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O papel do narrador: entre dados e questionamentos

Ao longo da reportagem são feitos alguns questionamento, sem que haja, necessariamente, uma personagem responsável por eles. No entanto, podemos entender que

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sejam pequenas intervenções feitas pelo repórter. Ele aflora do texto, como personagem, fazendo perguntas curtas e objetivas, conduzindo a narrativa, quando julga necessário. Vejamos o primeiro caso onde se dá a interação do repórter com a construção da narrativa. “- Joaquim, você sabe o que é salário mínimo? - Eu sei, porque sempre ganhei ele. Faz tempo que passo fome com ele” (DANTAS, 1971, p. 13).

Fala-se, ao longo do texto, no salário mínimo da época. Ele, inclusive, pode ser lido como um elemento definidor da personagem principal da narrativa. Joaquim tem um conhecimento empírico acerca do valor, bem como vivencia as consequências de tal remuneração: passa fome. Aqui podemos perceber, por meio da frase de efeito anterior, o peso dado, na narrativa, à situação de fome.

Em consideração à afirmação de Joaquim, o narrador traz a definição legal de salário mínimo, de acordo com o Decreto-Lei 399, de 193844, confrontando-a com as necessidades

reais de um indivíduo, de uma família. Nestes termos, o salário mínimo é

[...] a remuneração devida ao trabalhador, ‘capaz de satisfazer as suas necessidades normais de alimentação, habitação, vestuário, higiene e transporte’. Não há referências a recreação, assistência médica, nem aos descontos feitos na folha de pagamento. Mas, mesmo os cinco itens do decreto – as necessidades normais – não podem ser atendidos pelo salário mínimo (DANTAS, 1971, p. 13, grifo do autor).

O narrador leva o leitor a refletir acerca da condição dos trabalhadores brasileiros. Devemos considerar, claro, que a revista tinha como público as classes média e alta do país. Portanto, os leitores viviam uma experiência de Brasil diferente daquela que se apresenta às personagens desta reportagem. Ao listar as cinco ditas ‘necessidades normais’ de um indivíduo, o texto reflete sobre a vida em sociedade e destaca aspectos que não foram considerados pelo decreto.

Podemos observar que as necessidades legais do sujeito estão diretamente ligadas com o próprio exercício de uma profissão. É necessário transporte para chegar à fábrica, bem como uma boa alimentação dá forças ao empregado para trabalhar. Ao pinçar o item ‘assistência médica’, o narrador dialoga diretamente com a situação de Joaquim e de sua família, onde todos os integrantes possuem alguma enfermidade. Essas estão atreladas, especialmente, às condições sanitárias do local; no entanto, a má alimentação também influencia a condição de vida das personagens. Além disso, o destaque dado ao termo ‘necessidades normais’ indica

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um desacordo do narrador para com a definição. As necessidades, inclusive, não são ‘básicas’, mas, sim, ‘normais’.

Ainda seguindo a lógica de contestação ao valor do salário mínimo, quando considerado o decreto-lei que o instituiu, o narrador descreve a interação entre Joaquim, sua família e a fome. Aqueles indivíduos nunca chegaram à fome absoluta, mas convivem com ela diariamente: tem de haver racionamento de comida, para que possam sobreviver ao longo dos dias. Há privação: carne e leite, por exemplo, são itens raros. “Desse jeito, Joaquim não pode cumprir nem um dos itens do decreto-lei que criou o salário mínimo” (DANTAS, 1971, p. 13).

A descrição dos detalhes do ambiente é um dos principais componentes da narrativa. Eles contribuem para a formulação mental do leitor acerca do ambiente. Ao demonstrar de que forma começa o dia de Joaquim, o narrador destaca determinadas ações que contribuem para entendermos como é o cotidiano daquela família:

Manhãzinha, na hora de sair para o trabalho, ele confere o dinheiro, uma cédulas sujas e amarrotadas, separa os 70 centavos do item transporte (ônibus, ida e volta, passagem a 35 centavos) e as rugas se acentuam em seu rosto. Só dispõe, tirando o dinheiro do ônibus, de 300 cruzeiros velhos, 30 centavos de hoje – mais do que era o primeiro salário mínimo do Brasil. Mas as coisas estão caras, um pãozinho custa 80 cruzeiros velhos, o dinheiro não dá para comprar um pão para cada um dos meninos.

