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O desafio da comunicação

No documento Download/Open (páginas 59-70)

Oportunamente, algumas contribuições de autores contemporâneos somam-se às interações entre os Estudos Culturais e o pensamento latino- americano. Uma delas vem do pesquisador francês e um dos teóricos da comunicação, Dominique Wolton. Em É preciso salvar a comunicação (2006), ele remete a cultura a quatro sentidos: 1º) o francês (remete à ideia e obra e criação) implica as definições de patrimônio e conhecimento; 2º) o alemão em que aproxima a palavra cultura de civilização (símbolos, valores e representações); 3º) o anglo-saxão (antropológico), considerando os modos de vida, conhecimentos e comportamentos, e 4º) o ligado aos movimentos de afirmação das identidades culturais (mulheres, homossexuais, comunidades tradicionais, etc.).

O autor também ressalta o que existe entre os espaços simbólicos e culturais e nos propõe o desafio da coabitação cultural. Traz para as discussões entre comunicação e cultura o papel das identidades, considerando, portanto, a experiência da alteridade e do diálogo entre as concepções e perspectivas de olhar o mundo. Destaca o respeito às identidades e à diversidade cultural, em um contexto global no qual as diferenças culturais se acentuam e há uma aceleração das contradições.

Verificamos que, para aproximação entre comunicação e cultura, é necessária a construção do diálogo entre as distintas concepções do mundo. As interações sociais entre comunicação e cultura fazem parte da relação humano- sociedade, estabelecendo representações simbólicas.

Portanto é essencial verificar como são construídas e mantidas suas identidades culturais e, respectivamente, seu imaginário. Da mesma forma, é necessário analisar como são estabelecidas as trocas e as tensões culturais, constantemente alimentadas e ressignificadas pelos meios de comunicação massivos ou não e de seus atores a partir das mediações.

Neste ponto é necessário expor as articulações das comunidades, a serem apresentadas no capítulo a seguir, e suas expressões simbólicas, com as questões locais e globais que envolvem o território físico.

As dinâmicas culturais, como já discutimos, assim como os processos comunicacionais, estão diretamente relacionadas às questões espaciais, portanto é importante ao mesmo tempo diferenciar e inter-relacionar os conceitos de espaço, território e lugar.

O espaço pode ser entendido como a forma em que as sociedades se relacionam a uma porção da superfície da terra. Esse conceito abarca a capacidade de intervenção direta ou indireta do ser humano com o espaço geográfico. As relações entre os sujeitos e o espaço vão se transformando, conforme a sociedade faz uso, assim como provocam as consequências positivas e negativas dessas ações humanas.

Milton Santos, em A Natureza do Espaço: Técnica e Tempo, Razão e

Emoção (2006, p. 56), define espaço como “O espaço geográfico deve ser

considerado como algo que participa igualmente da condição do social e do físico, um misto, um híbrido”. Ele associa território com as relações de poder e controle entre determinados agentes, dentre eles o mercado que opera na construção de territórios a partir do estabelecimento de fronteiras físicas e simbólicas, e tem na globalização um processo de expansão de fluxos de produção e consumo de ideias e comportamentos favorecidos pela constante evolução tecnológica e sofisticação dos meios de comunicação sejam impressos

e eletrônicos. A globalização é um processo assimétrico que acentuou e continua a acentuar as mais diversas formas de desigualdades sociais.

Território e mercado se tornam conceitos xifópagos, em sua condição de conjuntos sistémicos de pontos que constituem um campo de forças interdependentes. É nesse sentido que se pode afirmar que as normas a que se submetem são “dinâmicas e autorreguladas”, no dizer de M. Pagès (1979, p. 50). Tais normas são estruturadoras da realidade, no sentido proposto por F. Tinland (1994, p. 27), a ordem significando “interdependência entre elementos que se condicionam mutuamente e cujas interações fazem surgir novas modalidades de relações com as quais [...] inscrevem os seus próprios ritmos de mudança no movimento do mundo”. O território como um todo se torna um dado dessa harmonia forçada entre lugares e agentes neles instalados, em função de uma inteligência maior, situada nos centros motores da informação. A força desses núcleos vem de sua capacidade, maior ou menor, de receber informações de toda natureza, tratá-las, classificando-as, valorizando-as e hierarquizando-as, antes de as redistribuir entre os mesmos pontos, a seu próprio serviço (SANTOS, 2006, p. 154).

Ao revermos brevemente a trajetória histórica do Brasil, verificamos que as grandes navegações do século XV e a descoberta de novos territórios iniciaram a expansão europeia/mercantilista e do sistema capitalista em nível mundial. As tecnologias de navegação minimizaram o risco dos deslocamentos e ampliaram a exploração de um “novo mundo”, que permeava o imaginário europeu.

