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O confronto entre as bases do sistema de mercado e a necessária

4. A CRISE AMBIENTAL, O DIREITO E O PRINCÍPIO DO

4.2 A relação do homem com a natureza – a tomada de consciência sobre a crise

4.2.1 O confronto entre as bases do sistema de mercado e a necessária

A recente consciência da crise ambiental permitiu descortinar não apenas a limitação dos recursos naturais, mas também o fato de a produção nos moldes do sistema econômico de mercado estar em absoluto conflito com a restrita disponibilidade dos recursos do planeta.

Observe-se, entre parênteses, o fato de a contradição também poder estar presente em outras espécies de sistemas econômicos, bastando que não se atente para uma necessária utilização racional do meio ambiente. A esse respeito, Fábio Nusdeo ensina:

“a degradação ambiental é comum, tanto aos sistemas centralizados de índole coletivista, como aos regimes de mercado, de cunho capitalista. A esse respeito, o Mar Báltico fornece um exemplo eloquente: banhando sete países de diversa formação histórica, diferentes sistemas econômicos e constituídos por povos de variada origem étnica, com as duas Alemanhas, a Suécia, a Noruega, a Dinamarca, a Rússia, a Polônia e a Finlândia, suas águas recebem detritos de toda ordem provenientes de todos eles. A contaminação das mesmas atinge tais índices a ponto de praticamente não ser possível a pesca, bem como quaisquer atividades de lazer ou recreio, inclusive com prejuízo de algumas célebres estações balneárias. Devido à peculiar conformação geográfica que dificulta a oxigenação de suas águas, o Báltico é hoje considerado um mar em decomposição, de longe o mais poluído do mundo, a ponto de os sete países que o margeiam terem vencido barreiras ideológicas, políticas e econômicas para constituírem um órgão destinado a enfrentar o desafio comum.204

No entanto, é certo dizer, em relação ao sistema de mercado em que

vivemos, haver uma dicotomia inescapável: por um lado, necessidades ilimitadas; por outro, recursos limitados ou finitos.205 E é esse fenômeno, aliás, tão singelo quanto importante – bens finitos versus necessidades infinitas – que

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NUSDEO, Fábio. Desenvolvimento e ecologia. São Paulo: Saraiva, 1975, p. 22.

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NUSDEO, Fábio. Economia do Meio Ambiente. In: PHILIPPI JR., Arlindo; CAFFÉ ALVES, Alaôr (eds.). Curso interdisciplinar de Direito Ambiental. Barueri: Manole, 2005, p. 197.

está na raiz de grande parte dos conflitos que se estabelecem no seio da comunidade mundial.206

Para bem compreender essa dicotomia com sabor de paradoxo, é importante lembrar o fato de a lei da acumulação nos padrões capitalistas207 impor competitividade, exigindo a diminuição dos custos produtivos, a criação de necessidades ilimitadas e, com a globalização208, a crescente velocidade de produção, de consumo e de descarte.

De efeito, o sistema de mercado, para sua manutenção e renovação, impõe vivermos em uma sociedade valorizadora da aparência e da posse, o que significa forjar necessidades infinitas; essas, por sua vez, demandam a criação de produtos novos, atraentes, às vezes inúteis e de rápido descarte; e exigem, por inevitável consequência, rápidas inovações tecnológicas e uma incomensurável utilização dos recursos naturais disponíveis.

Grosso modo, ao basear-se na apropriação da riqueza (visando ao lucro),

o sistema impõe uma ampla competitividade entre os produtores para verem seus produtos consumidos, exigindo deles não somente rapidez na produção e no consumo, como também diminuição dos custos. Toda essa agilidade de produção e consumo, com a diminuição de custos, são propiciados pelo avanço científico e tecnológico (leia-se: máquinas que produzem mais rápido, com maior tecnologia e eficiência, a baixo custo). Mas, não é suficiente a criação célere de novos produtos com baixo custo; é preciso, além disso, ser o consumo incentivado pela criação constante de novas necessidades que levam ao desejo

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MILARÉ, Édis. Direito do ambiente. 7ª ed., São Paulo: RT, 2011, p. 1035. O autor lembra que a corrida armamentista e as guerras, em regra, não passam de dissensões entre países que buscam a conquista da hegemonia sobre os bens essenciais e estratégicos da natureza. A questão ideológica nada mais é do que um biombo a esconder essa verdade. De fato, a possibilidade de conflitos tende a aumentar, já que o mundo, depois de ter enfrentado a crise do petróleo na segunda metade do século XX, prepara-se agora para enfrentar a crise da água. Lembre-se, por exemplo, que a paz no Oriente Médio estará sempre em risco pela ameaça de uma bomba-d’água. Aliás, um dos motivos da guerra entre Israel e seus vizinhos (a Guerra dos Seis Dias), em 1967, foi justamente a ameaça, por parte dos árabes, de desviar o fluxo do rio Jordão, que, juntamente com seus afluentes, fornece 60% da água consumida em Israel.

