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2. As Tradições na Obra de Miguel Torga

2.3. Paradoxos da visão torguiana

2.3.2. O sagrado e o profano

Torga é um conhecedor profundo das Sagradas Escrituras. Numa nota de 14 de Setembro de 1992, recorda que desde muito novo, ”à noite, entre o remendo e a roca, minha Mãe, à luz da candeia, lia incansavelmente um livro” (Torga, 1995, 137) – a Bíblia – que ele depois herdou e que “foi a maior fortuna” que a mãe lhe podia legar. As histórias desse livro passaram a alimentar a sua imaginação e constituíram uma referência obrigatória na memória

49 “dos ninhos procurados e achados (…) dos primeiros frutos cobiçados nos quintais dos vizinhos (…) das procissões solenes (…) do paraíso perdido” (idem). Ao longo da sua obra encontram-se variadíssimas alusões ao Deus da sua fé inicial, bem como provas da sua crença e da esperança que Nele deposita. No entanto, essa esperança torna-se muitas vezes desesperança, na medida em que, seja como médico, seja como poeta, se sente frequentemente impotente perante a necessidade de um milagre. Este sentimento revela-se num conflito íntimo que se desenvolve no interior do poeta como um grito da sua inocência e consciência que buscam entender um sentido do destino trágico do ser limitado que é o homem.

No conto Natal, o autor refere que o Garrinchas rezava enquanto pedia esmola, na esperança que as pessoas temessem Deus e por isso lhe dessem alguma esmola: “Sim, rezava quando batia a qualquer porta. Gostavam... Lá se tinha fé na oração, isso era outra conversa. As boas acções são que nos salvam. Não se entra no céu com ladainhas, tirassem daí o senti- do. A coisa fia mais fino!” (Torga, 1988, 121). Porém, a oração não era sentida, era oferecida aos residentes de cada casa porque era disso que gostavam, embora se saliente que as rezas, por si só, não conduzem à salvação, isto é, as orações sem ações não alimentam os pobres nem salvam os ricos: seja para alimentar o corpo seja para alimentar a alma, é preciso traba- lho, esforço, “dar ao canelo”. No fim do dia, sem outro abrigo, foi uma capela que o acolheu, proporcionando-lhe abrigo, conforto e companhia para a noite de Natal. A imagem da Vir- gem surge aqui personificada, sorrindo por duas vezes e acabando por lhe fazer companhia, ilustrando a conotação dessa noite como sendo, tradicionalmente, a festa da família: “— Con- soamos aqui os três — disse, com a pureza e a ironia de um patriarca. — A Senhora faz de quem é; o pequeno a mesma coisa; e eu, embora indigno, faço de S. José” (Torga, 1988, 126). Apesar disso, em Torga, o ponto de partida é o Homem que deseja ser Deus e perante a angústia de não O encontrar, nega-O, como transmite no poema Desfecho:

“Desfecho

Não tenho mais palavras. Gastei-as a negar-te...

(Só a negar-te eu pude combater O terror de te ver

Em toda a parte.)

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Fosse qual fosse o chão da caminhada, Era certa a meu lado

A divina presença impertinente Do teu vulto calado

E paciente...

E lutei, como luta um solitário

Quando alguém lhe perturba a solidão. Fechado num ouriço de recusas, Soltei a voz, arma que tu não usas, Sempre silencioso na agressão.

Mas o tempo moeu na sua mó O joio amargo do que te dizia... Agora somos dois obstinados, Mudos e malogrados,

Que apenas vão a par na teimosia.” (Torga, 1962, 50-51)

Esta impossibilidade obriga-o a refugiar-se nos seus valores humanistas que tendem a fazer dele um absoluto donde resulta um conflito com o próprio Homem. Conforme refere Paiva (s/d, 65)17, “esse Homem solitário e consciente da sua grandeza e pequenez, das suas glórias e misérias, não tendo a quem recorrer para a sua proteção ou desabafo, é a si mesmo que confessa as sua faltas ou se orgulha das suas virtudes”.

Assim, torna-se evidente que Torga se torne indeciso face ao absoluto e à transcendência e esta atitude desemboca num conflito interior uma vez que se lhe torna inacessível a presença física de um deus que seja humano, mas revelado, que seja tangível, mas imanente, que seja humano, mas transcendente. A mesma imagem surge ligada à terra, que não é só lugar de realização do homem, mas também ligação ao sagrado uma vez que a terra é a melhor manifestação do sagrado porque produto da criação. Essa reputação ficou extraordinariamente representada no poema S. Leonardo de Galafura. Mas é também simbolizada no grito que ela dá para o céu que tantas vezes a parece esquecer (pela dureza da vida do homem que a habita) ou no silêncio que uma pátria contém perante a opressão política:

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http://www.revistaeutomia.com.br/volumes/Ano1-Volu me 1/especial-destaques/Entre-Pessoa-e-Regio_Jose- Rodrigues-de-Paiva.pdf

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“Panorama

Pátria vista da fraga onde nasci. Que infinito silêncio circular! De cada ponto cardeal assoma A mesma expressão muda.

É de agora ou de sempre esta paisagem Sem palavras,

Sem gritos, sem eco sequer duma praga incontida? Ah! Portugal calado!

Ah! Povo amordaçado

Por não sei que mordaça consentida!”

(Torga, 1966, 108)

É essa mesma terra que é companheira do homem que sofre e que pode ainda acrescentar mais pecados capitais aos que o homem confessa – embora na ânsia de poder realizar as virtudes teologais. E, de algum modo, essa relação advirá do homem ter sido um “anjo caído do céu”:

“Livro de Horas

Aqui, diante de mim, Eu, pecador, me confesso De ser assim como sou. Me confesso o bom e o mau Que vão ao leme da nau Nesta deriva em que vou.

Me confesso Possesso

Das virtudes teologais, Que são três,

E dos pecados mortais, Que são sete,

Quando a terra não repete Que são mais.

Me confesso

O dono das minhas horas. O das facadas cegas e raivosas E o das ternuras lúcidas e mansas. E de ser de qualquer modo

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Me confesso de ser charco E luar de charco, à mistura. De ser a corda do arco Que atira setas acima E abaixo da minha altura.

Me confesso de ser tudo Que possa nascer e mim De ter raízes no chão Desta minha condição.

Me confesso de Abel e de Caim.

Me confesso de ser Homem De ser um anjo caído

Do tal céu que Deus governa. De ser um monstro saído

Do buraco mais fundo da caverna. Me confesso de ser eu

Eu, tal e qual como vim Para dizer que sou eu Aqui, diante de mim!”

(Torga, 1985, 55-56)