os meus versos, Musa insatisfeita! Nenhum deles te merece.

São frutos acres que não apetece Comer.

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O que sabe nascer. Cospe de tédio e nojo

Em cada imagem que te desfigura. Nega esta rima impura

Que responde de ouvido.

Denuncia estas sílabas contadas, Vestígios digitais do evadido

Que deixa atrás de si as impressões marcadas. E corta-me de vez as asas que me deste. Mandaste-me voar;

E eu tinha um corpo inteiro a recusar Esse ímpeto celeste.”

(Torga, 1985, 175)

Citando Aguilar (2010, 51), as referências greco-latinas fazem parte das obsessões de Torga: “(…) os supliciados do Tártaro, Sísifo e Tântalo, são imagens do poeta que vê os seus objectivos gorados, que vê cair por terra o seu desejo poético, que vê como inalcançável a Poesia, arte suprema. Orfeu é o poeta. Ariadne e Eurídice, metáforas da Poesia, o labirinto, os caminhos poéticos dos quais parece não ser possível fugir. Prometeu e Ícaro excedem-se, cometem hybris e, como tal, são castigados. O mesmo sucede com o eu poético”.

O quadro do Apêndice I reflete a expressão da riqueza dos ideais clássicos incorporados nos textos de Torga.

No seguimento deste desencanto e inspirando-se n’O Banquete de Platão, transmite as desilusões acumuladas ao longo da vida referindo mesmo que “o poeta é um trambolho social. Nem Platão o queria na República dele” (Torga, 1986, 185). O quadro que consta dos Apêndices I, II e III é um espelho claro das inspirações clássicas que muitas vezes serviram de mote a Miguel Torga e que fazem parte da sua biblioteca pessoal. Mas esta riqueza do universo torguiano completa-se com a visão da modernidade a que o poeta não foi alheio; e dessa modernidade ressaltam valores de resistência e de esperança, pela visão libertária que também a própria poesia veicula e que reenvia para o caminho do Homem. A antítese classicismo/modernidade está também na utilização de uma linguagem diáfana capaz de expressar, por um lado, a rebeldia, por outro, a esperança e, por outro, o desafio e a utopia. É como se o mundo da antiguidade sustente a visão do mundo novo e surja neste a prece para os vindouros que deverão ver na palavra uma espécie de manifestação em que se refletem ideais que são eternos – o Belo, o Amor, os Valores Humanos e até os Costumes. Sibila

47 (Torga, 1983,78) mostra, pois, como o clássico penetra no moderno uma vez que a sua voz poética é o impulso do poeta para a busca incessante das questões do Homem:

“Sibila

Tanto chamei, que um dia respondeste. Mas não pude entender o que dizias. As palavras ou eram profecias, Ou sons vazios de qualquer sentido. Homem apenas, não cuidei que houvesse Voz do céu ou da terra que tivesse Eco tão desigual no meu ouvido.

Então só desejei o teu silêncio, A contida mudez dum mar gelado. Nada saber de ti, senão que existes Por detrás destes gritos e lamentos. Ter apenas a íntima certeza

De que vês o meu sonho de pureza Gravado no reverso dos momentos”. (Torga, 1983, 78)

Mas se se descer ao mais rudimentar do existir humano, como acontece no poema Regresso (Torga, 1978, 62), o sentido telúrico que perpassa a sua obra assenta na mais antiga conceção do valor da terra (enquanto segurança, colo materno e base de sustentação), em cujo colo se deita e a quem confia os segredos sempre que a ela regressa, opondo-se ao conceito que ela assume nos nossos dias – a terra como escravidão, como expressão da dificuldade e da própria dureza:

“Regresso

Regresso às fragas de onde me roubaram. Ah! minha serra, minha dura infância! Como os rijos carvalhos me acenaram, Mal eu surgi, cansado, da distância!

Cantava cada fonte à sua porta: O poeta voltou!

Atrás ia ficando a terra morta Dos versos que o desterro esfarelou.

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Depois o céu abriu-se num sorriso, E eu deitei-me no colo dos penedos A contar aventuras e segredos Aos deuses do meu velho paraíso.” (Torga, 1978, 62)

É ainda na forma que clássico e moderno se cruzam. As Odes, por exemplo, são a imagem desse cruzamento onde a forma poética (clássica) se conjuga com o ritmo, a musicalidade e a espontaneidade modernas que não são mais do que o reflexo do próprio pulular interior do mundo de Torga, como se da própria respiração se tratasse, como está bem patente na Ode Instante e na introdução que Torga fez à mesma quando do miradouro vislumbra a cidade de Chaves:

“Miradoiro

Não sei se vês, como eu vejo. Pacificado, Cair a tarde Serena Sobre o vale, Sobre o rio, Sobre os montes E sobre a quietação Espraiada da cidade.

Nos teus olhos não há serenidade Que o deixe entender.

Vibram na lassidão da claridade. E o lírico poema que me acontecer Virá toldado de melancolia,

Porque daqui a pouco toda a poesia Vai anoitecer.”

(Torga, 1986, 196)