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Conclui-se, então, que o animador nunca deve atuar sozinho. A sua atuação deve ter em conta os outros dois elementos e com eles colaborar de uma forma horizontal, no sentido de conhecer as suas expectativas, prioridades e potencialidades. Por outro lado, também a pluridisciplinaridade se torna fundamental na sua intervenção social, uma vez que há outras ciências sociais que podem dar um contributo muito importante no conhecimento e avaliação dos destinatários da sua intervenção – psicólogos, sociólogos, assistentes sociais e mesmo

O ANIMADOR

 Intermediário entre as necessidades e ambi- ções do grupo e a instituição;

 Impulsionador executivo do projeto;  Organizador e orientador do processo

A INSTITUIÇÃO

 Origem da animação – suporte filosófico do projeto;

 Oferece a estrutura funcional;  Oferece os recursos necessários à

execução do projeto.

A POPULAÇÃO

 Destinatários da animação;  Beneficiários do projeto;

 Grupo cujas características justifi- cam o projeto.

TRIÂNGULO CON- TRATUAL DA ANI-

84 professores, podem dar um grande contributo na deteção de problemas de integra- ção/exclusão, consumos perigosos, ou comportamentos desviantes.

Desde há algumas décadas, fala-se muito em comunidade educativa, com a qual se pretende

“assegurar a participação de todos os intervenientes no processo educativo, nome- adamente dos professores, dos alunos, das famílias, das autarquias e de entidades representativas das atividades e instituições económicas, sociais, culturais e cientí- ficas, tendo em conta as caraterísticas específicas dos vários níveis e tipologias de educação e de ensino”27

.

Esta comunidade rege-se por direitos e deveres, consagrados no Regulamento Inter- no de cada escola ou agrupamento de escolas, dos quais se podem destacar alguns, atendendo à sua pertinência para este estudo e apresentados no quadro seguinte (com adaptação da auto- ra):

Direitos da comunidade educativa Deveres da comunidade educativa  Colaborar no âmbito das suas funções, em

todas as iniciativas de caráter cultural e recreati- vo, ou quaisquer outras, que tenham como fim a valorização do indivíduo enquanto elemento da escola ou elemento do meio em que está inserido;  Colaborar em campanhas levadas a efeito pela escola, no sentido da valorização do Homem no seu todo;

 Expressar livremente a sua opinião, reco- nhecendo aos outros o direito de se expressarem também livremente.

 Fomentar na Escola o convívio saudá- vel, sendo correto no relacionamento com os demais elementos da comunidade escolar;  Procurar valorizar-se e contribuir para o desenvolvimento moral e intelectual dos restantes membros da escola.

Quadro 2.- Direitos e deveres da comunidade educativa (do Agrupamento de Escolas Nadir Afonso, de Cha- ves, consultado em 2012, junho)

A participação da família e dos restantes elementos da comunidade na vida das esco- las demonstra o papel importante que a família, a comunidade e a escola têm no contributo para o sucesso das crianças, tanto na escola como na vida. Enquanto parceiros, todos podem

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85 contribuir com os seus pontos fortes, competências, perspetivas e conhecimento para o pro- gresso do processo educativo e todos devem ser bem acolhidos, integrados e as suas contri- buições respeitadas. No entanto, a presença de todos estes elementos traz para a escola, a par dos referidos pontos fortes, outros pontos menos positivos, como sejam os inúmeros proble- mas disciplinares e de anomalia social com que a escola se confronta no dia-a-dia. A cada dia a sociedade e a família descarregam na escola a responsabilidade de resolver situações que, por si só, não conseguem resolver: hoje a escola é chamada a prevenir a toxicodependência e outros consumos prejudiciais e comportamentos considerados desviantes; a formar para o empreendedorismo; a promover a educação ecológica; a motivar para a prevenção rodoviária, a transmitir princípios de educação sexual e hábitos de alimentação saudável; a combater e prevenir a violência; a transmitir valores socialmente relevantes, etc.

A escola é assim uma organização complexa que vive diariamente conflitos e dile- mas ainda mais complexos, fruto das vivências extraescola, como refere Grilo:

“para além da escola e da família, a comunidade é em todas as suas vertentes um factor que cada vez mais influencia e condiciona os comportamentos e atitudes de cada cidadão, sendo portanto essencial que a educação e formação que são minis- tradas tenham em conta esse enquadramento que, em muitos casos, é determinante para o modo como cada um actua no seio da sociedade a que pertence” (Grilo, 2010, 137).

