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O embate entre as personagens: a luta pela vida

O trabalho tem início com a chamada tapagem, quando os homens identificam os buracos dos caranguejos em meio à lama e os obstruem com a ajuda de pernas e braços. “Em pouco tempo, os homens são estátuas de lama, parece que fazem parte do meio escuro e pegajoso” (DANTAS, 1970, p. 107). Este trecho da narrativa dialoga diretamente com a fotografia que integra a página (Figura 6): um ser humano com características femininas,

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jovem, mergulhado até a altura da cintura na lama, com marcas de barro molhado até as têmporas.

Figura 16 - Povo Caranguejo, Revista Realidade, nº 48, mar. 1970, p. 106-107

Fonte: Acervo do Grupo de Pesquisa Estudos Fotográficos (CNPq/UFCA)

A parte inferior da imagem indica um leve movimento de pernas da retratada, o qual exige esforço. Mais uma vez identificamos a característica monocromática possibilitada pelo mangue, bem como os olhos da personagem não fazem parte da parcela revelada pela imagem. Uma verdadeira estátua de lama, a garota leva a mão à cintura, mesmo que de forma involuntária. A textura da massa de lama nos transmite a impressão de que outros corpos passaram por ali, quer seres humanos ou animais: está revirada, com nuances que formam uma espécie de conglomerado de ondas. Velhos ou jovens, toda a comunidade perpassa a cultura da lida com o caranguejo. Nas fotografias e no texto há referências a pessoas das mais diversas idades. Aquela comunidade depende intimamente do caranguejo.

Os homens não sabem a quantidade de animais que já aprisionaram, mas contam-nos em cordas. Sabem exatamente quantas cordas taparam. Em menos de uma hora de trabalho, compadre Ota já tapou duas cordas, ou seja, aprisionou 24 caranguejos. Cerca de duas horas

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depois retornam, realizando a furagem: furando a lama exatamente no local tapado em busca do caranguejo que tentava voltar à superfície. Lembram exatamente todos os locais por onde passaram.

O próximo texto referente ao CARANGUEJO tem início com uma leitura do mesmo acerca da tapagem:

Os pés dos homens pisaram sem dó nem piedade, comprimindo a lama. No fundo dos buracos, os bichos acossados, perdidos no escuro total. O inimigo retirou-se, não há mais a pressão forte sobre as carapaças, o barulho surdo está mais longe, mas não há saída. É preciso sair, não há mais ruído por perto, mas o perigo continua na prisão de lama. A liberdade terminou quando o buraco pacientemente cavado se desfez sob aqueles pés poderosos. Agora, só resta refazer o buraco, de baixo para cima, caminho de uma liberdade quase impossível, mas sempre perseguida (DANTAS, 1970, p. 107).

O homem é o inimigo do caranguejo. Assim que o mesmo se aproxima, o ruído, a pressão e a mudança física do ambiente o tiram de sua cotidianidade e o obrigam a ir à superfície, a fugir. No entanto, a fuga o leva em direção ao homem. Neste fragmento, podemos fazer alguns paralelos com a situação na qual vivia uma parcela dos brasileiros que discordava da ditadura militar naquele momento.

Os pés que pisam sem dó nem piedade, tal como o relatado sobre a violência contra os presos políticos, por exemplo, comprimem a lama, em uma possível alusão à tortura. Dizemos isso, pois, naquele momento histórico vivia-se sob a égide das constantes prisões políticas, tendo como foco jornalistas e estudantes universitários, entre outros brasileiros. Além disso, os mesmos pés são chamados de poderosos. Da mesma forma, o governo abusava do poder, especialmente por meio dos Atos Institucionais, e da força, por meio de organizações como a Operação Bandeirantes (Oban), articulada em 1969 no estado de São Paulo. Nesta passagem, os pés estão em foco, não o homem. O poder está em uma parte específica dele, não no sujeito completo.