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Como salientado em notas acima, isso não significa, todavia, que outros sistemas econômicos fossem capazes de manter incólume ou mais saudável o meio ambiente. O que se diz aqui, é que os pressupostos do modo de produção e consumo capitalistas se contrapõem frontalmente com a necessidade da proteção ambiental. Aliás, quando se fala em “leis”, quer se referir justamente aos pressupostos de certo modelo de desenvolvimento econômico.

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A respeito dos impactos que a globalização gera no meio ambiente, vide VIEIRA, Liszt. Cidadania e

(e daí a publicidade e o marketing) e, por decorrência, à ‘pseudo-obrigação’ dos homens (sobretudo os que habitam os meios urbanos) de consumir itens, os quais, aparentemente, irão suprir tais necessidades. A economia de mercado, portanto, cria a cada dia necessidades sociais e culturais (como, por exemplo, a adoração ou culto do mito da juventude eterna) a fim de que os homens, inconscientemente, sejam levados a consumir os produtos que lançados pelos mercado.

Surge uma competitividade que implica acelerar o processo de produzir e de consumir, encurtando o tempo normalmente exigido para satisfazer novas carências. Vale dizer, quando se ‘cria’ uma nova necessidade, é preciso acelerar o processo de comercialização do bem de consumo capaz de supri-la, porque, de imediato, surgirão produtos similares, de outras marcas, os quais também suprirão aquela mesma necessidade.209 E, a partir do momento em que se dá conta de determinado produto – por ter sido copiado, ou por ter sido superado pelo feito de tecnologia – não ser mais consumido em número suficiente para atender as expectativas de lucro, é necessário, então, fabricar também rapidamente outro produto e, por consequência, gerar uma nova necessidade.

Num cenário da sociedade globalizada, intensifica-se a cada dia esse processo produtivo, porquanto o incremento científico e tecnológico (para propiciar uma rápida comercialização, e daí o lucro) permite uma célere criação de bens de consumo. De fato, o modo de produção de mercado amplia-se progressivamente em âmbito mundial, bastando considerar não haver mais apenas produtores competindo dentro de cada região ou no âmbito de um determinado país; na verdade, os produtores estão localizados no mundo inteiro,

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Isso se evidencia claramente com o proliferado lançamento de ‘smartphones’, como o ‘Iphone’, da conhecida Apple, lançado em janeiro de 2007, o qual, em quatro anos, já se encontra indo para a sua quinta geração (o site Wikipedia nos dá conta de que a quinta geração, o IPhone 4S foi anunciado em 4 de outubro de 2011). Tal aparelho foi, como é notório, extremamente copiado por empresas concorrentes. Isso sem falar na velocidade com que foi lançado o ‘tablet’ conhecido como ‘iPad’, também da Apple, e que em menos de um ano, já lançou uma segunda geração, chamado de iPad 2 (sobre este aparelho, o referido site Wikipedia expõe que o primeiro iPad foi lançado em abril de 2010, tendo sido vendidos três milhões de equipamentos em oitenta dias. Durante 2010 foram vendidos quatorze milhões e oitocentos mil aparelhos. Já em março de 2011, ou seja, em menos de um ano, a Apple lançou a segunda versão do ‘tablet’, conhecido como iPad 2). Sabe-se que o iPad vem sendo em muito copiado por empresas concorrentes, como o ‘tablet’ da Samsung Galaxy, lançado em setembro de 2010 (e cujas vendas, segundo anunciado na mídia, ultrapassaram o iPad 2 no terceiro trimestre de 2011).

independentemente da sua nacionalidade. Da mesma forma, pulverizam-se mundo afora os riscos com a descomedida utilização dos recursos naturais, não se podendo, então, apontar causas e causadores específicos para muitos dos danos ambientais e, tampouco, responsabilidades identificáveis.

Por esse prisma, fica claro que a competitividade e o tempo necessário para produzir e consumir bens geram uma racionalidade apenas econômica com base em um tipo de exploração da natureza, fonte de matéria-prima ou depositária de rejeitos, absolutamente incompatível com a atual exigência de sua preservação. Em outros termos, o ciclo de produção, consumo e descarte não se compatibiliza com a limitação dos recursos naturais, e com a capacidade de o planeta absorver os resíduos gerados; daí a absoluta contradição das leis do desenvolvimento econômico do sistema de mercado com as leis de proteção do meio ambiente. Nas palavras de Édis Milaré:

o processo de desenvolvimento dos países se realiza, basicamente, à custa dos recursos naturais vitais, provocando a deterioração das condições ambientais em ritmo e escala até então ainda desconhecidos. A paisagem natural da Terra está cada vez mais ameaçada pelos riscos nucleares, pelo lixo atômico, pelos dejetos orgânicos, pela “chuva ácida”, pelas indústrias e pelo lixo químico.