- Lé, vai na padaria e traz três pão dos pequeno (DANTAS, 1971, p. 13, grifo do autor).

Cotidianamente, as rugas de preocupação afloram na face de Joaquim. Ele luta para sobreviver. Tem de pensar na família, na alimentação, em continuar na fábrica. Por mais que tenha consciência da situação difícil em que vive, o homem confere novamente a quantidade de que dispõe para o restante do mês. As despesas têm de ser pesadas, pensadas, medidas de acordo com a fome.

A partir da descrição dos valores, sem a necessidade de dizer que é impossível uma família viver apenas com o salário, o narrador dá a dimensão da preocupação do homem. Ele terá de conseguir ajuda externa para manter a família. O valor do transporte e a fome são ganchos para a fala destacada logo a seguir. Eles são sete pessoas, das quais seis precisam de alimentos sólidos.

No entanto, o menino vai comprar apenas três pães, e pequenos. A penúria, o racionamento, pode ser sentido logo ao acordar. A solução vem a seguir: “Clemente,

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Quelemente, Quelé, Lé: é o menino mais velho de Joaquim. Tem onze anos, é pequeno como um menino de oito, mas é esperto e rápido na hora de comprar comida. Num instante volta com os três pães que Ana, a mãe, reparte em seis” (DANTAS, 1971, p. 13). Ao repartir os pães, a mãe dá uma contribuição para amenizar a fome de cada um dos integrantes da família. Logicamente, esta ação exprime a relação daqueles indivíduos com a comida e a fome. Não comem visando saciar-se, mas sim esquecê-la por alguns momentos.

Quanto ao filho, Clemente, duas informações nos parecem importantes. Em primeiro lugar, ele é desnutrido. Não parece uma criança de sua idade. A falta de uma boa alimentação leva o menino a parecer cerca de três anos mais novo. Além disso, as demais condições físicas do local também levam as crianças a terem problemas desta natureza. Eles têm vermes, estão sempre doentes, o que também impossibilita o bom crescimento. Em segundo lugar, ele é esperto para conseguir comida. Em outras palavras, tem fome. A vontade de comer o leva à coragem para ir comprar o alimento. A fome é o combustível para a velocidade.

Os pães divididos seriam para todos os integrantes da família. Porém, Joaquim não come. O homem não sente fome, ou não tem vontade de comer, em função da situação. Prefere deixar a parcela que lhe cabe para que outro coma: quer seja a mulher, quer seja um dos filhos. No entanto, destaca-se a precariedade da situação. O homem segue para o trabalho sem se alimentar, para uma jornada de oito horas de trabalho pesado, podendo chegar a dez horas, caso tenha a ‘sorte’ de fazer duas horas extras. O sujeito conta com a ajuda de Deus para conseguir o dinheiro a mais. Tal ação manifesta o cristianismo que envolve a família, além de destinar a uma personagem imaterial a responsabilidade pela sorte.

O narrador agrega à condição de Joaquim uma informação que faz referência a todos os trabalhadores:

A alimentação deficiente é apontada com frequência como a principal causa da improdutividade. Durante o I Encontro Governo-Empresa para a Solução dos Problemas de Proteínas, realizado em maio do ano passado, no Rio, o economista Julian Chacel, da fundação Getúlio Vargas, declarou que o salário mínimo em vigor não permitia o consumo per-capta diário de 60 gramas de proteínas. Essa quantidade seria necessária a uma alimentação equilibrada. Mas, para consegui-la, o trabalhador precisaria ganhar o equivalente a quatro salários mínimos (DANTAS, 1971, p. 14).

Baseado em informações com respaldo científico, é apresentado ao leitor a implicação prática da alimentação inapropriada de Joaquim e de sua família. As reflexões, assim, passam por todos os integrantes do grupo: o homem não poderá trabalhar produtivamente, a mulher

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também não terá forças para lidar com as atividades de casa, bem como as crianças não poderão se desenvolver plenamente. O problema da má alimentação persegue as personagens, bem como advém de problemas anteriores e gera problemas no futuro. Ela faz parte do ciclo de vida das personagens. É consequência e gera consequências, ao mesmo tempo.