A educação e formação dos jovens dependem de um conjunto de fatores muito vari- ados, relacionados com a sociedade em que se encontram inseridos. À escola é atribuída a responsabilidade de formar para a cidadania, não apenas numa perspetiva específica, mas, como afirma Grilo,

“num quadro muito alargado que integra: a) o ensino dos conhecimentos e saberes considerados essenciais; b) a aquisição de atitudes e comportamentos que habili- tem os jovens a enfrentar um mundo muito competitivo e em mudança; e, final- mente, c) o respeito e a prática dos valores como base para a formação de cidadãos livres, solidários e respeitadores da liberdade dos outros” (Grilo, 2010, 138).

Esta tão grande complexidade – quer a nível de situações, quer a nível de funções a desempenhar – poderá justificar a pertinência da figura do animador sociocultural no contex-

86 to escolar. Este profissional pode ajudar a resolver situações para as quais o professor não tem disponibilidade e/ou formação específica de que se possa socorrer para solucionar muitos desses conflitos ou simplesmente para colmatar muitas lacunas que a nova escola criou. Tra- balhando em cooperação com os restantes elementos da comunidade escolar, o animador conseguirá conhecer, criar e impulsionar movimentos culturais na comunidade, facilitando o desenvolvimento harmonioso da personalidade dos indivíduos. O animador poderá diagnosti- car problemas e necessidades da comunidade, discuti-los com o grupo, facilitando a comuni- cação e a aprendizagem do desenvolvimento autónomo individual e coletivo que vise o saber ser e o saber fazer. O animador poderá servir de intermediário entre a escola, a família e a comunidade, facilitando a intercomunicação e a intervenção saudável da cada um e de todos na vida escolar. Deste modo libertar-se-á o docente para funções mais pedagógicas, canali- zando a sua energia para o processo de ensino-aprendizagem dos alunos, tão necessário à formação académica dos jovens.

3.4. Os arquétipos torguianos de axiologia cultural

A propósito das finalidades do conhecimento identificáveis em Miguel Torga (co- nhecimento, participação/opção e identidade), Maia (2000, 259-267) apresenta para o conhe- cimento quatro vertentes em que ele se manifesta: o do senso comum, o das intuições que decorrem sobre as inquietações do senso comum, o conhecimento escolar – cujo não aprovei- tamento Miguel Torga lamenta – e o que resulta do calcorrear da sua pátria na descoberta do ‘Portugal nuclear’. Este ideal comunitário de pessoas e de natureza será objeto de reconheci- mento lamentado quanto ao seu desaparecimento. Mas Torga centra nele o grande sentido da existência e o começo da construção da própria identidade pessoal. Só faltaria acrescentar a este homem em comunhão com a natureza a capacidade de apreciar a beleza da mesma. O que não pode acontecer é o que sucedeu com as aldeias comunitárias de Castro Laboreiro, Vilarinho das Furnas ou Rio de Onor: separar primeiro o homem da natureza, das relações fraternas e da liberdade natural e tentar sobre esse cadáver construir o futuro (Torga, 1973, 113-114), etc. O ideal seria que a "humana e natural liberdade” fosse "acrescida de ciência e

87 cultura" (Torga, 1973, 114). Este ideal torguiano já tinha antes sido formulado sem rodeios em termos muito significativos no Diário II:

"a gente pouco sabe e pouco pode. Conhece apenas duas regras de higiene (que o corpo se recusa a observar), três de moral (que o instinto se recusa a praticar), e uma ou duas de civilidade (que só a polícia muito limitadamente nos faz cumprir), e pode apenas o que pode um bicho solicitado por um tropismo fundamental. Mas que maravilhoso ser seria aquele que pudesse entender a beleza perfeita duma flor, e fosse capaz de se pôr em espírito numa brancura assim (de uma nevada em 28 de Dezembro!), gratuita e perfumada!" (Torga, 1977, 20-21).

