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4 O dano existencial aplicado ao direito do trabalho

4.1 O dano existencial

O dano existencial possui seus primórdios de reconhecimento na justiça italiana, com a prolação da sentença 186 de 1986, na qual restou declarado nova espécie de dano extrapatrimonial indenizável, chamado de dano existencial ou biológico – posto que naquele caso concreto falava-se em violação ao direito fundamental da saúde.131

No processo de evolução jurisdicional em defesa da dignidade da pessoa humana, destaca-se o emblemático julgado da Suprema Corte Italiana, número 7.713 de junho de 2000, que reconheceu, em matéria de Direito de Família, a possibilidade de condenação ao dano existencial, frente ao desamparo paterno e cerceamento do direito ao convívio social. In verbis, traduzida pelo Dr. Amaro Alves de Almeida Neto:

131

ALMEIDA NETO, Amaro Alves de. Dano existencial: a tutela da dignidade da pessoa humana. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 6, n. 24, mês out/dez, 2005.

O que já foi, aliás, bem exposto pela Corte constitucional com a conhecida sentença n. 184 de 1986, relativo ao dano-evento da lesão do direito à saúde (chamado dano biológico), é aplicável – pela abrangência dos seus enunciados – a qualquer análoga lesão de direitos igualmente fundamentais

da pessoa, configurando um dano existencial e à vida de relação132

Percebe-se, assim, a dinamicidade do direito quando originado pelo clamor do caso concreto. Não cabia mais àquele momento a simples bipartição dos danos indenizáveis – dano material e moral. Para que a integral proteção à dignidade fosse alcançada, ante a extensão do dano, exigia-se maior segurança jurídica na esfera de sua responsabilidade civil.

Nesse sentido, citado pelo Ministro do TST, Hugo Carlos Scheurmann, Amaro Alves de Almeida Neto conceitua o dano existencial como:

[…] consiste na violação de qualquer um dos direitos fundamentais da pessoa, tutelados pela Constituição Federal, que causam uma alteração danosa no modo de ser do indivíduo ou nas atividades por ele executadas com vistas ao projeto de vida pessoal, prescindindo de qualquer repercussão financeira ou econômica que do fato da lesão possa decorrer.133

Flaviane Rampazzo Soares, citado por Boucinhas Filho, por sua vez, considera que ele “abrange todo acontecimento que incide, negativamente, sobre o complexo de afazeres da pessoa, sendo suscetível de repercutir-se, de maneira consistente – temporária ou permanente – sobre sua existência.” 134

Trata-se de dano que se alicerça em dois eixos: ofensa ao projeto de vida - ou seja: a liberdade de deliberar sobre o próprio destino - e prejuízo à vida de relação, a qual diz respeito ao conjunto de relações interpessoais, nos mais diversos ambientes e contextos, que permite ao ser humano viver em sociedade e desfrutar do bem estar físico e psíquico dele decorrente.135

132

Ibid., p. 29, tradução do autor.

133

BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. RR 727-76.2011.5.24.0002. Relator Ministro Hugo Carlos Scheuermann, DJ 6 de setembro de 2013. Disponível em:

<https://aplicacao5.tst.jus.br/consultaProcessual/consultaTstNumUnica.do?consulta=Consultar&consc sjt=&numeroTst=727&digitoTst=76&anoTst=2011&orgaoTst=5&tribunalTst=24&varaTst=0002>. Acesso em 19 msr. 2014. (grifo nosso)

134

BOUCINHAS FILHO, Jorge Cavalcanti; ALVARENGA, Rúbia Zanotelli de. O dano existencial e o direito do trabalho. Jus Plenum: Doutrina, Jurisprudência e Legislação, Caixias do Sul, n. 50, p. 87 – 106, mar. 2013.

135

FROTA, Hidemberg Alves da. Noções fundamentais sobre o dano existencial. Jus Navigandi, Teresina, ano 16, n. 3046, 3 nov. 2011. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/20349>. Acesso em: out. 2014.

Importante introduzir, a título de demonstração, que o dano existencial delineou-se com características distintas dos outros danos indenizáveis já existentes. Quando comparado ao dano moral, não se traduz a um sofrimento, ou a uma angustia, e sim a uma renúncia involuntária a uma atividade concreta – trata-se de situação que impõe um não fazer. Cotejado com o dano patrimonial, nem sempre causa ao ofendido uma redução da capacidade de obter rendimentos136

Conforme se verifica, embora muitos sejam os fatores que possibilitem o dano existencial, para fins deste estudo acadêmico limitar-se-á a indisponibilidade de tempo livre do indivíduo decorrente de abuso patronal e cuja a consequência recaia sobre seu convívio social, situação de inevitável caracterização de violação ao direito fundamental do lazer.

Ademais, é da violação do direito ao lazer pelo empregador, acompanhada de contraprestação pecuniária ou não, que mais comumente se verifica, no direito laboral, o cerceamento de autonomia da própria vida, capaz de resultar lesões em sua atividade biológica, relações familiares, relações sociais, atividades culturais, religiosas e etc.137

Esse tipo de cerceamento; melhor visualizado quando visto em sua forma extrema, a exemplo de o trabalho escravo; assume maior aceitação jurisprudencial e social quanto ao pleito de danos existenciais, erroneamente, sob a figura do dano moral.138

Assim, pede-se licença de citar, mais uma vez, Boucinhas Filho, a fim de tornar evidente a legitimidade do tema:

[...] toda pessoa tem o direito de não ser molestada por quem quer que seja, em qualquer aspecto da vida, seja físico, psíquico ou social. Submetido ao regramento social, o indivíduo tem o dever de respeitar e o direito de ser respeitado, porque ontologicamente livre, apenas sujeito às normas legais e de conduta. O ser humano tem o direito de programar o transcorrer da sua vida da melhor forma que lhe pareça, sem a interferência nociva de ninguém. Tem a pessoa o direito às suas expectativas, aos seus anseios, aos seus projetos, aos seus ideais, desde os mais singelos até os mais grandiosos: tem o direito a uma infância feliz, a

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BOUCINHAS FILHO, Jorge Cavalcanti; ALVARENGA, Rúbia Zanotelli de. O dano existencial e o direito do trabalho. Jus Plenum: Doutrina, Jurisprudência e Legislação, Caixias do Sul, n. 50, p. 87 – 106, mar. 2013.

137

BOUCINHAS FILHO, Jorge Cavalcanti; ALVARENGA, Rúbia Zanotelli de. O dano existencial e o direito do trabalho. Jus Plenum: Doutrina, Jurisprudência e Legislação, Caixias do Sul, n. 50, p. 87 – 106, mar. 2013.

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SOARES, Flaviana Rampazzo. Responsabilidade civil por dano existencial. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009.

constituir uma família, estudar e adquirir capacitação técnica, obter o seu sustento e o seu lazer, ter saúde física e mental, ler, praticar esporte, divertir-se, conviver com os amigos, praticar sua crença, seu culto, descansar na velhice, enfim, gozar a vida com dignidade. Essa é a agenda do ser humano: caminhar com tranquilidade, no ambiente em que

sua vida se manifesta rumo ao seu projeto de vida.139

Ante ao exposto, no âmbito das relações de trabalho, verifica-se a caracterização do dano existencial nos casos que importe renúncia involuntária do empregado às atividades do cotidiano, que importem em privação social - claramente identificado quando há a violação aos períodos de descanso. Dado que não há projeto de vida, sem vida de relação.