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CONVERSÃO DE UNIDADE

2.6 O CONCEITO DE RETOMADA

Como já foi dito, os objetos de saber em foco nesta pesquisa são estudados nos anos iniciais do ensino fundamental e entram novamente em cena no 6º ano. O conceito de retomada43, desenvolvido por Larguier (2005; 2009) nos seus trabalhos de mestrado e doutorado, subsidia o olhar que vamos ter sobre esse retorno à cena, considerado sob dois pontos de vista.

No mestrado, Larguier (2005) considerou a reprise scolaire na transição entre o collège e o lycée44, em turmas de seconde45, mais especificamente, entre o início do ano escolar e até as férias de Toussaint46. Nesse período, os professores fazem intervir assuntos ligados aos domínios numérico e algébrico, seja por meio de revisões sistemáticas de conhecimentos do collège ou da retomada de conhecimentos do collège para a introdução de novos conteúdos.

Tomando a TAD como quadro teórico, a pesquisadora adotou como objeto O a reprise scolaire do domínio numérico e algébrico no 1º ano do ensino médio, por existir na instituição I considerada, currículo oficial de matemática para esse ano de ensino, e o professor o sujeito X, que tem uma relação com esse objeto R (X, O) de acordo com as orientações da instituição I, estabelecendo, assim, uma relação RI (O).

Esse estudo de caso foi composto da análise de documentos, entrevistas e observações de aulas. Os documentos foram os textos oficiais que fixavam o programa do 1º ano do ensino médio, para verificar a existência ou não de orientações ao professor de como realizar uma reprise scolaire ideal nesse ano de ensino.

Foram observadas aulas de duas turmas de 1º ano do ensino médio durante o início do ano escolar, para recolher dados associados à reprise scolaire dos domínios numérico e algébrico, a partir das organizações matemáticas e didáticas escolhidas pelos professores, os gestos profissionais desses e o seu impacto sobre os gestos de estudo dos alunos. Para complementar o corpus de análise, foram realizadas entrevistas com dois professores, um mais experiente e outro iniciante.

Como resultados, os programas sinalizavam que as reprises scolaires deviam ser realizadas entre conteúdos antigos do collége com os novos do lycée, em

43 O termo reprise será adotado na nossa pesquisa como retomada.

44 No sistema escolar brasileiro, passagem do ensino fundamental para o ensino médio.

45 Nível equivalente ao 1º ano do ensino médio no sistema escolar brasileiro, que se chama classe de

Seconde na França. A partir de agora usaremos o termo em português, 1º ano do ensino médio.

46 O ano escolar francês inicia em setembro e as férias de Toussaint (Todos os santos) começam no

particular no estudo das funções quando do domínio numérico e algébrico, mas sem fazer uso de revisões sistemáticas (LARGUIER, 2005). As observações das aulas e as entrevistas com os professores confirmaram que as atividades de reprise scolaire demandam gestos profissionais mais específicos, como fazer revisões de alguns assuntos do collége e de acordo com a experiência do professor. A pesquisadora percebeu ainda a necessidade do olhar sobre a aprendizagem dos alunos, com uma intervenção no início do ano escolar e outra após o ensino com a retomada dos domínios numérico e algébrico.

Na sua tese, Larguier (2009) ampliou o conceito anterior de reprise scolaire e investigou apenas o domínio do numérico em classe do 1º ano do ensino médio, porém ao longo de todo o ano escolar. Observou as aulas em que esse domínio seria objeto de estudo e complementou seu olhar sobre a aprendizagem dos alunos com uma intervenção e entrevistas.

A pesquisadora considerou a reprise du numérique “[...] o momento de ensino em que esse tema ou tópicos relacionados a ele intervêm de novo e são atualizados em temas de ensino nesta classe”47 (2009, p. 31, tradução nossa). O tipo de tarefas <T- determinar a qual conjunto um número pertence> característico do domínio numérico foi eleito como objeto de estudo dentro de dois temas, valor absoluto e trigonometria. Também foram analisadas as possibilidades de interação interna ao domínio numérico, e entre os domínios numérico e geométrico.

A noção de retomada com o conhecimento novo está situada para Larguier (2009), seja de conhecimentos já vistos no ensino fundamental, desde simples revisões até a sua ligação com algo novo no ensino médio; seja enquanto uma lembrança48 dos conhecimentos novos trabalhados no 1º ano do ensino médio, no sentido de Perrin-Glorian (1992), ou na aprendizagem de novos conhecimentos a partir da retomada do que já foi ensinado no mesmo ano letivo.

Perrin-Glorian (1992) defende que, para que as situações de lembrança existam, o professor precisa ter ensinado ele mesmo o tema matemático que será objeto de lembrança com seus alunos. São situações de lembrança do que foi vivido em um mesmo ano escolar.