Para completar a reação do caranguejo ao ver seu buraco tapado, o narrador trata da liberdade, algo dado como impossível, mas mesmo assim perseguido pelo animal, que ainda se identifica enquanto morador daquele lugar, tendo direito sobre aquela parcela de lama. Da mesma forma, os brasileiros que já se viam reprimidos, especialmente após a promulgação do Ato Institucional Nº5, perseguiam a liberdade de expressão e, especialmente, política, também num patamar de impossibilidade, uma vez que os órgãos repressores se fortaleciam.

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A luta, intriga do texto, que numa primeira instância é entre o homem e o caranguejo, após a tapagem passa a ser direta entre o caranguejo e a lama, uma vez que ele precisa chegar à superfície. A modificação realizada pelo homem implica numa luta exaustiva e mortificante para o animal. A lama, antes parte integrante do espaço, aqui tem características de sujeito na narrativa.

Poucos chegam ao fim, à superfície por onde corre o ar, livre, e sobre a qual estão penduradas, verdes e apetitosas, as folhas do mangue. [...] Se cair uma folha no meio daquele pequeno mundo alterado, caranguejo nem pega. Está exausto, meio bêbado, abandonado sobre as patas. Estes, pelo menos, conseguiram chegar. Outros ficaram a meio do caminho, muitas vezes com uma ou mais patas quebradas pelo esforço (DANTAS, 1970, p. 107).

O olho desta página (Figura 16), “Falta ar. As patas tentam cavar: é impossível. A toca está bem fechada” (DANTAS, 1970, p. 107), destaca a angustia do caranguejo na tentativa de voltar à superfície. O final da página foi diagramado de forma que coincide com o final do texto referente ao caranguejo. Nas últimas linhas, um momento de tensão onde mais um dos membros do corpo do homem surge como ameaça para o animal, neste caso, a mão: “Lá vem a mão do homem sobre o bicho, rápida e forte. É a prisão, princípio da morte” (DANTAS, 1970, p. 107).

O princípio da morte para o caranguejo é a esperança da vida para o homem. Ao conseguir capturá-lo, vê nele o sustento para a família, as compras que poderão ser feitas na feira no dia seguinte, com o dinheiro conseguido a partir da venda do caranguejo, ali mesmo.

O ato de furar despende uma quantidade menor de tempo que tapar, no entanto, é mais doloroso, para ambas as personagens. O homem avança, o caranguejo defende-se como pode, com suas garras afiadas. Aqui temos o primeiro encontro, efetivo, entre nossas duas personagens:

Furar, enfiar o braço na lama a procura dos que não conseguiram chegar à superfície, é trabalho mais demorado e, muitas vezes, doloroso: os dedos dos homens encontram as unhas afiadas dos caranguejos, ferem-se e sangram. O sangue nem chega a ser visto, perde-se no escuro da lama. Mas o caranguejo vem, e aumenta a corda (DANTAS, 1970, p. 108).

O sangue, o que é vital ao homem, perde-se na luta inglória, em meio ao mangue: a lama, que agora toma a parte externa de seu corpo, e aquilo que lhe é interno, invertem os papéis. O homem torna-se uma estátua de lama, ao mesmo tempo em que a lama se alimenta

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do sangue do homem. Na Figura 17 podemos observar o olho desta página: “A mão encontra garras afiadas. O sangue fica embaixo da lama” (DANTAS, 1970, p. 108), um eco ao que estamos tratando.

Figura 17 - Povo Caranguejo, Revista Realidade, nº 48, mar. 1970, p. 108-109

Fonte: Acervo do Grupo de Pesquisa Estudos Fotográficos (CNPq/UFCA)

Quanto ao caranguejo, em geral, perde a luta. Mas, em algumas situações bem específicas, ganha uma liberdade temporária. É o caso de um bem pequeno, apanhado por Sabino, que se despede dele com a seguinte frase: “- Vá simbora, bichinho, vá” (DANTAS, 1970, p. 108), mostrando que, apesar de inimigo, o pescador nutre algum tipo de sentimento positivo por aquele que lhe mantém vivo, lhe garante o sustento.

Uma fêmea prenha, ovada, também é libertada em função de sua condição. No entanto, está dará a luz a vários caranguejinhos, que mais tarde serão caçados pelo homem. Ela ganha a liberdade, mas uma liberdade condicionada, que no futuro significará todo aquele sacrifício e luta novamente. Nos termos do próprio autor, “a bichinha fica de lado, livre da corda, porque vai ser mãe, produzir muitos caranguejinhos que crescerão e um dia serão agarrados pelas mãos dos homens” (DANTAS, 1970, p. 108).

