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O diálogo entre páginas: a apresentação da personagem

É em meio a este contexto que é lançado, em janeiro de 1971, o número 58 de

Realidade, contendo a reportagem Quem é o homem no fundo do poço?42. No sumário, sob a classificação editorial de ‘Problema’, há a chamada para um trabalho cujo objetivo é mostrar como vive uma família com a renda de um salário mínimo. Na primeira página dupla destinada ao texto (Figura 20), podemos observar uma fotografia emblemática e curiosa: um homem, apoiando-se nas paredes de um poço, olha fixamente para o repórter. Na margem direita, um pequeno trecho indica a autoria da reportagem: texto de Audálio Dantas e fotografias de Jean Solari.

Sobre a fotografia, no topo da página dupla, um questionamento que dialoga diretamente com o texto visual: ‘Quem é o homem no fundo do poço?’. Há um diálogo explícito entre o título e a fotografia. O chamado ‘fundo do poço’, apesar de referir-se diretamente à imagem, permite que o leitor faça uma relação com a famosa expressão, a qual se refere a um problema irresolvível, a uma situação que deixa o sujeito em estado de miséria, especialmente ligado com questões profissionais e financeiras.

Ao observarmos a imagem, percebe-se um destaque especial dado ao olhar do homem, um sujeito que, até aqui, não possui nome ou profissão. Uma personagem que representa todos aqueles que estão no fundo do poço, que estão na miséria. Mesmo se tratando de um período de forte crescimento econômico, a revista dá indícios de que tal situação de desespero e falta de possibilidades pode, e deve, estar acontecendo em alguma parte do país.

42 Ao tratar da reportagem, em livros de memórias, Audálio Dantas a intitula como Joaquim Salário Mínimo.

Porém, destacamos aqui, este é o título da segunda página dupla (Figura 2), motivo pelo qual optamos por chamar a reportagem de Quem é o homem no fundo do poço?, título da primeira página dupla (Figura 1).

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Figura 20: Quem é o homem no fundo do poço?, Revista Realidade, nº 58, jan. 1971, p. 08-09

Fonte: Acervo do Grupo de Pesquisa Estudos Fotográficos (CNPq/UFCA)

Com as mãos sujas, a camisa desabotoada e calças pretas, o homem esboça um sorriso, apoiando-se no poço que o acolhe. Não parece haver possibilidade para saída, ao mesmo tempo em que ele não esboça uma reação de desespero. No fundo do poço há água, o que poderíamos classificar como a imagem da esperança. O poço cavado visa à possibilidade de encontrar água. Aquele homem tem de ter a esperança de encontrar o líquido, para ali estar. A água começa a brotar, há esperança para o homem encerrado em meio ao barro vermelho.

Abaixo da palavra ‘poço’, no título, chamando a atenção para aquela parcela da página, cinco perguntas lançam questionamentos acerca do homem retratado:

Quantos filhos ele tem?

Quantos metros quadrados tem a casa em que ele mora? Qual é a sua idade?

De onde ele veio?

Quanto ele ganha? (DANTAS, 1971, p. 09).

A sequência de questionamentos não é encadeada, não segue a ordem esperada de uma conversa que vise a conhecer alguém. Não há indicações acerca do nome do sujeito. Há um

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destaque especial dado às dimensões do local onde ela habita: tanto do ponto de vista físico quanto material. Além disso, já se pode perceber que o homem não pertence àquele local. É estrangeiro ao ambiente.

Na parte inferior esquerda, uma pequena legenda da fotografia nos dá as primeiras informações sobre a personagem em questão: “O homem cava a terra e vai ao fundo, porque precisa de um lugar para morar. Mas não tem os tijolos, não tem a madeira, não tem as telhas, não tem nada. É um homem que ganha muito pouco” (DANTAS, 1971, p. 08).

O homem em questão não possui um nome. Tem um rosto, para o qual podemos olhar, mas vemos nele o reflexo de toda uma parcela da população brasileira. O sujeito que afunda no barro não o faz por querer, mas por necessidade. Ao destacar que ele não tem o material para construir a casa, o narrador não trata apenas da parte física necessária à construção: fala também de passado, de futuro, de relações afetivas, de uma vida justa e confortável. Ao não ser possuidor de nada, o homem está mergulhado em incertezas.

Neste contexto, a terra pode ser tida como o país, a relação de pertencimento que o sujeito tem para com as relações de brasilidade. Ele cava a terra, indo mais fundo. Mergulha nos problemas que o envolvem por conta da necessidade que tem de ter onde morar. Essa é a justificativa para o homem cavar a terra, buscar uma forma de sobreviver, apesar dos problemas.

Ao virar a página, deparamo-nos com mais uma fotografia em página dupla (Figura 21). Desta vez, o homem no fundo do poço ganha um nome: Joaquim, um sujeito de 36 anos. Na fotografia, uma família inteira, composta por sete pessoas, divide um pequeno espaço. Em contrataste com a imagem anterior, sendo aquela iluminada, esta aponta para uma situação noturna: a hora de dormir. Repetindo o padrão anterior, ambas as fotografias foram tomadas de um ângulo superior aos retratados.

Todas as personagens da fotografia estão acordadas, com os olhos abertos. Os dois meninos, localizados na parte inferior direita da página, miram diretamente o fotógrafo, ao passo que os demais fixam o olhar em diferentes partes do espaço. Encarcerados, enjaulados, as sete personagens são nomeadas em legendas sobrepostas à fotografia. Assim, percebemos que Joaquim e Ana (33 anos) são os pais, enquanto Clemente (11 anos), Donizeti (nove anos), Donizita (oito anos), Laurinda (seis anos) e Aparecida (um ano) são os filhos. Destacamos que este recurso de sobreposição para a identificação das personagens foge aos padrões anteriores da revista, do ponto de vista da diagramação.

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Figura 21: Quem é o homem no fundo do poço?, Revista Realidade, nº 58, jan. 1971, p. 10-11

Fonte: Acervo do Grupo de Pesquisa Estudos Fotográficos (CNPq/UFCA)

Nos limites da imagem podemos perceber as ripas, paredes de madeira da casa. Alguns poucos móveis completam a composição. As personagens dividem o espaço, os lençóis, o ar. O espaço é pequeno. O que vemos na fotografia não é apenas um cômodo da casa, mas sim todo o espaço dividido pela família. Podemos ter a dimensão da situação ao lermos a introdução da reportagem, impressa na página par: “Tem cinco filhos. Mora em 7,5 metros quadrados. Tem 36 anos, veio de Minas, é operário em São Paulo e ganha Cr$ 187,20 por mês” (DANTAS, 1971, p. 10). Este pequeno parágrafo é composto, respeitando a ordem, pelas repostas às perguntas da primeira página dupla.

Esta é a vida de ‘Joaquim Salário Mínimo’, personagem da reportagem que ora analisamos. ‘Salário Mínimo’, portanto, surge como o sobrenome da personagem, uma característica definidora deste sujeito. Os sobrenomes estão ligados ao local de origem, ao grau de parentesco, às alcunhas ou à ocupação dos sujeitos. No caso de Joaquim, a condição utilizada para sobrevivência assume um caráter definidor de sua relação com a vida em sociedade. As atitudes, o cotidiano do sujeito e de sua família, são definidas pela quantia recebida ao mês.

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Além da relação tratada anteriormente, podemos fazer uma associação direta entre os dois títulos de página, conforme a Figura 22:

Figura 22: Quadro relacional entre títulos de página

Fonte: os autores.