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O risco abstrato ou incerto e a tutela do direito das futuras

3. O DANO AMBIENTAL E O IMPACTO NEGATIVO AO MEIO

3.3 Risco concreto e risco abstrato

3.3.4 O risco abstrato na ‘sociedade de risco’ ou na ‘sociedade de

3.3.4.3 O risco abstrato ou incerto e a tutela do direito das futuras

Conforme será pontuado no item 4.2.1 do Capítulo 4 desta tese, o

discurso do desenvolvimento sustentável evoluiu para o que se chama hoje de

direito das futuras gerações ou ética da equidade intergeracional.154

Esse discurso usualmente aparece frente às obras de grande porte (como a Usina Hidrelétrica de Belo Monte), que causam inevitáveis e significativos impactos negativos ao meio socioambiental, os quais, como visto, devem ser caracterizados como risco concreto, porquanto os seus impactos são conhecidos, mensuráveis e estimáveis, sendo possível administrá-los com fulcro no princípio da prevenção. Nessas situações, verificam-se, na prática, argumentos tendentes a impedir a concretização dos impactos com base no direito das futuras gerações de desfrutarem da mesma qualidade ambiental oferecida às presentes gerações.

O argumento quanto à violação do direito das futuras gerações (ou ética da equidade intergeracional) também se fulcra na nova definição de risco

abstrato (trazida, conforme já visto neste estudo, por Ulrich Beck em seu

conceito de ‘sociedade de risco’), que exige a imposição de limites aos avanços do desenvolvimento econômico, sob pena de fazer perecer, em um futuro próximo, a própria humanidade. Para Raffaele De Giorgi, o risco é um paradoxo constitutivo da modernidade da sociedade contemporânea, como um vínculo com o futuro que possibilita o agir em condições de desconhecimento em que são feitas escolhas no presente.155

Em suma, pretende-se introduzir a ética da equidade intergeracional em cada decisão do presente, inclusive em relação aos impactos conhecidos, previstos e mensuráveis, levando em consideração seus possíveis efeitos sobre as gerações futuras. Não vemos, todavia, possibilidade na lógica desse pensar.

154

A ética da equidade intergeracional já foi incorporada pelo ordenamento jurídico pela Constituição Federal (art. 225), ao determinar a obrigação de defender e preservar o meio ambiente ‘para as presentes e futuras gerações’.

155

GIORGI, Raffale De. O risco na sociedade contemporânea. Revista de Direito Sanitário. São Paulo, v. 9, n.1, p. 37-49, mar/jun. 2008.

Para tanto demonstrar, evidencie-se não haver realmente dúvidas de que a sociedade pós-moderna (ou a ‘sociedade de risco’) exige uma avaliação a mais diante do irracional modelo de desenvolvimento econômico, que vem impondo, em âmbito global, o risco de impossibilitar a manutenção de um meio ambiente sadio e capaz de comportar a vida para as futuras gerações. Ou, em outros termos, é irrefutável que a intensa, irracional e insustentável exploração dos recursos naturais, necessários para a manutenção e evolução do sistema econômico vigente, confronta com a obrigação de preservar o meio ambiente, podendo, caso contrário, levar à destruição da própria vida na Terra.

Tem-se, na verdade, que a ponderação do risco abstrato, juntamente com o ‘princípio da responsabilidade’ e com a ética da equidade intergeracional, exige que o homem pense ou reflita a respeito das próprias bases do sistema econômico de produção e consumo implantado na maior parte dos países ocidentais156. De fato, as dúvidas relativas ao “como faremos daqui em diante?” ou, “é possível permanecer explorando os recursos naturais como fazemos, máxime pelo evidente exaurimento de fontes absolutamente necessárias para manter a saúde e a vida das futuras gerações?”, pertencem a uma opção muito maior do que evidenciar os impactos – conhecidos – de obras necessárias para o sistema econômico vigente se manter e se reproduzir.

Em razão do propalado risco abstrato ou incerto decorrente da intensa e irracional exploração dos recursos naturais para manter e se reproduzir o sistema de produção e consumo vigentes, gerando dúvidas – para alguns, certeza – sobre a possibilidade de vida para as futuras gerações, o homem hodierno deve decidir se quer manter seu estilo egoístico e individualista, se quer continuar a usufruir do conforto da luz elétrica, do ar condicionado, do uso do carro, do lucro etc; tudo isso em detrimento da qualidade ambiental das gerações futuras.

Em verdade, a compreensão do risco abstrato e o advento da ética da equidade intergeracional impõem ao ser humano a avaliação quanto à viabilidade da manutenção do crescimento econômico nos moldes atuais, ou

156

Mencione-se, por oportuno, não ser apenas o sistema de mercado capaz de levar ao exaurimento dos recursos naturais. De fato, isso pode ocorrer em qualquer espécie de sistema econômico – inclusive nos centralizados – caso se evidencie uma irracional utilização do meio ambiente.

seja, um desenvolvimento inserido num veloz sistema de produção e consumo numa sociedade mercantilista em escala mundial. Essa avaliação, no entanto, encontra-se em um momento anterior e em uma esfera superior, não condizente com a avaliação do risco concreto verificado em projetos e atividades com impactos conhecidos e estimados, e cujo comando fica ao encargo de órgãos públicos, administrativos. Em verdade, o risco abstrato e a ética intergeracional exigem da presente geração uma decisão sobre se quer manter o modelo de produção e consumo vigentes, sobretudo face ao evidente exaurimento dos recursos naturais. Isso significa não ser cabível impor ao administrador público, no decorrer do licenciamento ambiental, e com base no princípio da precaução ou na ética da equidade intergeracional, a apreciação da viabilidade ambiental ou não de um determinado empreendimento em razão dos possíveis riscos

abstratos capazes de ser causados, inclusive com prejuízos para as futuras

gerações. Afinal, como dito, essa decisão é anterior, e deve permear o debate político e governamental, preferencialmente baseado no princípio da precaução e centrado na participação pública.