É centrada nesta ideia de comunitarismo e de essencialidade telúrica que Miguel Torga explica a importância das novas técnicas, do saber e dos padrões morais. E é nas opor- tunidades da vida que a relação humana e a dignidade de cada um se devem manifestar: a reconciliação e não vingança sem sentido (Torga, 1988, 53-63) ou a recolocação da corrente de vida (não vingança) que o Alma Grande (Torga, 1988, 15-24) tentou interromper; o desa- fio à superação das desavenças de Inimigas (Torga, 1976, 119-126), em favor da criança cuja mãe não tem leite; o apreço moral – inverso ao do ‘moralismo’ corrente – pelo comportamen- to de três arquetípicas figuras femininas: Mariana (Torga, 1988,109-119), Madalena (Torga, 1987, 39-47) e Lídia (Torga, 1976, 37-43); ou a supremacia da vida de uma criança sobre a ‘salvação’ da alma da mãe em parto de risco (Torga, 1988, 225-237).

Não deixa de poder considerar-se ingénua a imagem ou ideal de comunitarismo tor- guiano. Também não é de todo linear ou coerente a valoração de atitudes semelhantes: Se a Lídia é ‘condenada’ por não favorecer a vida e antes ter levado à morte dos dois pretendentes; e se a Mariana é muito elogiada por se ter disposto gratuitamente à geração dos filhos que ‘eram só seus’, já os irmãos de Matilde (Torga, 1976, 111-118) não toleraram que a irmã fos- se ‘enganada’ – não se sabendo se por o ‘culpado’ se negar a continuar a vida ou se por essa vida não se ter gerado.

Há ainda algumas referências a tradições familiares e sociais que não se apresentam linearmente coincidentes, embora permaneçam lógicas no contexto dos hábitos culturais da época e da valoração torguiana: as relações familiares de amizade, respeito ou simples cedên- cia a mecanismos de apelo da natureza; o distanciamento familiar na relação pais-filhos, co- mo os pais do menino do conto Jesus (Torga, 1987, 81-84); as figuras marginalizadas da so-

88 ciedade: o Garrinchas (Torga, 1988, 121-126), o Julião (Torga, 1988, 65-82), o Gonçalo (Torga, 1976, 95-102) e o Pé Tolo (Torga, 1976, 217-225). As considerações de ordem ideo- lógica e sociocultural expressam claramente a posição do autor, mas a apresentação iconográ- fica (ou, mais apropriadamente, etnográfica) é medida sem proposta de alteração.

3.5. Os valores presentes na tradição

Os costumes resultam no estabelecimento de um valor para a ação humana, conferidos pelos próprios homens e na sua relação com os outros. Os costumes estão envolvidos pelos conceitos de ética e moral, os quais se confundem, mesmo etimologicamente, pois, apesar de terem raízes diferentes – ethos do grego e mores do latim – ambos significam costume, maneiras de ser. Aceitando a distinção entre os dois termos, Maia considera que a “ética é para os princípios gerais reguladores da bondade ou maldade das acções; e a moral como aplicação desses princípios a cada uma das acções em concreto: conservar a vida ou respeitar o semelhante, por exemplo, são princípios (…) que numa acção concreta podem implicar punir ou até matar alguém” (Maia, 2008, 44-45). Pode-se dizer que a ética se prende com o estabelecimento de deveres, a partir da reiteração humana e da significação que lhe é atribuída, enquanto a moral será o conjunto de normas e regras destinadas a regular os valores criados pelos sujeitos, nas suas relações entre si e com a natureza, pois é no domínio da moral que aprovamos ou reprovamos os comportamentos do outro. Dito de outra forma, a moral aponta o comportamento considerado bom ou mau, enquanto a ética procura fundamentar os valores que norteiam o comportamento. Na forma como o homem põe em prática os valores que considera norteadores das suas atitudes, ou na forma como avalia essa prática nos outros, corre-se o risco de igualar duas naturezas: a humana e a ética, pois como salienta Maia, “a radicalidade com que a nossa linguagem associa comportamento moral e natureza humana pode traduzir duas certezas: a não distinção clara entre o conceito de ética e o conceito de moral; e a profunda relação entre acção ética concreta (mora) e a dignidade de cada um” (Maia, 2008, 47). Assim, podem-se encontrar valores diferentes de acordo com as diferentes culturas, mas não se encontrará uma cultura sem valores, uma vez que estes se encontram na interação humana, conferindo um

89 significado à realidade vivida, pois “é num objecto, numa acção, numa ideia ou num desejo que se pode expressar um valor: ninguém é bom sem boas acções, artista sem obras de arte, santo sem atitudes condizentes” (Maia, 2008, 55), cabendo ao homem avaliar as especificidades daquilo que o afeta e que por ele será aceite ou rejeitado já que “só para o homem é que os valores existem: eles são relativos aos homens (de uma época e/ou sociedade); e sem a apreciação do homem não pode ser afirmado o valor” (Maia, 2008, 55).

