1 Contexto de Produção e Características Globais do Referencial Curricular Nacional para Educação infantil
ASPECTOS MATERIAIS DO TEXTO
1.7. O Conteúdo representado no Referencial
para o trabalho dos professores de educação infantil. No entanto, o destaque dado à aprendizagem demonstra a pouca relevância dada aos professores e as condições de realização do seu trabalho, assim como relega para segundo plano a importância do outro no processo de construção do conhecimento.
Com base no exposto, é possível afirmar que a concepção de ensino‐
aprendizagem que se configura no Referencial é cognitivista e embasa‐se nos pressupostos de Piaget (1972).
1.7. O Conteúdo representado no Referencial
O objetivo desta seção é discutir as questões relacionadas ao currículo, especificamente ao conteúdo, para compreender de que forma o Referencial os apresenta. Como exposto no início deste capítulo, o Referencial apresenta seis áreas (música, artes, linguagem oral e escrita, movimento, matemática e natureza, e sociedade); tentando elucidar melhor a questão do conteúdo, busquei mais informações no próprio Referencial.
Constatei que todas as seis áreas são introduzidas com uma Seção intitulada ‘Introdução’ seguida por outra intitulada ‘Presença da Linguagem Oral e Escrita na educação infantil: idéias e práticas correntes’, sendo que somente o nome da área se altera nessa última. Em todas as áreas foi encontrado um parágrafo semelhante, variando somente a localização, entre uma ou outra, das duas seções citadas anteriormente. Esses parágrafos são semelhantes na forma, pois apresentam as mesmas características discursivas, e no conteúdo, pois apresentam o mesmo objetivo que é justificar a seleção da respectiva área, como revela o quadro abaixo: Quadro 26. Segmento do RCNEI (V.3, p.15‐20) Artefato Simbólico Finalidade O trabalho com a linguagem se constitui um dos eixos básicos na educação infantil... (RCNEI, V.3, p.117 – Introdução64)
Dada a sua importância para a formação do sujeito, para a interação com as outras pessoas, na orientação das ações das crianças, na construção de muitos conhecimentos e no desenvolvimento do pensamento.
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“O trabalho com a linguagem se constitui um dos eixos básicos na educação infantil, dada sua importância para a formação do sujeito, para a interação com as outras pessoas, na orientação das ações das crianças, na
Pelo exemplo constata‐se que o conteúdo é apresentado como um artefato simbólico para ser utilizado pelo professor, com a finalidade de desenvolver determinadas capacidades, recursos mentais e comportamentais, na criança.
Ainda de acordo com o exemplo anterior, pode‐se perceber que a
Linguagem Oral e Escrita é apresentada como básica na educação de crianças e que, por meio dela, os professores poderão desenvolver a formação do sujeito, a construção de conhecimentos e o desenvolvimento do pensamento, entre outros aspectos citados. Com isso, percebe‐se que a seleção do conteúdo não se volta exclusivamente para sua finalidade, ou seja, selecionado frente à (para a) imensa gama de outros conteúdos como parte dos conhecimentos sócio‐histórico‐cultural que se acredita necessários para a criança.
Por outro lado, o conteúdo passa a ser utilizado como um artefato que o professor utiliza para desenvolver determinadas capacidades nas crianças: a linguagem oral para desenvolver o pensamento, a música para desenvolver a expressão, a arte para desenvolver a criatividade, e assim sucessivamente com todos os conteúdos apresentados pelo RCNEI. A mesma ocorrência pode ser constada em todas as outras áreas, como revela o quadro a seguir:
Quadro 27. Segmentos do RCNEI (V.3, pgs. 45‐50/ 85‐90/ 117‐124/ 163‐168/ 207‐209).
Artefato Simbólico Finalidade
O trabalho com movimento contempla a multiplicidade de funções e manifestações do ato motor...
(RCNEI, V.3, p.15 – Introdução)
Propiciando um amplo desenvolvimento de aspectos específicos da motricidade das crianças, abrangendo uma reflexão acerca das posturas corporais implicadas nas atividades cotidianas, bem como atividades voltadas para a ampliação da cultura corporal de cada criança.
O trabalho com música deve considerar, portanto, que ela é um meio de expressão e forma de conhecimento acessível aos bebês e crianças, inclusive aquelas que apresentem necessidades especiais.
(RCNEI, V.3, p. 49 ‐ Presença da música na educação infantil: idéias e práticas correntes)
A linguagem musical é excelente meio para o desenvolvimento da expressão, do equilíbrio, da auto‐estima e autoconhecimento, além de poderoso meio de integração social.
