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O conceito de respeito pelo educando: pessoa e liberdade

3.2. Educar: condição e necessidade humanas

3.2.1. O conceito de respeito pelo educando: pessoa e liberdade

Em vez do termo educando poderíamos ter usado ‘liderado’ por duas razões: o liderado merece respeito e o liderado é já portador de uma singularidade advinda do caráter desenvol- vido também pela educação. Mas a opção feita pelo termo educando impõe-se porque o lide- rado também é sempre um educando que cria responsabilidades ao líder nesse sentido; e o ‘educando’ abarca qualquer momento ou fase de vida e de profissão – onde se incluem os líderes escolares, com maioria de razão. A educação em geral e a questão da personalização em particular levantam sérios problemas filosóficos quanto à liberdade dos educandos e, por consequência, à legitimidade dos educadores34 – isto sem se referir ainda o alcance e os limi- tes da própria educação e as condições de liberdade no sentido de opção pelo melhor. Fullat (1995: 41) considera a educação com condição do ser homem. São dele estas significativas palavras:

Cada momento da história tem as suas facetas e os seus temas de moda. Há um, no en- tanto, que atravessa todas as civilizações: refiro-me à educação dos homens. As modas de vestuário, as musicais e mesmo as científicas vão e vêm; o tema da criação do ser humano, em contrapartida, é algo constante, quer se tome ou não consciência dele. A razão disto é muito simples: o homem existe unicamente na medida em que se educa. Um ser humano carente de educação – uma criança-lobo, por exemplo – assemelha-se mais a um animal do que a um indivíduo da espécie humana. Isto é de tal modo assim que poderia definir-se o homem como animal educando ou animal que deve ser educa- do, se não queremos que nos fique no puro animal – pelo menos face a uma visão des- critiva ou, então, científica.

Maia (2001: 9) resume este pensamento de Fullat do seguinte modo: «Educar é simultanea- mente um ato de instinto natural, sociobiológico, de altruísmo e de dever ético».

Sabemos que Sócrates considerava o homem ignorante e não mau; mas isso só teria sen- tido se alguém tivesse a certeza absoluta e disposição ditatorial da verdade e da prática con- forme a mesma. Savater (2004: 61), num curioso título – Tribulações do arbítrio – e servin- do-se do exemplo do romance de Henrik Strangerup O homem que queria ser culpado, tem

33 Na qualidade de ‘profissionais’ ou na qualidade de pessoa – que contém a dimensão educativa –, os escolari-

zadores têm de sentir o sucesso pessoal pela eficácia e eficiência que a escola consegue sobre os escolarizados.

34 Tomamos aqui os líderes escolares com função educativa perante os liderados, mesmo que esses líderes não

64 uma afirmação que é deveras significativa e perturbadora: «A sociedade medicinada e pater- nalista oferece a conversão em dependência ou transtorno induzido de qualquer transgressão das normas vigentes: a higiene e a clínica substituem a ética. A consciência alivia-se das más escolhas e acaba por desaparecer como tal consciência» (Savater, 2004: 63). Mas poucas li- nhas a seguir diz também que essa desresponsabilização se faz só sobre a culpa e não sobre o mérito; e que, por isso, ninguém atribui aos outros ou a circunstâncias favoráveis externas o mérito de receber o Nobel, por exemplo: «Somos excelentes graças a nós, mas somos maus ou deficientes independentemente de nós» (Savater, 2004: 64). E esta contradição não é tão nova como parece, testemunha o autor com a referida ignorância de Sócrates, os elementos passionais de Platão, a debilidade da vontade de Aristóteles, o testemunho de São Paulo, que não considera o bem como intrínseco ao seu ser, embora a vontade o deseje (Savater, 2004: 65). No extremo, o mesmo autor até refere a fábula da rã e do escorpião, apresentada por Or- son Welles, que termina com o escorpião não cumprindo a promessa de não picar a rã depois desta o deixar usá-la para passar o rio, mas justificando-se com o facto de não haver « . . . remédio, o meu caráter é assim. . . ».

Não abordamos a questão demasiado filosófica do destino, mas não deixamos de apro- veitar do mesmo autor para referirmos quatro apoios que temos no exercício (ou exercitação?) da nossa liberdade: as instituições são um ponto de partida e tentam potenciar a nossa liberta- ção; a linguagem, que tem uma função simbólica e performativa e que permite não só a refle- xão, mas a proposição de ideais; a técnica, que nos permite suprir parte da nossa vulnerabili- dade; e a nossa humanidade, que tem limites inultrapassáveis, mas que pode, pela interdição e interajuda, promover a melhoria ou prevalência do bem fazer sobre o mal fazer. Mas também o autor nos chama a atenção para o facto de a liberdade grega consistir no “eu posso” e não no “eu quero” (Savater, 2004: 78-83). E aqui teremos de abandonar o autor e afirmar que o “eu quero” e o “eu posso” se identificam hoje com o “apetece-me e posso” e no consequente “eu faço” ou “não me apetece” – que conduz a que aquilo que eu não quero justifica que eu me disponha a não fazer e o motivo pode ser simplesmente egoísta ou hedonista e não devido a qualquer preocupação de ultrapassar a moral vigente e procurar a excelência ética.

Estas considerações interessam-nos de modo especial aplicadas ao que em educação, sobretudo depois do movimento da Escola Nova, se chama respeitar o educando. Já vimos que para Hegel a educação consistia em contrariar as disposições naturais do aluno que, sem apoio diverso, nunca se disporia a fazer o desagradável ou aquilo que acharia não estar ao seu alcance. Por outro lado, diz que, se fosse para o aluno sair da escola como lá entrou, não valia a pena ter passado por ela. Mas a nossa fundamentação, que tem de aplicar-se essencialmente

65 à formação do caráter e à dimensão ética, baseia-se sobretudo na constituição do ser pessoa em si mesma, que implica desenvolver-se com acrescento de qualidades positivas ou estimá- veis. Esse desenvolver-se implicará o instrumento do educare como aquisição dos conteúdos culturais; mas não poderá deixar de atender ao esforço de superar os limites desses conteúdos e, sobretudo, dos padrões de bondade correntes numa sociedade. De modo que o respeito pela pessoa do educando inclui e implica experiências de inovação e desafios de novas respostas ou de respostas de qualidade superior às aprendidas com e através dos outros, em qualquer das dimensões que designamos como humanas: intersubjetivas, de autonomia e de ideal. Não falando de âmbitos que firam a dignidade humana, se é válida a conceção de respeito pelo aluno como necessidade de partir das suas capacidades e limites no processo de aprendiza- gem, não menos importante é o respeito pela pessoa que o aluno possa vir a ser desenvolven- do potencialidades que o tornarão mais livre. Evidentemente que, como nem todo o possível é legítimo, também as potencialidades não serão ilimitadas, nem o seu estímulo. Mas respeitar o aluno é colocá-lo em situação de, mesmo com esforço, ele desenvolver o máximo da sua hu- manização (ou mesmo hominização), dentro dos padrões que podem ser os mesmos da pai- deia grega: do belo e do bom – com a consciência de que nem tudo vale o mesmo e que a dis- posição de seleção do melhor faz parte desse respeito porque é o que responde mais à nature- za perfetível ou constituinte do homem.

Os mesmos critérios que se aplicam ao respeito pelo educando são aplicáveis em grau de responsabilidade superior aos educadores; e dentro destes aos que assumem funções de liderança ou só de chefia. Nas qualidades humanas da pessoa que lidera ou chefia está o gran- de fundamento da autoridade – da qual deriva pelo menos parte do empenho dos liderados.