47 “Le moment de l’enseignement où ce thème, ou bien des sujets liès à ce thème, interviennent de

nouveau et sont atualisés dans des thèmes de l’enseignement de cette classe.”

Além das categorias estabelecidas pela pesquisadora, outras foram encontradas a exemplo da síntese, que pode ser utilizada tanto para o professor quanto para o aluno, enquanto uma possibilidade de reorganização pessoal dos conhecimentos; e enquanto meio de controle do aluno da sua atividade matemática, ao mudar de registro ou de quadro, por exemplo. A pesquisadora constatou que a construção do espaço numérico é um problema dos professores e dos alunos.

Larguier (2009) considera o termo reprise adotado por ela mais amplo que o utilizado por Brousseau (1998) e por Chevallard (2002).

Brousseau (1998) considera reprise a reorganização de um conhecimento antigo em que professor e aluno fazem parte de um sistema didático, e o professor tem uma memória didática da turma. Essa, segundo Centeño (1995), é construída sobre tudo o que foi vivenciado pelo professor e seus alunos, e a responsabilidade da retomada é comum aos dois. Para Centeño, a reprise não pode ser considerada na transição entre níveis de ensino porque os alunos devem ter a lembrança do que foi trabalhado no ano anterior, no entanto o professor de um 6º ano não conhece as situações que foram trabalhadas no 5º ano (CENTEÑO, 1995).

Já para Chevallard (2015, p. 22, tradução nossa), na reprise d’étude “[...] existe uma retomada de estudo numa aula toda vez que se estuda um objeto que já foi estudado em uma aula anterior [...] ou mesmo no ano em curso”49, quando fica a cargo do professor a responsabilidade da retomada de estudo de um tema, a partir da organização de uma nova questão didática.

Para Larguier (2009), essa retomada pode, então, estar associada às revisões sistemáticas de conhecimentos de um domínio específico já vivenciado em um ano escolar anterior ou um momento anterior de um mesmo ano escolar, ao ensino de conhecimentos de um domínio específico do programa do ano escolar vigente e a requisitos necessários para outros domínios do ano escolar vigente. Isso nos remete, dentro do sistema escolar brasileiro, ao conceito de currículo em espiral de Bruner (1999).

Bruner participou em 1959 da Woods Hole Conference, com cientistas, educadores e estudantes de diversas áreas de conhecimento, como matemática, física, biologia e história, para discutir sobre a necessidade de uma mudança no ensino das ciências nas escolas da educação primária e secundária. Temas como

49 “Il y a reprise d’étude dans une classe chaque fois qu’on y étudié um objet qui a déjà été étudié

“Sequência de um currículo”, “O aparato de ensinar”, “A motivação de aprender”, “O papel da intuição na aprendizagem e no pensamento” e “Processos cognitivos da aprendizagem” foram abordados, o que já indicava um primeiro esforço de diferentes profissionais e áreas de conhecimento em mudar um planejamento educacional.

A ideia principal do “currículo em espiral” de Bruner (1999) é que conceitos básicos seriam revisitados em níveis subsequentes, respeitando o desenvolvimento do aluno. Trata-se de um currículo contrário à ideia de organização linear, sem estar centrado apenas no que deveria ser ensinado pelo professor, o que era foco da matemática moderna nas décadas de 1950 e 1960, em que o conhecimento matemático deveria ser baseado nas estruturas matemáticas abstratas, sua lógica, técnicas e teorias.

No Brasil, em 1985, foi iniciada a elaboração de uma proposta curricular para o ensino de 1º grau (equivalente hoje ao ensino fundamental) da rede pública do estado de São Paulo que buscou incorporar a ideia de Bruner. Esta tinha como foco, a apresentação e o trabalho de conteúdos em diferentes níveis de abordagem e maior integração, tendo inclusive o domínio das medidas como integrador dos números e da geometria. Também outros estados iniciaram a construção de suas propostas e, em meados da década de 1990, a proposta dos PCN foi elaborada.

Buscaremos verificar na análise dos livros didáticos do 1º ao 6º ano e, em particular, do 5º para o 6º se os conceitos são apresentados a partir de uma ampliação e aprofundamento, como sugerido pelos PCN, e se eles apresentam tarefas que contribuem para a retomada dos conceitos de área e perímetro, quando trabalhados no 5º ano, no sentido de Larguier (2009).

Na nossa pesquisa, retomada significa a maneira pela qual esses objetos são atualizados durante novos encontros, com assuntos relacionados à área e ao perímetro no 6º ano do ensino fundamental.

Do ponto de vista da história escolar do aluno, esse conhecimento deveria existir na sua memória. Se existe, ele pode lembrar ou não. O conhecimento pode estar adormecido, por vezes sem ser reconhecido pelo aluno.