Na época contemporânea fala-se muito na crise de valores associada ao avanço vertiginoso das ciências/tecnologias que transporta consigo uma igualmente rápida criação de novos valores inerentes ao mundo moderno. Com efeito, justifica-se esta criação de novos valores associados à modernidade, uma vez que, sempre que o progresso acrescenta algo à sociedade, surge a necessidade de ajustar comportamentos sociais de modo a regular a convivência. No entanto, tal não significa que, porque surgiu a necessidade de uma nova consciencialização ecológica, se devam abandonar referências tradicionais, uma vez que, sejam quais forem os avanços, a natureza merece o mesmo respeito que sempre mereceu e a tradição diz-nos que esse respeito foi muito mais vincado num passado longínquo. Note-se que muitos dos valores modernos surgiram da necessidade de repor os valores existentes na tradição e que foram progressivamente esquecidos graças à globalização económica, que muitos julgam exigir o individualismo e o relativismo que dificultam a permanência de certas qualidades morais e pessoais. A chamada crise de valores está particularmente presente no conceito de família, que perdeu quase todo o seu significado, seja como modelo relacional, seja como primeira fonte de transmissão de valores. O processo de globalização universalizou as instituições modernas, conduzindo-as, intencionalmente, a um processo de abandono da tradição.

A tradição, ancorada na memória de um povo – individual ou coletiva – nas suas lembranças e aprendizagens passadas, pode ser transmitida através das experiências socialmente partilhadas. A tradição constitui-se, assim, como parte da cultura humana e possibilita a produção de sentidos compartilhados através de um processo dinâmico e ativo, capaz de transmitir ensinamentos, validados pela fiabilidade conferida aos seus transmissores. Estes são detentores de diferentes formas de saberes, de práticas culturais diferenciadas e de tradições variadas e, por isso, podem contribuir para a construção de identidades. Maia (2004, 137) refere que “o passado desempenha ainda dois papéis que não

90 podem ser descurados, apesar de contraditórios: dão-nos uma componente essencial de paz que é a identidade e a segurança dos ideais e laços afectivos (familiares, patrióticos, culturais, etc.); mas pode alienar-nos no presente e descomprometer-nos no futuro”.

3.6. Distinção paradigmática das relações com a natureza e a vida

No Diário I, Torga admite que já não pertence por completo a S. Martinho de Anta, uma vez que lhe falta já o movimento dos elétricos e as fontes culturais (livrarias e cinema) da cidade aos quais já se habituou, considerando muito fácil a perda daquilo que o liga, (e apesar de tudo ligá-lo-á sempre) ou desliga da terra mãe: “Como a gente se perde! A linguagem que o meu sangue entende – é esta. A comida que o meu estômago deseja – é esta. O chão que os meus pés sabem pisar – é este. E, contudo, eu não sou já daqui” (Torga, 1989, 12). Apesar de se confessar inúmeras vezes preso a essa terra, o convívio com a vida citadina faz-lhe falta, acabando por se sentir desintegrado nos dois lugares, como uma árvore transplantada que não se adaptou ao novo solo “mas que morrem se voltam à terra natal” (idem).

O homem passa demasiado tempo a resolver problemas que julga muito importantes, inadiáveis, a refletir sobre todas as desgraças que os jornais anunciam, seja no país seja no mundo e esquece-se de observar as coisas pequenas, mas muito belas, que o rodeiam e lhe dão alento. O homem da cidade gasta os seus dias em tarefas importantíssimas, em reflexões muito profundas, em conferências e palestras, em negócios e empreendimentos, no corre- corre diário (usando a expressão francesa – métro, boulot, dodo), não tendo tempo nem disponibilidade para ver que todos os dias o sol nasce para iluminar o seu dia, que as estrelas surgem para iluminar a sua noite, que as estações do ano se sucedem sempre do mesmo modo, permitindo que a terra se renove e dê os frutos necessários à sua sobrevivência. Torga lembra que “daqui a meia dúzia de anos morre-se mesmo de vez, e adeus sol, adeus lua, adeus tudo o que o mundo tinha para se ver, e não se viu” (Torga, 1989, 30).