Conforme o autor, mais tarde, a Revolução Industrial, na segunda metade do século XVIII, foi marcada pela mudança do modo de produção artesanal para a produção industrial em grandes quantidades, graças ao desenvolvimento da máquina a vapor. A busca por matéria-prima e a expansão comercial contribuíram consideravelmente para o desenvolvimento dos transportes marítimos e ferroviários. No século XIX, com a descoberta da eletricidade, nos continentes europeu e norte-americano, houve o fortalecimento e a expansão do setor industrial, assim como em diferentes países, inclusive no Brasil, posteriormente. Já no início do século XX, após duas guerras mundiais, respectivamente em 1914 e 1945, foram definidos dois sistemas antagônicos: o socialista e o capitalista; simbolicamente, a queda do Muro de Berlim, no final da década de 1980, consagrou o sistema capitalista neoliberal e, como

consequência, o processo de globalização e o alinhamento comercial dos países. Na década de 1990, consolidou-se a revolução científico-tecnológica que atingiu vários aspectos da sociedade, gerando novas práticas e comportamentos em relação ao consumo, bens e serviços e a produção cultural humana.

Ainda compartilhando das contribuições de Milton Santos, a aceleração contemporânea impôs novos ritmos ao deslocamento dos corpos e ao transporte das ideias, mas também acrescentou novos itens à evolução humana, a explosão urbana e o consumo onde a comunicação assume um papel articulador na configuração e nas relações entre técnica, espaço e tempo.

O espaço se globaliza, mas não é mundial como um todo: há diferenças incapazes de unir pessoas e culturas, pois esse espaço é hegemônico e se caracteriza por instalar as forças que regulam a ação em outros espaços. Segundo o autor, o espaço “padronizado” é configurado por uma tecnosfera como resultado da artificialização do meio ambiente, e por uma psicosfera resultados de crenças, desejos, vontades, hábitos que inspiram comportamentos.

Para Santos, as tentativas de construção de um mundo sempre conduziram a conflitos, porque se tem buscado unificar e não unir, ou seja, que globaliza separa; é o local que permite a união.

Milton Santos afirma que é o mundo quem comanda, disciplina, normaliza, impõe uma racionalidade às redes. Esse mundo, que, para o autor, é representado pelo mercado universal, dos governos e entidades internacionais, as universidades e outras instituições que fundamentam a globalização na prática e na ideologia. Ou seja, ao se referir ao mundo nessa discussão, o autor está aludindo ao mercado que atravessa tudo: mercado de: ideias, ciência e informação e política. Na democracia de mercado, é o território que dá suporte às redes que transportam regras e normas utilitárias, como apresentado anteriormente ao nos referimos ao território como espaço de relação de poder.

Ao mesmo tempo que estamos inseridos em um contexto de globalização de territórios, sejam eles reais ou virtuais, o autor nos chama atenção ao conceito de lugar, pois ele faz referência a uma realidade regional ou local e indica a uma parte do espaço voltado para a vida e para o cotidiano, marcado pelas relações

de afetividades entre seres humanos no ambiente no qual estão inseridos. Para o autor, o lugar está associado não apenas como uma referência geográfica, e sim vinculado a diversos tipos de experiências e envolvimento com o mundo, ao retomar o sentimento de pertencimento e identidade. O global e o local coexistem e convivem dialeticamente. Segundo Santos:

A ordem global busca impor, a todos os lugares, uma única racionalidade. E os lugares respondem ao Mundo segundo os diversos modos de sua própria racionalidade. A ordem global serve-se de uma população esparsa de objetos regidos por essa lei única que os constitui em sistema. A ordem local é associada a uma população contígua de objetos, reunidos pelo território e como território, regidos pela interação. No primeiro caso, a solidariedade é produto da organização. No segundo caso, é a organização que é produto da solidariedade. A ordem global e a ordem local constituem duas situações geneticamente opostas, ainda que em cada uma se verifiquem aspectos da outra. A razão universal é organizacional, a razão local é orgânica. No primeiro caso, prima a informação que, aliás, é sinónimo de organização. No segundo caso, prima a comunicação. A ordem global funda as escalas superiores ou externas à escala do cotidiano. Seus parâmetros são a razão técnica e operacional, o cálculo de função, a linguagem matemática. A ordem local funda a escala do cotidiano, e seus parâmetros são a co-presença, a vizinhança, a intimidade, a emoção, a cooperação e a socialização com base na contiguidade. A ordem global é “desterritorializada”, no sentido de que separa o centro da ação e a sede da ação. Seu “espaço”, movediço e inconstante, é formado de pontos, cuja existência funcional é dependente de fatores externos. A ordem local, que “reterritorializa”, é a do espaço banal, espaço irredutível (T. dos Santos, 1994, p. 75) porque reúne numa mesma lógica interna todos os seus elementos: homens, empresas, instituições, formas sociais e jurídicas e formas geográficas. O cotidiano imediato, localmente vivido, traço de união de todos esses dados, é a garantia da comunicação. (SANTOS,2006, p. 231).