O desenvolvimento da capacidade artística e
criativa deve estar apoiado, também, na prática O desenvolvimento da imaginação criadora, da expressão, da sensibilidade e das capacidades
reflexiva das crianças ao aprender, que articula a ação, a percepção, a sensibilidade, a cognição e a imaginação.
(RCNEI, V.3, P. 89. Presença das artes visuais na educação infantil: idéias e práticas correntes)
estéticas das crianças poderão ocorrer no fazer artístico, assim como no contato com a produção de arte presente nos museus, igrejas, livros, reproduções, revistas, gibis, vídeos, CD‐ROM, ateliês, de artistas e artesãos regionais, feiras de objetos, espaços urbanos etc.
O trabalho com os conhecimentos derivados das
Ciências Humanas e Naturais deve ser voltado
para a ampliação das experiências das crianças e para a construção de conhecimentos diversificados sobre o meio social e natural. (RCNEI, V. 3, p.166. Natureza e Sociedade – Presença dos conhecimentos sobre natureza e sociedade na educação infantil: idéias e práticas correntes)
Nesse sentido, refere‐se à pluralidade de fenômenos e acontecimentos — físicos, biológicos, geográficos, históricos e culturais —, ao conhecimento da diversidade de formas de explicar e representar o mundo, ao contato com as explicações científicas e à possibilidade de conhecer e construir novas formas de pensar sobre os eventos que as cercam.
O trabalho com noções matemáticas na educação infantil atende, por um lado, às necessidades das próprias crianças de construírem conhecimentos que incidam nos mais variados domínios do pensamento... (RCNEI, V.3, p. 207 – Introdução)
Por outro, corresponde a uma necessidade social de instrumentalizá‐las melhor para viver, participar e compreender um mundo que exige diferentes conhecimentos e habilidades.
Nos exemplos anteriores se percebe, como já informado, a semelhança entre os parágrafos, e a elucidação da importância de cada área para o desenvolvimento da criança. Nota‐se que somente a área Artes Plásticas apresenta uma estrutura discursiva diferente, sendo que essa área é apresentada como uma capacidade a ser desenvolvida.
Desse modo, constata‐se que o conteúdo no Referencial assume um status que designo como mega‐artefato simbólico que os professores utilizam com a finalidade de desenvolver capacidades e/ou habilidades nas crianças, pois o Referencial apresenta a área e sua finalidade para o desenvolvimento da criança, mas não define explicitamente a infinita gama de conteúdos inseridos nesse mega‐ artefato.
Designo como mega‐artefato no sentido defendido por Machado (no prelo), discutido no capítulo inicial deste trabalho, que mostra como os professores utilizam os artefatos sócio‐historicamente construídos (materiais ou simbólicos), e como estes se tornam instrumentos na medida em que o professor o transforma e se apropria dele, de modo a provocar também transformações no objeto e nos indivíduos envolvidos na atividade. No caso deste trabalho, não posso considerar
como instrumento por não saber de que forma os professores o utilizam, ou seja, se foi apropriado, e transformado, ou não.
Por meio da análise específica da área Linguagem Oral e Escrita, realizada neste trabalho, tento elucidar e compreender de que forma o Referencial apresenta os conteúdos pertinentes a cada área, ou seja, os conteúdos específicos contidos nos mega‐artefatos como forma de elucidar o que se desenvolver, de fato, com as crianças nas instituições voltadas para seu atendimento. O que se constatou nas análises é a ausência desse esclarecimento, ou o apagamento dos conteúdos que aparecem somente de forma implícita na seção ‘Orientações Didáticas’, como demonstram os segmentos a seguir no tocante ao estudo de gêneros de discurso:
“Outra atividade a ser realizada refere‐se às representações orais ao vivo, de textos memorizados, nos quais as crianças reproduzem os mais diferentes gêneros como histórias, poesias, parlendas e etc.” (RCNEI, p.140, Vol.3)
Do mesmo modo que não há referência sobre a teoria na qual os autores se basearam para escrever o Referencial, como discutido na seção anterior, não há especificação dos conteúdos, ou seja, eles não são apresentados de forma clara. No quadro dos ‘Conteúdos’, o estudo de gêneros de discurso, como exemplo do que se discute, é mencionado apenas na faixa etária de zero a três anos de idade; aparece somente como “gênero”, e não é dada nenhuma explicação pontual sobre o trabalho com gêneros de discurso. Como mostra o quadro a seguir, conteúdos para crianças de zero a três anos, reproduzido65 integralmente:
65 Os grifos dos quadros foram colocados para destacar o que se discute; no original não aparecem em
Quadro 28. Conteúdos: criança de zero a três anos (RCNEI, p. 133, Volume 3).