E se o aluno por vezes não lembra de conhecimentos trabalhados no nível anterior? Segundo Mirène Larguier (2009), as revisões são uma possibilidade para o professor resgatar a memória pessoal dos alunos. Mas devemos estar atentos às revisões, como bem salienta os PCN, ao afirmar que existe uma tendência em fazer da 5ª série (6º ano),

[...] um ano de revisão dos conteúdos estudados em anos anteriores. De modo geral, os professores avaliam que os alunos vêm do ciclo anterior com um domínio de conhecimentos muito aquém do desejável e acreditam que, para resolver o problema, é necessário fazer uma retomada dos conteúdos. No entanto, essa retomada é desenvolvida de forma bastante esquemática, sem uma análise de como esses conteúdos foram trabalhados no ciclo anterior e em que nível de aprofundamento foram tratados (1998a, p. 61-62).

Os alunos devem ter uma lembrança dos conteúdos trabalhos no ano anterior, mas o professor de um ano não sabe quais situações foram trabalhadas no ano anterior. Por outro lado, alunos de turmas diferentes ou mesmo oriundos de escolas diferentes não vivenciaram as mesmas situações.

Repetições de conteúdos são insuficientes e provocam o desinteresse no aluno. Que mecanismos o professor do 6º ano irá utilizar para lembrar, resgatar a memória didática dos seus alunos? Como verifica e reconstrói essa memória do passado dos alunos dentro de um sistema de ensino? A memória didática é construída com cada turma e o seu professor. Como a instituição escolar pode contribuir para repassar aos professores das próximas turmas o que foi objeto de estudo, não apenas do currículo prescrito, mas do currículo que foi vivenciado pelos alunos no ano anterior?

Centeño (1995) afirma ser essa uma responsabilidade da instituição escola, delegada ao professor, mas que o sistema didático não tem meios de administrar o que foi vivenciado, e que Chevallard (1989) chama de amnésia institucional.

Fica, assim, a cargo do professor ajudar seus alunos no resgate da memória pessoal, ao propor situações de retomadas que ajudem na articulação entre o que foi ensinado no ano anterior com o atual ano de ensino. São situações que, segundo Vergnaud (1975), para possibilitar a ampliação e o aprofundamento dos conhecimentos pelos alunos, devem propor mudanças de representação, das relações a serem estabelecidas.

Considerando o currículo em espiral proposto pelos PCN, em que os conteúdos serão retomados, buscaremos na nossa pesquisa observar como as retomadas acontecem na sala de aula do 6º ano com os conceitos de área e perímetro e como estão configuradas, segundo Larguier (2009).

Quais seriam as situações de aprendizagens caracterizadas enquanto retomada que podem favorecer a continuidade do ensino da matemática e a transição entre os anos iniciais e os anos finais do ensino fundamental?

Bessot (2015) diz existirem dois tipos de rupturas que estão relacionadas: a ruptura cultural e a epistemológica. A ruptura cultural pode acontecer dentro de uma mesma instituição, por exemplo a formação dos professores dos anos iniciais que possuem o curso de pedagogia, e a formação dos professores dos anos finais do ensino fundamental, com a licenciatura em matemática; e a diferenciação entre os dois níveis de ensino, mesmo dentro de uma mesma instituição escolar quanto à carga horária de matemática em cada nível de ensino.

A ruptura epistemológica de um mesmo saber é aquela que está presente em diferentes níveis de ensino dentro do currículo, mas com naturezas diversas. Por exemplo, a noção de área ao ser estudada ao longo do ensino fundamental, para determinar a área de um retângulo associada à ampliação dos conjuntos numéricos. A passagem da contagem de quadradinhos apenas inteiros para uma situação com quadradinhos inteiros e partes de quadradinhos caracteriza uma primeira ruptura. Posteriormente uma outra ruptura acontece para a determinação da área do retângulo com o uso da fórmula, com a passagem para a representação algébrica.

Bessot (2015) questiona como assegurar a continuidade e realizar a transição diante dessas rupturas, o que também foi objeto de estudo de Brousseau e Centeño (1991) ao considerarem que “[...] os alunos, que davam respostas corretas a questões complexas no ano anterior, parecem não saber nada no início do ano seguinte, com um professor que também não os pode ajudar”50 (1991, p. 187, tradução nossa).

Nesse sentido, precisamos compreender como o ensino está estruturado, como os conceitos de área e perímetro estão presentes no 5º e no 6º ano na escola, nos programas e nos livros didáticos, e quais as tarefas propostas que contribuem para a realização da transição entre o término dos anos iniciais e o início dos anos finais do ensino fundamental.

A fim de considerar fatores de naturezas diversas, no ensino e na aprendizagem de área e perímetro, vamos adotar como instrumento teórico- metodológico o filtro da grandeza área, que é objeto do próximo tópico.

50 “[...] les élèves qui donnaient des réponses correctes à des questions compliquées dans une classe

inférieure semblent ne plus rien savoir au début de l’année suivante dans um environnement et avec um enseignant qui ne peut aider (rappel, formulation).”