A partir das contribuições de Milton Santos, pode-se compreender que é no lugar que reside a única possibilidade de resistência em relação aos processos perversos que marcam nossa sociedade globalizada. É o lugar que possibilita a real e efetiva comunicação, troca de informação e construção política. Os lugares podem se unir horizontalmente e construir formas novas e próprias de produção e consumo, ou seja, são os espaços do acontecer solidário que podem delinear e definir usos e valores de múltiplas naturezas: culturais, antropológicos, econômicos, sociais, entre outras.

Para se compreender as dinâmicas espaciais, é preciso dar um tratamento analítico ao uso do território brasileiro, assim como a dialética entre o global e o local. Faz-se necessário rever o contexto, da mesma forma questionar sua própria configuração, para compreender os diversos processos de resistência dos lugares, como é o caso de nossos povos e comunidades tradicionais às perversidades da globalização, conforme Milton Santos.

No caso brasileiro, a questão territorial e suas respectivas transformações são marcantes em nosso país e refletem ainda tensões sociais no decorrer de nossa história, entre grupos “invasores” e grupos residentes. A defesa do território torna-se um elemento que unifica grupos frente às pressões exercidas pelos grupos hegemônicos.

Foram muitos os processos de expansão de fronteiras no Brasil colonial e imperial, em que destacamos alguns aspectos históricos que marcaram os aspectos territoriais, tais como: a ocupação do litoral no século XVI; o ciclo da cana-de-açúcar (XVI/XVII); o ciclo bandeirantista (XVII); o ciclo da mineração (XVIII) em Minas Gerais e na região central do país, como ocorreu em Goiás; e a expansão da cultura do café no século XIX.

Os resultados de cada ciclo de expansão de fronteiras foram marcados por conflitos, guerras, extinções, migrações forçadas e reagrupamentos de grupos étnicos. Constatamos que as transformações territoriais possibilitaram movimentos de resistência, assim como processos de hibridação cultural é uma das características que marcam os povos e comunidades tradicionais.

Verificamos que um processo intenso de globalização marcado pela padronização de usos e costumes, ressurgem movimentos contrários no sentido de valorizar o local, por compreender este espaço como algo próximo ao contexto no qual estamos inseridos.

A reconfiguração de identidades acontece constantemente como resultante da relação dialética entre o global e o local. Apesar da homogeneização de práticas culturais globalizadas, revitaliza-se o apreço pelo lugar, pela comunidade. Ressurgem, portanto, representações de segurança e proteção em espaços de abrigo e acolhimento contrários a um contexto global

inseguro e instável. Há um conjunto de forças que acentuam o fortalecimento de identidades, que caracteriza nossa sociedade globalizada, conforme Hall:

Outro efeito desse processo foi o de ter provocado um alargamento do campo das identidades e uma proliferação de novas posições de identidade, juntamente com um aumento de polarização entre elas. Esses processos constituem a segunda e a terceira consequências possíveis da globalização, anteriormente referidas – a possibilidade de que a globalização possa a levar a um fortalecimento das identidades locais ou à produção de novas identidades. O fortalecimento de identidades locais pode ser visto na forte reação defensiva daqueles membros dos grupos étnicos dominantes que se sentem ameaçados pela presença de outras culturas (HALL,2011, p. 85).

Já Castells, conforme abordamos no capítulo 1, apresenta a identidade como um processo de construção de significados com base em atributos culturais inter-relacionados, marcados pelas relações de poder. As identidades legitimadoras, de resistência e de projetos, são construídas e levam a um resultado diferente na constituição da sociedade e também podem ser encaradas como reações defensivas.

Ao aproximarmos as colocações de Hall com a de Castells, verificamos que essas identidades surgem ou se fortalecem como processos de resistência contra as perversidades da globalização, o que nos leva a compreender a existência e o fortalecimento das identidades locais e laços comunitários, gerando sentimentos de pertença, o que traz a necessidade de refletirmos sobre o local.