Em outros termos, não compete às agências e aos órgãos administrativos de controle definir, por conta própria, se o empreendimento e/ou atividade que se pretende implantar ou operar cumprem preceitos morais, como aqueles vinculados à ética da equidade intergeracional. A esse respeito, Eric Posner discorre:

How can this be? The answer is that agencies act within

a thick institutional and political environment that bars them from directly implementing moral precepts – or that would result in perverse outcomes if agencies did try to directly implement moral precepts. The discount rate that agencies should use is not the theoretically ideal discount rate but the discount rate that generates the best outcomes in a world in which agencies do not have complete freedom of action.

This argument rests on the basic distinction between

moral goals and decision procedures, a distinction from which all of the authors under consideration abstract. 157

157

POSNER, Eric. Agencies should ignore distant-future generations. The University of Chicago law review. 74:139, 2007.

Desse modo, é bastante claro serem morais os preceitos do direito das futuras gerações ou da ética da equidade intergeracional. Não há como impor normas que tutelem o direito do futuro, salvo por meio de princípios – muito mais morais do que jurídicos –, os quais devem permear as decisões governamentais e políticas. Pode-se, inclusive, sustentar serem preceitos, visando, mais uma vez, escamotear o paradoxo entre as bases do sistema econômico de mercado e as determinações cada vez mais emergentes de proteção dos recursos naturais. De fato, como se verá no próximo capítulo, iniciando com o desenvolvimento

sustentável e, hoje, no direito das futuras gerações, vê-se um discurso

absolutamente desconectado da realidade em que vivemos.

Acerca dessa inafastável realidade, vale questionar: É possível imaginar as presentes gerações abrindo mão dos bens que usufruem, da sua propriedade, do seu direito de consumo, em prol de gerações futuras, para legitimar decisões governamentais nesse sentido? É possível observar a sociedade atual, que não tem sequer ética com a própria geração, lutar pelos direitos das futuras gerações? Pode-se imaginar pessoas que não se indignam com a dimensão da miséria, da violência, da fome, ou com crianças dormindo na rua, dignando-se a defender os direitos básicos das futuras gerações? É crível supor uma pessoa que passa desapercebidamente por uma criança dormindo na rua, preocupando- se com os direitos de uma criança que ainda não nasceu?

Aliás, é válido ainda perguntar: Qual qualidade ambiental se quer

proteger para as futuras gerações? A qualidade que usufruem as camadas mais abastadas ou aquela em que são obrigados a viver as populações mais pobres, geralmente as que sofrem com a injustiça ambiental?

Assim, se as atuais gerações, que votam, que consomem, que legitimam decisões governamentais, não se preocupam com as futuras gerações, como, então, pretender legitimar decisões governamentais que defendam os direitos das que virão? Justamente sobre esse ponto Eric Posner frisa: “intertemporal egalitarianism is

possible only if voting members of the current generation weight the interests of future persons to the same extent as they weight their own interests.”158

158

POSNER, Eric. Ob. cit. Sobre as dificuldades constatadas para a tutela dos direitos das futuras gerações, esse autor frisa: “suppose, for sake of argument, that the government’s proper goal is maximization of social

Exemplificativamente, vale citar o conhecido e recente caso envolvendo a presença e liberação de gás metano no Shopping Center Norte, amplamente divulgado em meados de setembro e final de outubro de 2011 pela mídia paulistana. Houve notícias claras de que os lojistas não estavam preocupados com os riscos de explosão, e manifestaram-se de forma indignada e contrários ao fechamento desse centro comercial. E não podia ser diferente, pois os custos das suas lojas, as já efetuadas aquisições de produtos para comercialização, o vencimento do salário de seus funcionários e dos tributos ligados à atividade permaneciam inalterados, sendo eles então que se sentiam onerados por uma ventilada omissão ou negligência dos proprietários ou administradores do Shopping Center. O mesmo sucede quando as atuais gerações são postas à frente das futuras gerações: Quem arcará com custos ou prejuízos atuais para beneficiar gerações futuras? Será que o governo – atual – tomará decisões que contrariem interesses das gerações atuais em prol das gerações futuras? Sobretudo ao considerar que os governantes são eleitos pelas gerações atuais? Por conseguinte, o risco abstrato ou as incertezas, o direito das futuras

gerações ou a ética intergeracional estão em um campo onde todos os seres

humanos irão enfrentar-se para uma decisão que culminará em um divisor de águas, qual seja, manter o atual sistema econômico vigente ou partir para outra opção social – se é que essa decisão seja possível.

welfare, where the social welfare function includes future generations as well as the current generation and weights the utility of all individuals equally, regardless of when they live. It follows from the arguments discussed by Kaplow and others that the government should use a discount rate based on the opportunity cost of capital. This ensures that the marginal utility of individuals will be equalized regardless of when they live. A benevolent dictator – that is, a government that acts in the morally perfect way – would do just this. But the real government is not a benevolent dictator. It is constrained by numerous factors, of which I emphasize two. First, because officials with political power are elected, they must choose policies that at least toughly please the public of important constituents. They cannot choose morally ideal policies unless the public seeks morally ideal outcomes. The ‘public’ here will be taken to consist of people who have the vote and thus can affect the electoral success of current government officials. Thus, the public excludes future generations. Second, because governance is complex, the government must divide itself into multiple institutions, each of which has jurisdiction over a different set of problems”.