Por conta disso, em todo o mundo – e o Brasil não é nenhuma exceção –, o lençol freático se abaixa e se contamina, a água escasseia, a área florestal diminui, o clima sofre profundas e quiçá irreversíveis alterações, o ar se torna irrespirável, o patrimônio genético se desgasta, abreviando os anos que o homem tem para viver sobre o Planeta. Isto é, “do ponto de vista ambiental o planeta chegou quase ao ponto de não retorno. Se fosse uma empresa estaria à beira da falência, pois dilapida seu capital, que são os recursos naturais, como se eles fossem eternos. O poder de autopurificação do meio ambiente está chegando ao limite.210

Aliás, esse paradoxo entre o processo produtivo e a limitação dos recursos naturais, no estágio de globalização e ampliação da degradação ambiental, sobretudo frente à cumulatividade de impactos, vem sendo considerado como uma nova fase pela qual passa a humanidade, considerada,

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conforme analisado no item 3.3.4 Capítulo 3 deste estudo, uma ‘sociedade de risco’ ou, como preferimos, uma ‘sociedade das incertezas’.

Em uma palavra: não há mais dúvidas da limitação ou escassez dos recursos naturais – inclusive os renováveis: flora, fauna, água, solo, ar –, os quais, bem por isso, não podem ser explorados de modo ilimitado.

Assim, infere-se desse paradoxo o fato de a saída para a crise ser de dificílima – senão impossível – solução, pois qualquer alternativa tende a levar à inevitável ruptura do sistema de mercado vigente. Ou seja, na hipótese de se decidir por continuar explorando os recursos da natureza nos moldes atuais, será inevitável a destruição do meio ambiente, o que também significará a destruição do sistema econômico. Caso se persiga uma radical conservação dos recursos naturais, para o bem da qualidade de vida das presentes e futuras gerações, também haverá uma ruptura das bases do sistema econômico, vez que a intensa utilização daqueles é absolutamente necessária para a sua manutenção e reprodução, sobretudo no planeta globalizado em que vivemos.211

Portanto, por um lado, é bastante ingênuo advogar a resolução da crise ou do problema ambiental vivenciado neste século XXI, pois isso só será possível com a transposição das bases do sistema econômico ocidental. Por outro lado, embora não seja factível transpô-lo, é necessário defender a atenuação ou acomodação dessa situação de impasse ou de contradição – como se fez com as contradições212, ou falhas de

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A esse respeito, o sociólogo Michael Burawoy, em entrevista divulgada na Folha de São Paulo de 09.10.2011, expõe que ‘a grande crise do capitalismo virá com a catástrofe ambiental’ e, ainda, que ‘a crise de fundo do capitalismo: [será] destruir as condições de sua própria existência, destruindo o ambiente.’

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Vale mencionar que outras contradições já se revelaram no sistema econômico. A respeito, cite-se a crise da década de 1930, quando houve o conhecido crack na economia americana, situação que foi acomodada ou atenuada pela estruturação do Estado de Bem-Estar Social. Nesse sentido, lança-se mão novamente dos ensinamentos de João Sette Whitaker Ferreira, que expõe com clareza que “embora a economia dos países em desenvolvimento já contasse, desde o século XIX, com forte protecionismo estatal, o liberalismo econômico e em especial o período liberal da economia norte-americana entre 1913 e 1929 levariam a economia capitalista à crise de 1930, conhecida dos economistas como uma crise ‘de subconsumo’, que se sobrepôs aos aspectos de cunho apenas territorial e espacial. De forma muito resumida, a situação era a de que, ao explorar exaustivamente a força de trabalho e rebaixar constantemente os salários, o antagonismo já apontado por Marx chegaria a seu ponto extremo: o capitalismo industrial, que além do mais se financeirizava rapidamente, produzia sem parar, porém não tinha mais a quem vender. A saída para tal impasse teria uma lógica clara: promover, por meio da intervenção do Estado, agora no âmbito da regulação econômica keynesiana, a elevação generalizada dos padrões de consumo da população – e portanto da força de trabalho – para garantir a expansão do mercado de consumo de massa e o escoamento da produção, viabilizando o ciclo de produção do capital. Marcada por forte intervencionismo estatal, a estruturação do chamado Estado do Bem-Estar Social deu-se baseada em políticas de proteção tarifária, subvenções às

mercado213, já evidenciadas no interior do sistema econômico de mercado –, seja por meio de decisões políticas, seja mediante a irrupção de normas e regras jurídicas limitadoras da utilização dos recursos naturais ou indutoras de condutas ‘mais limpas’, seja pela constante busca por uma maior justiça ambiental. É preciso, em suma, encontrar meios para manter a qualidade ambiental, propiciadora de uma saudável condição de sobrevida para o ser humano e, ao mesmo tempo, capaz de permitir a renovação e a manutenção do sistema econômico vigente.

4.2.2 A crise ambiental e as necessárias alterações introduzidas no sistema