Destacamos a perspectiva de Peruzzo (2006, p. 144), que compreende o local como “espaço determinado, um lugar específico de uma região, no qual a pessoa se sente inserida e partilha sentidos”. Já Bourdin, em A questão local (2011), acrescenta que o local caracteriza-se em três dimensões: a) o local necessário: caracterizado pelo sentimento de pertença a um grupo comunitário através de vínculos, sejam eles de sangue, língua ou território, composto, portanto, por fatores históricos e etnológicos; b) o local herdado: que relaciona vínculos históricos e as relações entre passado e presente, assim como se refere às estruturas antropológicas, principalmente a um conjunto de representações, códigos e ao empirismo de suas práticas, presentes tanto nos mitos quanto nos

ritos; c) local construído: refere-se a uma forma social caracterizada na articulação e integração de ações e atores.

Nesse sentido, é importante refletir sobre o conceito de comunidade que se relaciona ao conceito de local. Podemos dizer que a comunidade está inserida em um espaço local, assim como outras dimensões espaciais (local/regional), (regional/nacional), (nacional/internacional). Ou seja, podemos compreender as dinâmicas entre o local e a comunidade de forma relacional, até mesmo porque há delimitações espaciais múltiplas e flexíveis.

Discutidas por vários autores, destacamos as contribuições de Ferdinand Tönies em seu texto Comunidade e sociedade como entidades típico-ideais (1973), que apresentou, já em suas pesquisas, o conceito de comunidade, entendido como a reciprocidade das relações sociais entre indivíduos, caracterizadas por grupos coesos e unidos por interesse comum. O autor apresenta algumas características que podem definir comunidade. Baseia-se em três gêneros: os laços de parentesco, relacionados aos laços de sangue, comuns em uma mesma casa e/ou mesma família, que não se limitam à proximidade física; vizinhança, que se caracteriza pela vida comum entre pessoas próximas, tendo como característica a proximidade física; e amizade, relacionada aos laços criados nas condições do modo de pensar.

Além de Tönies, Weber, em sua obra Comunidade e sociedade como

estruturas sociais (1973), afirma que o conceito de comunidade é amplo,

envolvendo situações heterogêneas. Comunidade é definida como uma relação social quando as ações sociais inspiram-se no sentimento subjetivo de seus participantes. Buber, a partir do seu livro Sobre Comunidade (1987), afirma que a comunhão de escolhas, vontades comuns e partilha de um mesmo ideal são o que caracterizam uma comunidade e não necessariamente as noções de parentesco e território.

Complementando os conceitos de Tönies e Weber, Peruzzo, em Mídia

local e suas interfaces com a mídia comunitária (2003), acrescenta que as

características da comunidade também são compostas pelos sentimentos de pertença, coletividade, participação/interação, cooperação, entre outros aspectos.

Já Palacios, em O medo do vazio: comunicação, social idade e novas

tribos (2001), afirma que, na atualidade, uma comunidade é caracterizada por

sentimentos de pertencimento, comunidade, permanência, territorialidade e formas próprias e características de comunicação.

Outro autor que debate o conceito de comunidade é Zygmunt Bauman, em Comunidade (2003), o sociólogo nos alerta sobre o desafio contemporâneo de conciliar o individualismo com os interesses de uma coletividade. A dificuldade se encontra porque os valores e as instituições do passado, elos que encadeavam os projetos individuais aos coletivos são frágeis a fase líquida da modernidade, onde “cada um por si” busca capacitar-se para um futuro incerto.

Porém Bauman, afirma que na contemporaneidade é possível também se encontrar um sentimento de pertencimento comunal nas minorias étnicas. A cultura é um fator de unidade e pode, na tentativa de “legitimar” ou “unir” um grupo para reafirmar a sua identidade, muitas vezes recorrer ao exagero, ao radicalismo, tornando-se comunidades exclusivistas e conservadoras. Entendemos nas advertências apresentadas por Bauman que as diferenças culturais não devem e não podem ser elementos de afastamentos e sim de aproximações. A “luz no fim do túnel” proposta pelo autor, é um diálogo possível e as trocas entre comunidades, uma possibilidade de uma nova realidade.

Se vier a existir uma comunidade no mundo dos indivíduos, só poderá ser (e precisa sê-lo) uma comunidade tecida em conjunto a partir do compartilhamento e cuidado mútuo; uma comunidade de interesse e de responsabilidade em relação aos direitos iguais se sermos humanos e igual capacidade de agirmos em defesa desses direitos (BAUMAN, 2003, p.134).

A partir das contribuições desses autores, com relação ao entendimento do conceito de comunidade, verificamos que a questão espacial assume um caráter físico, simbólico e revela um sentimento de pertencimento, assim apresenta também tensões sociais. Como desafio, os processos comunicacionais presentes na trama cultural nas comunidades podem colaborar no fortalecimento das identidades, no sentido de pertencimento e no diálogo entre diferentes culturas.

No capítulo 2, apresentaremos quem são os quilombolas que vivem no município de Cananeia, assim como contextualizaremos sua realidade, seus conflitos, suas lutas e resistências.

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