A relação, e até comunhão, de Torga com a terra e com os ciclos da Natureza foi já tratada, comentando o seu telurismo e regionalismo. Mas, nessa comunhão com as origens, afirma-se um homem dividido entre as leis naturais e as leis sociais, um homem que alude a

91 infratores como sendo “homens comuns, sem passado criminal (salvo raras excepções), que atentam contra a propriedade ou contra pessoas num espaço fechado de relações interpessoais ou interfamiliares”, designados pela metáfora “bons criminosos”, não porque sejam uma espécie de bons bandidos mas porque existem frequentemente “vínculos de afecto entre os ofensores e os ofendidos, entre o matador e a sua vítima, surgindo a violência quer como uma erupção súbita e irracional, como se brotasse da própria Natureza, quer como consequência de uma vingança longamente amadurecida, previsível, e por vezes, desejada pelos membros de uma dada comunidade” (Sampaio, s/d, 2). Os marginais dos contos de Torga, ou os bons criminosos na designação de Sampaio, são os filhos da terra que, por uma vontade própria ou por imposição da natureza, se encontram foragidos ou desterrados, mas “aspiram um dia regressar à terra de origem, para aí morrerem ou serem resgatados do esquecimento ou de crimes não cometidos”. O autor retrata a complexidade do homem e das suas relações com o próximo e com a natureza, pondo frequentemente em confronto no mundo rural, a rivalidade, o ódio e agressividade, por um lado e a fraternidade e a solidariedade, por outro. Esta luta de forças entre o bem e o mal estão bem presentes, entre outros, nos contos Fronteira, O Leproso e Repouso, atrás referidos.

O Joaquim Lomba, do conto Repouso, apesar de ser temido por todos e por isso mal recebido, aproxima-se constantemente da terra e é nela que vai ser vencido, quando a ingenuidade de uma criança o desafia e o trata como ser humano, fazendo-o ceder e render- se, após um diálogo em que o garoto sai vencedor:

“- Oh, oh! Não queria mais nada! Você é parvo ou faz-se? - Deixa cá ver a cana, e cala-te.

- Vá lamber sabão. Ora o palerma! Faça como eu: desembelinhe as pernas. Pelos olhos do Lomba o clarão de sangue e raiva passou mais vivo. Mas passou e deixou atrás de si um sorriso compassivo, terno, que lhe refrescou o coração. - Então não dás?

- Pois não dou, não. Se estiver tão livre da peste! (…)

- Chegou para mim... - murmurou outra vez, agora a caminhar vagarosamente por entre os penedos” (Torga, 1988, 50).

No conto Fronteira é um forasteiro que se vê vencido pela lei dos homens, habitantes da aldeia, em especial por uma mulher que o leva a ligar-se para sempre a esta

92 terra, rompendo com os limites entre a legalidade e a ilegalidade em favor da convivência harmoniosa entre os dois polos: “Mas Fronteira tinha de vencer. Primeiro, porque o coração dos homens, por mais duro que seja, tem sempre um ponto fraco por onde lhe entra a ternura; segundo, porque o Diabo põe e Deus dispõe” (Torga, 1988, 30). Foi assim que Robalo não teve outro “remédio senão entrar na lei da terra!”, em detrimento da Lei do Estado já que o amor pela contrabandista deu os frutos desejados: um filho e a rendição do seu pai.

Já no conto O Leproso, o Julião, um filho da terra, por uma “fatalidade monstruosa, transforma-se num “testemunho, portanto, de que nela cresciam tão grandes males” e por isso terá de ser expulso como um membro doente que transmite o mal. Mais tarde, por pretender uma aproximação à mesma terra que o viu nascer, será perseguido e queimado já que essa é a forma de erradicar o mal que possui.

Relativamente ao conto A Caçada, afirma Sampaio (s/d,12) que é uma “espécie de alegoria da condição humana, da capacidade instintiva de conservação e de sobrevivência do homem “, já que, após uma longa e penosa caminhada por vales e montanhas, em busca da vingança, avançavam “cautelosamente, numa recíproca vigilância “, pois o mais ínfimo descuido poderia por em causa essa sobrevivência do homem. Este jogo tão perigoso termina no momento em que “a tarde empalideceu de vez e a serra começou a cobrir-se de uma poalha de penumbra”, preparando assim o cenário perfeito para o trágico final. Mas, em vez do tiro esperado pelo Felismino, surge a reconciliação sob a forma de um gesto meigo e cheio de calor humano: “E, em vez do tiro que esperava, bateu-lhe nas costas a voz grossa do