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Conforme vão completando as cordas com os doze caranguejos, os homens as vão pendurando em galhos de árvores. Ao final, quando furam o último dos buracos tapados, voltam recolhendo as cordas. Compadre Ota, o mais ágil, conseguiu doze cordas. Luciano e Zé Prêto, dez cada. Sabino é o último a chegar. Antes disso, os homens comentam que ele está ficando velho. No entanto, “já vem chegando. Sabino demorou, mas não ficou para trás: é todo suor e lama sob o peso de dez cordas de caranguejo” (DANTAS, 1970, p. 108). Apesar de idades diferentes, os homens mantêm-se em ritmos semelhantes de trabalho.

Na fotografia que compõe a página (Figura 17), observamos uma criança em meio à lama remexida. Pequenas poças de água se formam nos espaços por onde pés e mãos estiveram. O menino está com o braço parcialmente mergulhado na lama, em busca dos caranguejos. Para as crianças da região, a caça é uma brincadeira. No entanto, esta observação nos leva a uma consideração acerca da cultura local: a lida com o caranguejo está de tal forma arraigada na vida da comunidade que ela passa de brincadeira de criança a sustento da família, com naturalidade.

A criança se perde em meio à lama. A fotografia, em preto e branco, causa certo estranhamento num primeiro olhar. As curvas do corpo do menino se integram com o mangue. No entanto, é possível notar seu esforço a fim de conseguir mergulhar o braço em busca do caranguejo. Na inexperiência da infância, contorce-se em busca do mergulho.

A narrativa volta a ter no CARANGUEJO sua personagem principal. Após a captura, o mesmo é carregado com as patas para cima, totalmente indefeso e sem possibilidade de reação. Mas, ao menos, ainda seguem com parte daquilo que lhes é familiar: a lama. Em breve, após serem lavados no rio, o último dos elementos com os quais tinham uma relação de pertencimento se vai:

Os homens carregam lama viva, pelas veredas. E no porto, as cordas são cuidadosamente lavadas e os caranguejos se revelam em todas as suas formas e cores, e agora brilham ao sol, no fundo das canoas [...] A agitação é maior ainda: falta a lama, o elemento familiar, e o sol brilha forte, quente (DANTAS, 1970, p. 108).

O narrador reitera que o caranguejo foi arrancado de seu habitat, perdeu a luta para o homem, apesar de não desistir – continuar lutando para sair da canoa. A luz é o que os incomoda. Podemos ver esta informação destacada no olho da página (Figura 18). Não estão acostumados com aquilo. Os olhos permanecem fechados a maior parte do tempo. O narrador faz menção ao chiado, característico da fome do caranguejo, já citado no início da

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reportagem. Mais uma vez, também, no texto, o narrador se utiliza de pausas: “Fome. Espuma. Chiado” (DANTAS, 1970, p. 110).

Figura 18 - Povo Caranguejo, Revista Realidade, nº 48, mar. 1970, p. 110-111

Fonte: Acervo do Grupo de Pesquisa Estudos Fotográficos (CNPq/UFCA)

No fim da viagem, novamente suspensos, depois jogados ao chão de areia do porto. Há muito ruído por perto, chegam muitos homens do rio, com muitas outras cordas de caranguejos. Chega a noite, o escuro, outra vez o fundo das canoas. Os caranguejos vão para a feira (DANTAS, 1970, p. 110).

No extrato acima, a narrativa é acelerada. Vemos que as personagens chegaram ao fim da primeira parte da viagem. Percebemos, também, que aquela ação da caça se repetia em muitos outros pontos da região. O texto dá pistas de que em breve eles chegarão a um ponto daquela cotidianidade sobre a qual já tivemos acesso a algumas informações ao longo do texto: a feita. Será o momento no qual o caranguejo dará lugar à farinha, ao feijão, aos mantimentos para a estrita sobrevivência da família.

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